A VOLTA

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Antes de abrir a porta, Maurício sentiu o movimento incomum dentro de casa. Hesitou um pouco, depois abriu devagar. A mãe segurou seu braço, excitada: — Maurício, tu nem imaginas, uma surpresa: adivinha so quem está aí. Atordoado, ele largou os livros sobre a mesa.
— Quem? Tia Clotilde? Maria Lúcia? — perguntou. Mas não era preciso ouvir a resposta: uma figura conhecida avançava por trás da mãe.
Os braços o apertaram com força, enquanto a boca dizia coisas que soavam alegres. Assim, esmagado contra aquele corpo, não conseguia enxergar suas feições. O que sentia era um nojo — não do outro, nem de si mesmo, mas do contato suado e exausto entre os dois.
— Puxa, como você cresceu, menino. A última vez que te vi, você ainda era um garoto chato, cheio de perguntas. Esta um homem.
Na cara gorda, coroada por cabelos claros e ralos, somente o azul dos olhos conseguira vencer o tempo. Confuso, Maurício baixou os olhos para os dedos de Edu, mas logo tornou a erguê-los. A aliança apertava um deles, como uma mulher gorda com cinto justo demais. A mãe girava em volta, dando explicações, jogando-os um para o outro.
— Mas a gente não estava te esperando, Edu — Maurício falou. — Mamãe pensou que só vinham tia Clotilde e Maria Lúcia. Que foi que te deu?
— Nada de mais. Vontade de vir também. Fazia um bocado de tempo que não via vocês. Esfregava as mãos, de vez em quando dava palmadinhas amigáveis nas costas de Maurício. — Mas e você, o que tem feito? Faculdade? E como vão os estudos?
Não esperava pelas respostas. E não o olhava nos olhos. Maurício apenas sacudia a cabeça, numa mistura de confusão, impaciência — e náusea, a náusea continuava. Tia Clotilde chegou por trás, abraçou-o.
— Maurício, como é que vai você?
A voz estridente, as mesmas perguntas, os abraços, as respostas falsas, o constrangimento.
— Bem, tia, muito bem. E a senhora, como foi de viagem? Mamãe já estava preocupada, achando que não vinham mais. E Maria Lucia, não veio?
Então, como uma atriz que aguardasse a deixa para entrar em cena, a prima surgiu de repente do interior do apartamento. Estendeu a mão sem nenhuma palavra, e ele teve vontade de sorrir ao lembrar da menininha de fita esfiapada que insistia: “Deixa eu brincar também, deixa?” Agora, parecia pedir para brincar de adulta: “Deixa, Maurício, deixa? Só um pouquinho.” E apertava a mão que ele estendia. “Estamos de mal para toda a vida. Vou contar para a sua mãe e ela vai dar uma bruta surra em você.” Mas ele sorria, aceitando-a em seu papel de gente grande, e ela sorria também.
Maria Lúcia parecia a única coisa autêntica naquela encenação toda. Examinou-a disfarçado, e surpreendeu-se ao perceber que não correspondia à idéia que fazia dela. Os olhos grandes eram sérios, escuros, quietos. Os cabelos lisos divididos ao meio, caídos pelas costas, a boca de cantos um pouco duros não sugeriam superficialidade. Magra, longa, era bonita de um jeito estranho como se não se importasse com isso e fizesse para dar a impressão contrária.
A mãe observava o silêncio dos dois. Parecia preocupada, a espera de que ele a ferisse de alguma forma. Encarou-a rapidamente e leu nos olhos dela: “Maurício, por favor, não.” Resolveu concordar, menos por bondade do que pelo gosto de surpreender. Os outros também pareciam esperar que ele fizesse ou dissesse alguma coisa incômoda. Desconfiou que a mãe já andara distribuindo suas confidências, espalhando lágrimas e queixas. Disse:
— Como vai, Maria Lúcia? Tudo bom?
— Tudo bom — ela respondeu sem sorrir.
Houve como um alívio descendo sobre os outros, que começaram a agitar-se outra vez. A mãe arrastou a irmã para a janela, derramando mágoas reprimidas. Maria Lúcia sentou-se no sofá, folheando uma revista. Ele parou por um momento no meio da sala sem saber o que fazer. Por trás da janela, era maio, havia sol e vento, algumas folhas caídas de algumas árvores — então teve vontade de precipitar-se para a porta, sair novamente para a rua. Estava ainda ofuscado pelo excesso de luz, e tudo ali dentro parecia diluído e sombrio. Eduardo o salvou, tomando-o pelo braço.
— Então, rapaz, como vai a vida?
Eduardo dizia, exatamente, as coisas que devia dizer. Encarou-o desanimado, e lembrou de uma conversa, certo dia, à hora da sesta, no tempo em que Edu era um herói. Teve quase ódio do primo. Por que havia voltado? Por que não continuar para sempre aquele Edu da memória? No mesmo tom desinteressado, respondeu:
— Vai-se indo...
— ... como Deus quer — tentou completar Edu.
— Deus? Deus não tem nada a ver com isso.
Eduardo olhou-o surpreso. Certamente, pensou, o primo não esperava que ele tivesse idéias próprias e, menos ainda, que se atrevesse a demonstrá-las. “Quero mostrar”, pensou, “quero mostrar a ele e aos outros. A todos”. Não sabia exatamente o que queria mostrar, mas encolhia se numa defesa eriçada, prestes a atacar. Sentiu que Eduardo hesitava entre levá-lo a sério e zombar. Mas quando o primo voltou a falar, viu que estava demasiado surpreso para conseguir enfrentá-lo. Limitava-se a perguntar, sorrindo ainda:
— Hum... não me diga que você virou ateu.
— Por que não?
Ateu, comunista, eram coisas que chocavam facilmente, e não tinha medo de recorrer a elas quando queria chocar. Só mais tarde, sozinho, refletia que aquelas coisas não eram somente palavras às quais podia recorrer para defender-se daquela massa sempre pronta a julgar e a rir, que formava “os outros”. Eram maneiras de ver o mundo, convicções. Olhou pela janela. Estava perturbado, e odiava estar perturbado. Queria sentir-se superior a todos eles. “Comecei mal”, pensou. “Estou agindo como uma criança.”
A cabeça baixa, Eduardo esperava a nova agressão. Maurício foi até a mesa, apanhou os livros. Ao passar por ele, disse:
— Com licença, vou lavar o rosto. Depois volto pra gente bater um papo. Foi até o quarto, atirou os livros em cima da cama. Depois entrou no banheiro, abriu a torneira, deixou a água escorrer pelos pulsos. “Edu, Edu”, repetiu em voz baixa. Mas a imagem da memória era a do rapaz esguio, de olhos azuis e dedos longos — não a do adulto quase calvo, cheio de banhas incipientes e palavras convencionais. A imagem da memória trazia também uma tarde perdida no tempo, de contornos esmaecidos pela névoa dos anos. Havia uma mancha de sol, um quadro e um cavaleiro que chamava — mas não, isso fora depois. Os detalhes misturavam-se, sem cronologia. Mesmo assim, houvera um quadro, um quadro e duas frases: “Sabes o que é uma burguesia decadente?” e “És o único que tem possibilidades”. Mas havia
grandes vazios que o pensamento não preenchia, e o que restava eram imagens vagas, palavras soltas, gestos indefinidos.
A água escorria pelos braços, Maurício desejou que ela levasse também o desencanto junto com a poeira. O cheiro do sabonete subiu até as narinas, como se prometesse deixar tudo limpo, tudo cheiroso. Mas a memória continuava a dar voltas, trazendo lembranças que pareciam papéis voando num dia de vento norte. Então ergueu a cabeça para ver-se refletido no espelho. Aproximou mais o rosto. Visto de perto, formava apenas um conjunto de poros demasiado abertos, algumas espinhas, fios de sangue quase imperceptíveis nos olhos, pontos de barba nascendo. Não reconhecia como seu aquele rosto. Afastou-se alguns passos, o rosto reintegrava-se em sua aparência cotidiana. Parecia mais limpo, mais belo e até mais rosto visto de certa distância.
Talvez, pensou, talvez o tempo tivesse agido da mesma maneira com a imagem de Edu, deformando feito o espelho. Mas não — o Edu de agora era gordo, quase calvo, a aliança apertada como cinto no dedo, o cheiro de suor, alguns dentes postiços que só se mostravam quando ele sorria —, esses eram os traços que formavam o Edu de agora. O antigo não existia mais. Mauricio sacudiu a cabeça: “Não existe mais”, repetiu, “não existe mais”. Depois completou: “Como isso que sou agora também não existirá mais um dia”. E assim todas as coisas, e todas as pessoas — isso era o tempo, o tempo que deformava e apodrecia tudo, todos.
A água continuava escorrendo. Teve vontade de chorar, resistiu. “Não por esse sujeito”, pensou. Pelo outro, pelo Edu que desaparecera, talvez. Mas aquele, o antigo, já estava morto há muito tempo. Qualquer lágrima, qualquer pensamento, qualquer flor seriam inúteis. A água escorria, o ruído enchia o banheiro, os ouvidos, o peito. A tarde antiga ainda espreitava, guardada na memória. De repente a voz da mãe atravessou a porta:
— Maurício? Está na mesa, vê se te apressa.
Mentalmente, ele traduziu: “Vê se finge ter um pouco de educação, pelo menos na frente das visitas.” E responderia: “Claro, claro, mamãe. Mas só fingindo mesmo, porque eu não me eduquei sozinho: tudo o que tenho me foi dado por vocês.” Ela baixaria a cabeça sem dizer nada, as mãos cruzadas
sobre o ventre, um imperceptível tremor nos lábios. E ele ficaria só. Com raiva e nojo e orgulho e medo de si mesmo. Enxugou as mãos, saiu do banheiro. Quando entrou na sala de jantar, a primeira pessoa que viu foi o pai, na cabeceira da mesa. Olhou para ele com ironia, imaginando que deveria estar caprichando em gestos e palavras para impressionar bem “os parentes que vinham do Rio”. Para o pai, o Rio era uma terra estranha, onde as mulheres andavam quase nuas e dormiam com os maridos das outras mulheres, enquanto estas dormiam com os maridos delas. E os maridos também não se importavam, andavam também meio nus e falavam daquele jeito que não era jeito de macho que se preza. Uma terra estranha, onde ninguém trabalhava e todo mundo só procurava o prazer. Uma terra onde se pronunciava — pior ainda, praticava-se — sem o menor pudor a palavra sexo. Na cabeceira da mesa, o pai era um gaúcho sólido desprezando aquelas depravações, mas, ao mesmo tempo, empenhado numa luta difícil com as palavras. Como um menino pobre invejando e desprezando os brinquedos de um menino rico, justamente por serem do outro. Maurício puxou a cadeira, ouvindo a voz de tia Clotilde:
— Ah, mas que fartura de carne, mana. No Rio é uma dificuldade, você nem imagina. Eu por mim não me preocupo, nem pelo Jorge, já estamos acostumados. O que me dói é a Lucinha, tão magrinha, pode ser que engorde uns quilinhos por aqui. — Olhava para a filha, pedindo aprovação, mas Maria Lúcia comia silenciosa, os cantos dos lábios ainda mais endurecidos, a cabeça baixa. A tia pulava para outro assunto: imagine que o Eduardo embestou, simplesmente embestou de vir com a gente. A esposa não queria deixar, teve que ficar sozinha com as crianças. Mas ele insistiu, insistiu, até que veio. — Era o olhar de Eduardo que procurava agora, e como este a acolhia, continuava no mesmo assunto, a voz feito o arranhar de um prego num sino.
— Pois é, eu estava de férias. Resolvi aproveitar — Edu explicava. — Afinal, fazia séculos que não via vocês.
— E as crianças, como ficaram? São dois, não são?
— Ficaram bem, são sadias, graças a Deus. É um casalzinho. O maior tem sete anos, já está no colégio.
— Que amor! — A voz da mãe vinha arrepiada de ternura, incitando Eduardo a continuar a narrativa dos prodígios do filho.
— Gosta de ler, vive fazendo perguntas, não pára um instante.
Grave, a voz do pai:
— É, vai dar um bom piá.
Em segundo plano, tia Clotilde investia:
— Ah, eu adoro aquelas crianças. Vocês precisavam ver como são inteligentes e boazinhas e educadas e...
Os adjetivos prosseguiam, pontilhados por exclamações, gritinhos e sorrisos. Aborrecido, Maurício tentou desligar-se. Mas a voz da tia era incisiva, penetrante, perfurava o cérebro. Virou o rosto para o pai, e viu o mês de maio que se estendia atrás da janela.
Edu estendia-lhe um prato:
— Quer mais arroz?
— Não — respondeu seco, como se recusasse não apenas a comida, mas o ritual.
— Você está magro, rapaz. Precisa comer mais um pouco.
— Não tenho fome.
Um apelo brilhava nos olhos da mãe. Tia Clotilde não percebia nada:
— Ih, esse sofre do mesmo mal que a Lucinha. Até são parecidos os dois. Olha só, mana, se não são mesmo.
Os olhares subitamente voltaram-se para ele e Maria Lúcia. Os olhares dos dois se encontraram, com o mesmo pedido de desculpas.
— O mesmo cabelo liso, os olhos escuros, esse jeito de falar pouco: idênticos. — Engraçado, eu ainda não tinha reparado. São parecidos mesmo.
— Aquele jeitão do avô, não tem nem dúvida.
O avô resumia-se a um retrato coberto de poeira, algumas palavras choramingadas em certos dias, um punhado de flores escolhidas no dia de Finados. Com a ponta da faca, Maurício riscou a toalha. Sem querer, bateu no copo de vinho: a mancha roxa espalhou-se devagar, como se não quisesse
manchar o branco do tecido. Ouviu o gritinho da tia, ao mesmo tempo em que sentia o olhar fulminante do pai e desviava-se da mãe, que secava a mancha com um pano.
— Sobremesa: doce de batata.
Agora o grito era de Edu:
— Oba! Há quanto tempo.
À la recherche du temps perdu, Maurício pensou com ironia. E lembrou das criadas da fazenda colocando e tirando infindáveis pratos, o vestido preto da avó na cabeceira da mesa, sacerdotisa de um ritual primitivo. O leitão com um ovo na boca, no dia de Natal; o peru recheado, pernas erguidas para o ar; as galinhas gordas, nos dias especiais em que alguém fazia aniversário; as sobremesas que nasciam do tacho de Luciana, comprado dos ciganos, depois de um dia inteiro de chiados e pulos. Naquele tempo, as conversas tinham um gosto quase tão bom quanto a comida. Depois, a sesta prolongada, o silêncio invadindo a casa até o meio da tarde. Olhou para Edu, sentiu pena. Ele viera buscar todas aquelas coisas outra vez, e o que encontrava era um bando de pessoas sem graça, falando encabuladas palavras sem nenhuma importância.
Era o gosto do doce de batata, pensou, que provocavas os outros gostos. “O doce perguntou pro doce qual era o doce mais doce de todos os doces e o doce respondeu pro doce que o doce mais doce de todos os doces era o doce de batata-doce”, as palavras de Luciana eram ritmadas como uma canção. Ele tentava repetir, perdia-se, Luciana dizia de novo. Ele tornava a tentar, nunca conseguia. Luciana era a mulher mais inteligente do mundo. Afastou o gosto e as lembranças com um gole de leite. Olhou para a mancha de vinho, onde uma mosca se debatia. Na outra ponta, a prima. Espiou-a entre as pálpebras apertadas: os cabelos lisos compridos escorregavam para o rosto quando ela se curvava até o prato. Então atirava-os para trás, num movimento automático. Analisou o rosto que diziam parecido com o seu. Não, não era bonito — mas havia certa suavidade nos traços, que parecia ocultar força e decisão. Uma suavidade mais semelhante a paciência e contenção. Teve vontade de chegar até ela, olhá-la nos olhos e perguntar: “Tu te lembras, Maria Lúcia?” Não importava qual fosse a lembrança, nem
importava sequer que não houvesse uma lembrança específica. Bastava que ela sacudisse afirmativamente a cabeça: “sim, Maurício, me lembro”, e ficasse pensando numa tarde ou numa manhã longínquas em que tivessem brincado juntos.
— Maurício, amanhã tu podias sair com a tua prima para mostrar a cidade, não? — a voz da mãe sugeria, trazendo junto um pedido de desculpas. — Amanhã não posso. Tenho prova de latim.
— Latim é fumeta — disse Edu.
Tia Clotilde começou uma longa dissertação sobre as dificuldades que Maria Lúcia tinha com latim. Edu colocou em dúvida a utilidade do estudo de uma língua morta. Distante, Maria Lúcia enrolava nos dedos uma ponta dos cabelos. Nos olhos do pai e nos da mãe continuava impressa a pergunta: “É mesmo preciso, meu filho?”
Os pardais de Lésbia, pensou, as jóias de Cornélia. Pediu licença, levantou e afastou-se quase correndo em direção ao quarto.

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