O ovo apunhalado

0

Para ler ao som de Lucy in the Sky with Diamonds,
de Lennon & McCartney.

“Ao ovo dedico a nação chinesa.”
(Clarice Lispector: A legião estrangeira)

Ele saiu da moldura e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio inferior, mas nada aconteceu: os carros passavam por cima da minha imagem refletida nas vidraças, os carros corriam e a minha imagem mordia o lábio inferior. Quando tornei a me voltar, ele continuava ali, a casca branca, as linhas mansas de seu contorno: um ovo. Disse-lhe isso — mas ele não parou —, você não vê que não tem a menor originalidade — e ele não parou—, todos já disseram tudo sobre você, qualquer cozinheira conhece o seu segredo.
Foi então que ele se voltou meio de lado, sobre a base mais larga, num movimento suave e um pouco cômico, como uma dessas mulheres de ombros caídos, seios pequenos, quadris fartos e pernas grossas. Eu comecei a rir e disse que tinha tido uma namorada assim, e como se não bastasse, ainda por cima se chamava Marizeti, veja só: Vera Marizeti. Mas ele não interrompeu o movimento. Continuou a voltar-se, até que eu pudesse ver o punhal cravado em seu dorso branco. Não gritei, não um desses gritos de voz, mas alguma região dentro de mim estremeceu num terror e numa náusea tão violentos que a dona da galeria voltou-se e me encarou de repente, com um ar pálido.
Que foi, ela disse. Eu disse: é um bonito ovo, não é um ovo como os outros. Ela aproximou-se sorrindo, parou ao lado dele e estendeu um braço por cima de sua casca, tão desenvolta como se nunca em sua vida tivesse feito outra coisa senão apoiar-se em ovos apunhalados. Não é mesmo? disse. Tão liso, tão oval, veja como sua superfície é mansa, veja como minha mão desliza por ela, sinta como ele vibra quando eu o toco, agora veja como ele incha todo e parece aumentar de tamanho, veja como meu corpo se encosta ao dele, veja como minha boca se abre e minha língua freme, ouça esse gemido saindo de minha garganta, toque meus olhos fechados, acompanhe os movimentos de meu corpo contra o dele, observe como minha carne morena se confunde com sua casca branca e como eu enterro as unhas na sua superfície macia, e como eu o atraio para mim e como nos confundimos, até que eu me torne numa coisa entre ovo e mulher, ovomulher, enquanto ele se torna numa coisa entre mulher e ovo, mulherovo, e como rolamos juntos pelo tapete, prove a espuma roxa que escorre da minha boca, não tenha medo: venha, veja, toque, sinta, seja.
Como se atreve, como se atreve? eu gritei, eu gritei então um grito de voz, de garganta, de estômago, de víscera. Mas eles não ouviram. Rolavam pelo tapete verde, sem se importarem com os encontrões que davam nas esculturas. Algumas pessoas se aglomeravam na porta, e foi com dificuldade que consegui abrir caminho entre elas, afastando braços, pernas, sacolas recheadas de tomates maduros que escorregavam pelas bordas, achatando-se contra o chão de cimento. Esbarrei num guarda e parei em frente a um cinema. Fiquei olhando os cartazes sem ver os cartazes, ouvindo sem ouvir uma música que vinha da casa ao lado. Levei o braço até a cabeça para ajeitar uma mecha de cabelo que o guarda havia desarrumado, mas detive o gesto no momento em que percebi a esteira colorida que meu braço ia deixando no ar. Então houve um momento em que os cartazes se tornaram apenas cartazes, a música apenas música, e o meu braço não ia além de um braço parado no ar, em meio a um gesto interrompido.
Por favor, eu disse para ninguém — e comecei a contar para mim mesmo uma história que só eu conhecia. Uma história assim: ao lado da minha casa, moram uns meninos que passam o dia inteiro ouvindo música. A música é quase sempre esta: you may say I’m a dreamer but I’m not the only one imagine there’s no countries nothing to kill or die for all the people living in peace . É bonita, a música. Os meninos também. Bonitos, eles são bonitos, quero dizer. Claro, nunca falei com eles. Acho mesmo que nunca prestei bem atenção na cara de algum deles, mas eu sei que são muito bonitos. Uma tarde eu coloquei uma cadeira de balanço no pátio de minha casa e fiquei ouvindo essa música. Tinha umas roupas brancas corando no varal, um sol forte batendo bem na minha cara, eu comecei a suar, mas não tinha importância: eu queria ficar ali, no meio das roupas brancas, sentindo o sol quente bater na minha cabeça, balançando a cadeira e ouvindo aquela música. Quando o sol estava se tornando insuportável — porque sempre chega um momento em que até o bom se torna insuportável —, quando chegou esse momento eu olhei para a janela deles e vi uma menina me olhando atrás das grades. Quando ela viu que eu olhava, começou a erguer devagar a blusa, uma blusa curta, cheia de listras coloridas, e me mostrou os seios. Entre os seios recém-nascidos, havia um ovo com um punhal cravado no centro de onde escorria um fio de sangue que descia pelo umbigo da menina, escorregava por cima do fecho da calça e pingava devagar bem no meio da clareira de sol onde eu estava.
— Meu nome é Lúcia — ela disse. — Eu estou no céu com os diamantes.
A minha cabeça gira. Não. A minha cabeça não gira. A minha cabeça cresce e se derrama pela rua e eu fico vendo as pessoas caminharem por entre meus cabelos. No começo elas têm alguma dificuldade, mas sorriem e vão afastando pacientemente os fios, mas os fios aumentam e se tornam cada vez mais espessos, mais intransponíveis. Então as pessoas se enfurecem, apanham foices, tesouras, facas, agulhas, e voltam com ódio saindo pelos olhos, e enquanto eu me deito sobre o asfalto elas vão cortando e furando meus cabelos que não param de crescer sobre a cidade de pessoas enfurecidas.
É difícil chegar até a beira da calçada, fazer sinal para o táxi, ouvi-lo frear, correr, abrir a porta, sentar, dar o endereço ao motorista e pedir que ande depressa porque as pessoas armadas batem contra as vidraças do carro, e eu digo ao motorista que corra, que corra. Então ele corre e eu jogo meu corpo contra o assento, e abaixo a cabeça no momento em que um tomate maduro vem esborrachar-se contra o plástico vermelho. O vermelho do plástico suga o vermelho do tomate: estou sentado sobre tomates esborrachados, mas não quero pensar nisso, é preciso que o motorista não perceba.
Então, para disfarçar, digo ao motorista que me sinto sozinho. Mas ele não ouve, e eu entendo que desse jeito não irei muito longe. Então pergunto a ele sejá leu Goethe, se já leu Werther. Ele pergunta o que, mas faço que não entendo — retiro do bolso uma edição portuguesa de 1916 e digo que ele deveria ler, que ele não sabe o que está perdendo, e abro à toa e leio um trecho assim: Ella não vê, não sente que está preparando um veneno que será mortal para ambos nós. E eu... bebo com avidez, com soffreguidão, a taça fatal que ella me apresenta. O que significa o meigo olhar com que muitas vezes me contempla? Ela se chama Lúcia, esclareço, mora ao lado da minha casa e costuma estar no céu com os diamantes. Mas julgo perceber um brilho assassino nos olhos que me espreitam pelo espelho retrovisor. Fecho o livro, sorrio um sorriso compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante — é, eu sou assim quase o tempo todo, compreensivo, bem-educado, discreto, tolerante. Cruzo as pernas e os braços, sei que é preciso tentar novamente, prendo no bolso o tentáculo que insiste em escapar de minha cintura e digo que Cleópatra era apenas uma prostituta, bem como dois e dois são cinco, também como a soma do quadrado dos catetos, o próprio binômio de Newton que, dizem, é mais bonito que a Vênus de Milo, apesar de Angela Davis ter sido a melhor aluna de Marcuse, para ser bem claro, exatamente como aquele umbu no pátio da casa de minha avó e, concluindo, para dizer a verdade, bem, não costumo ser assim o tempo todo...
O carro pára e o motorista me olha: sua cara é um ovo macio, redondo, liso e branco, com um punhal fincado no centro. Sorrio para ele, bato-lhe devagar no ombro, querendo dizer que compreendo, que não tenho preconceitos. Pago e desço e entro em minha casa e corro para o pátio, sento na cadeira de balanço e fico ouvindo a música. Mas não há música. O varal está vazio e não há mais sol. O sol acabou de se pôr. A casa ao lado está vazia. Olho para a janela. A janela tem grades. Olho para trás das grades, onde estava a menina de seios nus. Ela se chama Lúcia e, naquela tarde, estava no céu com os diamantes. Mas não há nada lá. Sobre o muro está sentado um ovo de pernas cruzadas.
Sorrio para ele e digo: olá, Humpty-Dumpty, como vai Alice? Mas ele descruza as pernas e arma o salto. Pressinto que vai cair sobre mim e corro para a cozinha. Atravesso a cozinha, a sala, o corredor, olho por cima dos ombros e vejo que ele não me segue, talvez porque minhas vibrações coloridas tomem toda a passagem atrás de mim. A cozinha, a sala e o corredor estão cheios de eus azuis, vermelhos, amarelos, roxos, eus brilhantes que deslizam e flutuam e se fundem uns com os outros, e depois se desdobram em vários outros eus ainda mais coloridos e mais brilhantes que deslizam e flutuam. Gostaria de ficar olhando para eles, mas lembro do ovo, empurro a porta do banheiro, encosto meu corpo em sua superfície quando ela se fecha sobre mim: agora a câmara se aproximaria em zoom e daria um dose nas minhas narinas ofegantes, meus olhos esgazeados, uma gota de suor escorrendo da testa, depois baixaria até as mãos e ficaria fixa durante algum tempo, as minhas mãos crispadas contra a madeira da porta. Acho tão bonito que quero ver meu rosto espavorido no espelho. Olho meu rosto espavorido no espelho: a gota de suor não é uma gota de suor, é uma gota de sangue. As minhas narinas ofegantes não são narinas ofegantes, são o cabo de bronze de um punhal. E meu rosto espavorido não é um rosto espavorido. É um ovo.
Ele saiu do espelho e veio caminhando em minha direção. Olhei para outro lado, mordi o lábio. Quis brincar com ele, cheguei a sorrir, perguntei se queria ouvir uma história, movimentei meu braço, veja como são bonitos esses outros braços coloridos que ele vai deixando atrás de si, veja como são evanescentes, não é linda essa palavra? e-va-nes-cen-tes, veja como sei fazer caras engraçadas, veja os meus eus coloridos escorregando por baixo da porta, ouça minha voz dizendo todas essas coisas, sinta como ela ressoa cristalina pelos azulejos azuis do banheiro, não é interessante? cristalina crista cristal sua casca também é de cristal cristalina Krishnamurti, veja que relações loucas eu faço, veja como eu vibro, como eu vivo, como eu vejo: veja.
Mas ele não se move. Está parado à minha frente e volta-se devagar para que eu fique cara a cara com o punhal cravado em suas costas. É quando julgo perceber nele uma espécie de súplica: socorra-me, poupe-me, abrevie-me. Agora é um ovo delicado, tenro, humilde, e não tenho medo, e sinto pena dele, quase ternura. Então estendo os meus muitos braços coloridos e toco no cabo de bronze do punhal. A sua casca está manchada pelo fio de sangue coagulado. Hesito um pouco, mas fecho os olhos no mesmo momento em que meus dedos se cerram em torno do punhal. Meus olhos são janelas, minhas pálpebras grades, minhas mãos tentáculos, meus dedos ferro. Uma breve hesitação, depois empurro lento, firme. E sinto uma lâmina penetrando fundo em minhas costas, até o pesado cabo de bronze onde dedos comprimem com força, perdidos entre as espáduas. Lúcia grita, mas é tarde demais. Vejo minha casca clara partir-se inteira em cacos brilhantes que ficam cintilando pelo chão do banheiro. O sangue escorre e eu, agora, também estou no céu com os diamantes.

Ler mais »

0 comentários: