A VIAGEM

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As três figuras foram ficando menores enquanto o trem se afastava. A da esquerda, com a mão ainda erguida num último aceno, seria tio Pedro ou tia Mariazinha? A do centro, sim, Maurício sabia ser tia Violeta, com o vermelho do vestido recortado na estação. Debruçou se mais para fora, mesmo assim não conseguia ver melhor. A plataforma oscilava, os solavancos do vagão faziam as três imagens saltarem como bolas de pingue-pongue. Ergueu a mão, abanando. Mas sabia que ninguém conseguiria vê-lo. As árvores interpunham seus galhos entre ele e o Passo da Guanxuma, cada vez mais parecida com um presépio esquecido entre dois montes. Os galhos curvavam-se para o trem, tentando acariciar seu rosto. As pontas secas, retorcidas como garras. Agora o trem virava uma curva, as três figuras ficaram definitivamente apagadas.
Maurício encostou a cabeça na janela aberta. Viagens eram sempre uma das coisas que os outros faziam, nunca ele. Alguns meninos do colégio iam até longe nas férias, depois voltavam trazendo palavras diferentes, roupas coloridas, às vezes outras paisagens em fotografias. Havia um vizinho que de vez em quando se ausentava por longo tempo. Era engraçado vê-lo sair, as malas em fila à espera de serem colocadas dentro do carro de praça, os pacotes espalhados pela calçada, a gordura do vizinho balançando nervosamente dentro das roupas novas. As crianças saiam para espiar o viajante, e até as mães e os pais apareciam meio sestrosos para desejarem “boas-viagens”. Como se fossem muitas, muitas viagens. E de repente ele, Maurício, agora se tornara ator, não mais espectador. De repente a avó morta, dentro de um caixão cheio de dourados, mais bonito que o de Luciana. De repente o pai dizendo à mãe: “Não tem mais nada que prenda a gente aqui neste fim de mundo. A gente precisa pensar é no futuro do guri.”
De repente uma fila de malas na calçada, os vizinhos dizendo coisas, e tia Violeta com o nariz tão vermelho quanto o vestido.
— Sai da janela, guri. Olha que passa uma ponte e tu perdes a cabeça. A mãe puxava-o pela manga do casaco. Ele obedeceu. Deslizou o corpo pela madeira até o banco duro, coberto por oleado verde. Exatinho da cor de um remédio contra a tosse. Olhou para a mãe, que fazia tricô. Parecia mais magra, mais baixa e mais triste sob o luto fechado. Teve vontade de dizer que gostava dela, mas essas coisas não se diziam.
— Papai, onde está? — perguntou.
A mãe suspirou:
— Já achou um conhecido. Deve andar no carro-restaurante, tomando cerveja. Carro-restaurante: Como uma jóia, a expressão cintilou.
— Carro-restaurante? Quer dizer, um restaurante inteiro dentro do trem? Com mesa, com garçom e tudo? Capaz!
— É — a voz da mãe era tão fraca que parecia também vestida de preto. — O que que tem?
— Puxa, é bacana. Nunca pensei que tivesse um troço assim. De repente ela sorriu e puxou-o para perto. Ele quis resistir. Nesses momentos, sem querer lembrava de Zeca e Laurinda. Queria dizer: “Eu já sei, eu já sei de tudo”, mas tinha a impressão de que, se dissesse, a mãe nunca mais o abraçaria. Ao mesmo tempo, queria e não queria ser abraçado. Pensou tudo isso tão lentamente que acabou cedendo. Afundou de leve a cabeça nas roupas pretas, aspirando com prazer aquele perfume de coisa guardada há muito tempo. Aquele perfume, sabia, estava preso dentro das bolinhas brancas que a avó costumava distribuir por toda a casa. Pensou nela, o coque branco, o álbum de fotografias entre os dedos murchos, o sorriso pregado nas rugas, e aquelas bolinhas brancas que, de tanto lidar com elas, acabaram por fazer parte de seu corpo, impregnando-o com o perfume-de-coisa-há-muito-tempo-guardada. O corpo da avó tinha aquele cheiro. E a avó estava morta. E ele já sabia de tudo. “Mamãe, eu já sei, eu já sei. Não adianta a senhora me abraçar assim, porque eu já sei.”
Bruscamente endireitou o corpo, levantou a cabeça. A mãe pareceu não se surpreender. Tornou a inclinar a cabeça, os dedos voltaram ao vaivém das agulhas. Era aquilo, justamente aquilo o que ele detestava nela: o não-surpreender-se. Nunca, com nada. Levantou-se, jogou meio corpo para fora da janela.
A voz de preto veio de dentro do vagão:
— Cuidado que uma ponte te arranca a cabeça.
— Não tem ponte por aqui — disse com raiva. — Se não tem nem rio, como é que vai ter ponte?
Agora ele não sabia mais se o cheiro que sentia era de naftalina ou do campo. Talvez nem fosse de nenhum dos dois, talvez fosse do céu azul enorme, daquela linha longínqua que separava o campo do céu. Ou talvez um cheiro vindo de muito longe, trazido pelo vento. Cheiro das terras que ele ainda não conhecia, dos lugares onde nunca estivera. Terras onde havia mar, aquela massa verde que ele conhecia imobilizada em fotografias de revistas, mas que sabia móvel e brilhante. Terras onde havia montanhas com neve salpicada, feito talco, montanhas limpas que recém tivessem tomado banho. Talvez o cheiro viesse das terras para onde o trem os estava levando. Mas lá não havia mar, nem montanhas, nem campos, sequer terrenos baldios onde pudesse cortar os pés em cacos de vidro. O que havia lá eram casas amontoadas, encimadas, iguais às caixas de sapato cheias de janelinhas recortadas com tesoura. O que havia era muita gente se batendo pelas ruas, e carros, e aparelhos poderosos que comandavam tudo com um só piscar de seus olhos amarelos, vermelhos e verdes. Barulho, havia lá, cheiro de gasolina e fumaça. Não aquele cheiro verde do campo, verde quase branco de tão claro, verde desmaiado, verde-malva. Cheiro que o obrigava a fechar os olhos, com vontade de rir da cócega que os cabelos despenteados faziam em seu rosto. Dentro de si, o que encontrava era também uma região vaga, impalpável, de cheiros verdes quase brancos. Formas esquivas, linhas que se perdiam contra céus de veiazinhas avermelhadas para se transformarem em outras coisas.
Abriu os olhos, ficou vendo as coisas que iam passando. Não era difícil imaginar que o trem estava parado, e as paisagens é que se moviam
rapidamente, como nos filmes que via aos domingos no cinema do seu Pico. “Filme besta”, pensou, “sem historia, sem música. Só campo, campo e mais campo”. De vez em quando algum rancho cortava a monotonia, mas logo se perdia, esmagado pelo verde plano do pampa. O gado que pastava além da cerca fazia-o lembrar da fazenda. Seria diferente, agora. Só voltaria ali nas férias, e seria olhado com aquele misto de desprezo, inveja e respeito com que eram encarados os “guris da cidade grande”. Ele se tornaria vagamente frágil, como um daqueles meninos que vinham passar as férias na casa do vizinho. Pareciam meninas, sempre calçados, de meias, às vezes até de gravata, unhas cortadas, limpas, cabelo lambido. Meninos que não matavam passarinho, nem jogavam bola, nem andavam com os joelhos e cotovelos escalavrados de esfoladuras. Talvez até precisasse usar óculos, como era o caso daquele menino ainda mais frágil que todos os outros. Sorriu. E apertou os olhos, para fingir que enxergava mal. “Mamãe, estou ceguinho, não enxergo nada, estou ceguinho, mamãe.” Da janela ao lado jogaram uma casca de laranja que passou raspando em seu rosto. Pensou em dizer um palavrão, mas ainda teve tempo de ver a casca rebrilhando ao sol antes de estatelar-se no chão, e calou se. A bunda de Zeca, também dourada, subia e descia sob o sol na hora da sesta.
Voltou para a mãe o rosto corado, a interrogação boiando nos olhos muito abertos. Mas calou-se. Tornou a sentar. Começou a examinar as pessoas que enchiam o vagão. Logo desinteressou-se. Homens sem rosto, mulheres quietas, crianças sem interrogações. Do espaldar do banco da frente subia o cabelo armado de uma mulher e a calva de um homem, por baixo da qual subia também a fumaça espessa de um cigarro de palha.
Torceu a boca com nojo, detestava aquele cheiro. Sem ver o homem, podia imaginá-lo: a unha do dedo mindinho maior e mais escura que as outras, presas nos dedos cabeludos, curtos e grossos. O bigode sombreando a boca de lábios arroxeados, ocultando uma infinidade de dentes de ouro. Desviou os olhos, outra vez, para a paisagem que deslizava pela janela.
Dava sono aquilo, aquelas coisas sempre iguais, escorregando devagarinho com um barulho de asa de mosca em dia calorento, misturado ao já-te-pego-já-te-largo da locomotiva. Luciana contava uma história assim;
nas histórias dela os príncipes, reis e princesas andavam de trem e ônibus, não só a cavalo. “Quando a gente gosta mesmo de uma pessoa a gente faz essas coisas. Faz até pior.” O que seria pior? A voz dela era rouca, baixa, triste. Ela chorava devagarinho, beijava loucamente um retrato. Os galhos retorcidos de um cinamomo dissolveram bruscamente a imagem.
Pegou o livro esquecido a seu lado, no banco, a capa verde confundida com o oleado. Edu dera todos para ele, antes de ir embora outra vez. Abriu ao acaso, era como se pudesse ouvir a voz do primo novamente. Passou devagar os dedos pelo desenho de um homem enorme, com cabeça de boi e chifres, ao lado da cesta com bolinhos da Tia Nastácia. Era fácil imaginar como era Tia Nastácia, Dona Benta também. E os outros todos. Só não conseguia imaginar direito Emília, magrinha, espevitada, implicante. Pensou em si mesmo, quis achar-se parecido com Pedrinho. Impossível: Pedrinho era corajoso des-te-mi-do, soletrou —, ele não. Uma vez tentara fundar um Sítio do Pica-Pau Amarelo na fazenda, mas não deu muito certo. Ele era Pedrinho; o Visconde, um sabugo de milho; Emilia, uma boneca velha de tia Violeta; vovó, Dona Benta. Com um pouco de imaginação, siá Zefa preenchia razoavelmente o papel de Tia Nastácia. Rabicós havia aos montes pelo pátio. Ficava faltando Narizinho. Maria Lúcia já tinha ido embora. Pensou em convidar Laurinda, mas havia Zeca. Não havia lugar para ele, e Narizinho não faria aquelas coisas. Ainda mais na beira da sanga, do Reino das Águas Claras, com o príncipe Escamado vendo tudo. O sítio morreu antes de nascer. Maurício fechou o livro, colocou-o de volta sobre o banco.
De repente percebeu que o homem do banco em frente levantara. E que restavam poucos homens pelos outros bancos, quase só velhos e meninos, além das mulheres.
— Mãe, cadê os homens, hein? Aqui só tem mulher.
A mãe levantou os olhos do tricô.
— Estão no carro-restaurante — informou.
Carro-restaurante — de novo a palavra mágica. Que fariam os homens lá? Beberiam cerveja, jogariam cartas, usariam aquele vocabulário com termos que ele não entendia — governo, presidente, eleição, patifaria. Havia também outras palavras, mais misteriosas, pronunciadas baixinho,
sublinhadas por risadas esquisitas. E havia alguma relação entre essas outras palavras e aquilo que vira na fazenda entre Laurinda e Zeca, ele sabia. Só não sabia exatamente o quê, e por que riam daquilo, por que precisavam falar baixinho e disfarçar quando ele aparecia, dizendo coisas como “Cuidado, rapaz, olha o guri”.
Guri. Tenho doze anos, disse em voz baixa. E voltou-se para ver sua imagem refletida no vidro da janela. O vidro estava levantado, via apenas o campo. Então examinou-se, baixando os olhos. As calças compridas que ganhara para a viagem talvez tivessem mudado alguma coisa. O chapéu novo também. Ergueu-se decidido. A mãe o deteve:
— Onde é que tu vais, Maurício?
— Dar uma voltinha.
— Mas onde?
Ele fingiu vergonha, olhou para os lados, apertou as pernas e disse baixinho: — No banheiro. Tô apertado.
— Sabe onde fica?
— Claro.
— Cuidado, hein?
Desprendeu-se com sofreguidão das recomendações e caminhou em direção à porta. Engraçado caminhar no trem. O balanço jogava a gente de um lado para outro, as caras das pessoas sentadas se aproximavam e se afastavam, misturadas numa só, esfaceladas em várias cada uma. Era preciso agarrar-se com força ao encosto dos bancos para não ser jogado no chão. E dava um pouco de nojo tocar naquele oleado verde igual ao remédio pegajoso para tosse. Maurício tinha a impressão de que os bancos melavam sua pele.
Abriu a porta, saiu para a plataforma. Respirou com vontade o vento que abria caminho por suas narinas, inundando os pulmões de ares trazidos de terras distantes. Olhou para baixo. O chão disparava vertiginoso entre os trilhos negros. Dava certa tontura olhá-lo assim, de cima, passando, parecia que já ia cair. Segurou-se no ferro, passou para outro vagão. Os rostos que se esquivavam, subitamente se davam, próximos, para outra vez recuarem e
se perderem. Alcançou a porta. Saiu para o outro vagão. Os carros se sucediam, quase sempre as mesmas caras.
De olhos fechados, guiado apenas pelos cheiros, poderia fazer a mesma caminhada sem medo de errar. Era o cheiro-sem-cheiro e comprido dos carros, entrecortado pelo perfume de ervas que o vento trazia nas plataformas e, logo depois, o odor inconfundível dos banheiros, mijo seco e desodorante ordinário.
Então abriu outra porta e viu o grande balcão, com o vidro cheio de delícias desconhecidas, os banquinhos redondos, as mesas e, principalmente, os homens fumando cigarros de palha com suas unhas compridas no mindinho, seus dentes de ouro, seu vocabulário estranho, cochichos roucos. Por um momento, sentiu-se perdido em meio àqueles cheiros e formas diferentes do carro-restaurante. Logo enxergou a figura do pai. Com certo alívio, caminhou para ele. Estacou a dois passos. Ouvira a voz dele e percebera que estava falando daquele jeito que usava com pessoas desconhecidas. O “erre” forçado no fim dos verbos, os pronomes colocados hesitantemente eram sinal de que há muitos anos não encontrava o outro homem que estava com ele.
Alguém empurrou-o ao passar. Sem querer, viu-se à frente do pai. O homem de braços cabeludos que estava com o pai apontou para ele com um sorriso. — É este o piá?
— Ele mesmo — disse o pai.
— Logo se vê. É a tua cara — exclamou o outro homem, puxando-o para perto de si. — E bem taludo, já.
Maurício não conseguiu esquivar-se. O homem levava a mão enorme ao meio de suas pernas, apalpava e perguntava em voz baixa, exatamente naquele tom de voz:
— E como é que é, a vara já está empenando?
Ele e o pai deram uma grande risada. Maurício encolheu-se, sem compreender. Pela camisa aberta do homem podia ver o peito, cabeludo como os braços. E continuava a falar com ele:
— Puta merda, se tu saiu pelo teu pai, meu guri, vai ser um chineiro de primeira ordem! Sabe que foi ele que me levou na primeira tasca que eu fui? —Voltou-se para o pai, que tinha uma ruga entre as sobrancelhas grossas: — Tu lembra da Neivinha? Barbaridade, ôi guriazita boa de cama, seu! Sabe que nunca mais encontrei uma como ela? Serviço completo, e olha que o meu é mais grosso que dedo destroncado. — Tornou a voltar-se para Maurício: — Como é que é, já deu a primeira esporreada?
Maurício olhou em volta, buscando nos olhos dos outros homens uma resposta, uma ajuda qualquer para compreender as coisas que o homem dizia. O pai pigarreava.
— E ainda não dormiu com nenhuma china? Pede pro teu pai te levar um dia desses. —Voltou-se para o pai: — Naquele tempo tu tinha a fama de ter a maior vara do quartel.
O pai baixou os olhos, sorrindo de um jeito vago. Maurício corou. O homem alisou-lhe o braço com a palma grossa da mão:
— Sabe, tenho uma guria bem da tua idade. Quem sabe se isso ainda não vai dar cama um dia, hein?
Cutucou o pai, e ambos ficaram a observá-lo de um jeito que o fazia sentir-se ainda mais atrapalhado.
— Teu guri é macanudo, mas tá meio flaquito. —A mão calosa descia pelas pernas. — E meio envaretado, também. Olha aí, não falou água.
— É a idade — disse o pai. — Ele é muito quieto mesmo.
— Que idade, que nada. Sabe que do tamanho dele eu já tinha barranqueado todas as éguas da invernada? Toma cuidado, hein, senão é capaz de virar maricão.
— Que nada, Barbosa, é que ele gosta de andar solito e de ler.
Maurício olhou com raiva para o pai. Era como se ele o estivesse desnudando ali, na frente de todos os outros homens. Cavalo, rosnou baixinho. Cavalo cavalo cavalo. E não sabia se sentia raiva do pai ou do outro homem. Olhou para o pai, indeciso, e logo sentiu a raiva ir embora ao vê-lo lutando com os “erres” e os pronomes. Sentiu-se vingado do homem ao observar que tinha a pele avermelhada e uma verruga enorme no queixo, com um fio de cabelo. Se Emília estivesse aqui seria capaz de querer
comprá-la, pensou. E riu. Os dois homens já haviam esquecido dele, metidos que estavam num daqueles diálogos tão excitantes quanto incompreensíveis.
Foi recuando aos poucos. Quando deu por si já saíra do vagão e enfrentava o vazio da plataforma. Já-te-pego-já-te-largo, gritava o trem, a terra corria vermelha entre os dois trilhos negros. Sentou no chão de ferro, enterrou o queixo nas mãos. Vara empenando. Chineiro. Tasca. Neivinha. Cama. Boa de cama. A mãe seria boa de cama? E tia Violeta? E tia Mariazinha? E a avó? Lembrou-se de súbito que a avó tinha morrido. Benzeu-se, rezou atropeladamente uma ave-maria. Seriam boas de cama, todas elas? Neivinha era. E Laurinda? Laurinda era boa de grama, descobriu de repente, julgando compreender. Juntou uma porção de saliva, cuspiu no ar, mas o vento devolveu-a, achatando-a contra o próprio rosto. Limpou-a devagar com a manga da camisa, e mudou de pensamento.
O lugar para onde estavam indo, como seria? Melhor ou pior? De repente lembrou-se de todas as pessoas que tinham ficado para trás, que estavam ficando cada vez mais para trás, a cada estalido que o trem dava, a cada árvore que nascia do vagão da frente para logo sumir por trás do vagão seguinte. Desejou ter todas aquelas pessoas a seu lado para juntos desvendarem os mistérios da cidade grande que se aproximava. Depois pensou que iria ver pessoas novas, outras caras, outras casas. Até a sua própria casa seria diferente. E os meninos do colégio. E o teto, a primeira coisa que via ao acordar, o chão onde colocaria os pés, toda manhã, o caminho percorrido para ir até o colégio. De bonde, bonde devia ser feito um trem pequeno. Tudo diferente. Um arrepio dançou pela espinha abaixo, ele não sabia se medo, frio ou simplesmente o cansaço de estar sentado naquele chão de ferro.
Levantou-se de repente, alguém abria a porta. Um dos homens com o uniforme da Viação Férrea apareceu no vão descoberto entre o carro e a plataforma.
— Cuidado, guri. Vai acabar caindo desta bosta.
A voz era estranhamente desligada. Maurício entrou no banheiro, fechou a porta. Era desagradável aquele apertume, aquele cheiro. Aquele espelho na parede, revelando todos os movimentos, quase como se os
antecipasse, num duelo de velocidade entre a imagem refletida e o corpo vivo. Abaixou as calças até os joelhos, ficou examinando o próprio sexo. “Como é que e, a vara já está empenando?” Teve pena dele, perdido na palma da mão. Uma coisinha mole, insignificante. Apertou-o devagar, ele cresceu, enquanto deslizava a outra mão pela barriga, numa carícia lenta. Um arrepio nascia não sabia de onde, assim, e sem querer imaginava Zeca e Laurinda, sem querer, Laurinda e Zeca, um sobre o outro, a moeda fulva rebrilhando, a rosa úmida, a rosa negra, a vara empenando, vaivém, já-te-pego-já-te-largo, para dentro, para fora, para longe. Cerrou os dentes, quase entregue ao arrepio que crescia. “Como é que é, já deu a primeira esporreada?” O leite branco, visguento, saindo de dentro de Zeca.
Então o trem apitou, tudo se desfez. Tornou a erguer as calças, lavou as mãos com cuidado e saiu da cabine. A mãe continuava tricotando quando ele sentou a seu lado. “Mãe, me explica tudo, mãe”, teve vontade de pedir. Não disse nada. O arrepio serenava aos poucos, as dúvidas caíam no fundo do pensamento como poeira cansada, dando lugar a uma espécie de tristeza.
— Mãe — chamou.
Ela levantou os olhos.
—Quê?
— Nada — ele disse. Pegou de novo o livro. Abriu-o na mesma página de antes, tornou a passar a ponta do dedo pelo corpo do monstro de guampas, comendo bolinhos. Bolinhos de Tia Nastácia. “Que pena a gente não poder fazer um sítio”, pensou vagamente. E começou a ler.

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