DIÁRIO VII

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21 de maio
Hoje, sem motivo, lembrei de Edu. Do tempo em que eu era criança e só o via durante as férias. Como ele era superior aos outros, como era mais puro. Tenho a impressão que Edu poderia me ajudar — e muito — se morasse aqui. Mas não mora, eu tenho de me arranjar sozinho.
Fui ao cinema à tarde. Entrei sem olhar os cartazes, sem saber o nome do filme. Era um western, um bangue-bangue horrível. Detesto. Acho tão idiota aquele bando de homens a correr o tempo todo, trocando tiro, num tempo que já não existe mais, num outro país, sem nada a ver com a nossa realidade. Mas o pior não foi isso: encontrei um colega de aula e fui obrigado a suportá-lo durante duas horas. Uma dupla tortura, não sei qual a pior. Roberto, chama-se ele.
Odeio pessoas ignorantes. Me sinto mau por não conseguir gostar de todo mundo, mas é o que sinto. Os ignorantes, os vaidosos, os usurários, os pedantes. Detesto tudo que é afetado, detesto quem não se busca. Quem se acostuma a viver, da mesma maneira como se acostuma a dormir ou comer. Viver fica uma coisa automática, pouco importante boa ou má, vazia ou não. Basta viver, como uma obrigação da qual não se pode fugir.
Por isso admiro os suicidas. São pessoas que conseguiram descobrir alguma coisa de si mesmas, apenas não tiveram coragem de enfrentar essa descoberta. E, como se ela lhes desse vertigens, deixaram-se despencar no abismo. Mas são mais dignos do que esses que simplesmente se amoldam, em exigências, em perspectivas,mas também em queixa. Lógico, se não pedem nada, queixas de quê? Roberto me deixou pensando que não é possível amar toda as pessoas, se pensarmos em cada uma delas como uma individualidade. Pode-se amar as massas, a grandes massas humanas sem
feições, nem formas, nem cheiros — sem as palavras vazias de quem sequer tem a consciência de ser uma pessoa.
Fico me debatendo entre essa idéia e a de que todas as pessoas são iguais, sem conseguir me decidir por nenhuma delas. Pois se cada pessoa faz a si mesma, se é ela quem escolhe entre ser um rebelde ou um medíocre, entre ser culto e um ignorante a vida inteira — se é assim, então não vejo possibilidade de “amar” todos. Cada um é plenamente responsável por aquilo que é? Mas sei, há os problemas sociais, existem oportunidades diferentes para quem nasce numa favela e para quem nasce numa família burguesa. Fiquei com certo sentimento de culpa por ter tratado mal o Roberto. Fui frio com ele, respondi por monossílabos ao que me perguntou. E só mesmo por ser tão idiota não percebeu que eu estava fazendo tudo para que me deixasse em paz.
Sei que tudo isso é tremendamente confuso, incoerente. São sentimentos que absolutamente não combinam entre si, é preciso optar por uma ou outra forma de pensar. Não sei, dependendo do momento e da pessoa, penso de uma maneira diferente. Tenho vontade de viver só, ser auto-suficiente, dispensar o auxílio de qualquer pessoa — e também vontade de conhecer todo mundo, ajudar, ser ajudado. Dividir.
Não há uma verdade única. Há uma verdade por dia, ou pior ainda, mais complicado: uma verdade por hora, a vezes até mil verdades num minuto. Quando a gente hesita em fazer e não fazer determinada coisa, esse debate no meio de conceitos encravados no cérebro, no meio de idéias próprias e alheias, recusa-se aceitações — labirintos de verdades que não mostram as faces mesmo depois do ato feito.
Não sei se será possível a gente escolher as próprias verdades, elas mudam tanto. Não só por isso, nossas verdades quase nunca são iguais às dos outros, e é isso que gera o que chamamos de solidão, desencontro, incomunicabilidade. Talvez a maneira como me debato seja natural, e até positiva. É possível que eu parta daí para um conhecimento maior de mim mesmo. Então estarei livre. Acho que meu mal sou eu mesmo, esses círculos concêntricos envolvendo o centro do que devo ser. Mas só poderei me aproximar dos outros depois que
começar a desvendar a mim mesmo. Antes de estender os braços, preciso saber o que há dentro desses braços, porque não quero dar somente o vazio. Também não quero me buscar nos outros, me amoldar ao que eles pensam, e no fim não saber distinguir o pensar deles do meu.
Criar alguma coisa, como eu queria. Novos mundos, outras vidas. Não para fugir dos meus, mas para projetá-los em outros, para enriquecê-los e descobri-los. Mas quando sento em frente ao papel em branco o que aparece na palavras é só eu, eu e mais nada. E o papel em branco parece uma boca escancarada, mostrando os dentes, rindo da minha pretensão. Ao mesmo tempo alguma coisa em mim não consegue desistir, mesmo depois de todos os fracassos. E tento, tento. Falta gosto de carne, cheiro de suor nos personagens que invento. Não desisto. Um dia, um dia, quem sabe? Pode ser que esteja no escrever a resposta de tudo o que persigo.
Acreditar, só preciso acreditar um pouco mais em mim.

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