O SONHO

0

Seriam olhos de gato aquelas duas luzes recortadas na escuridão? Fixou melhor a vista, e descobriu: eram Zeca e Laurinda, fulvos, de mãos dadas, fosforescentes. “Quero sair daqui! Abram a porta!”, quis gritar. Mas não havia saída, não havia porta. Apenas aquele corredor comprido e escuro, que mal dava passagem a seu próprio corpo. E se não existiam portas, como é que ele entrara ali? E como Zeca e Laurinda também tinham entrado?
Passou as mãos pelas paredes em busca de resposta. Talvez as paredes tivessem crescido do chão, como plantas. Olhou em volta. Se abrisse os braços em cruz abarcaria toda a largura do corredor. Mas eles se aproximavam devagar, nus, as mãos entrelaçadas. Prendeu os olhos neles, procurando desvendar sua expressão. Não pareciam ameaçadores, pelo contrário. Havia até certa doçura naquela lenta aproximação. Laurinda sorria, a fileira de dentes brancos ressaltada contra a pele escura era como um colar de pérolas sobre um vestido negro. Com o sorriso, os olhos dela franziam-se levemente nos cantos, e parecia uma menininha assim. A fita esfiapada no cabelo era de Maria Lúcia, mas os dedos longos pertenciam a Edu. E havia Zeca, com seus cabelos cor de fogo, as mãos estendidas em direção às suas coxas e a pergunta safada suspensa nos lábios: “Como é que é, a vara já está empenando?” A mão se aproximava cada vez mais, vista de perto parecia separada do resto do corpo. Tinha contornos quadrados, recoberta de pêlos fulvos, mas os dedos não eram compridos e
finos como os de Edu. Eram dedos curtos, de juntas grossas também cobertas de pêlos, quase como uma pata. Maior que as outras, a unha do dedo mínimo destacava-se como uma espada. E lentamente crescia. Maurício quis fugir. Mas como, se o corredor não tinha portas? A mão já quase o tocava, podia sentir a vibração daquela pele, o cheiro de trigo maduro nascendo dos dedos.
Esporeou o cavalo. “Eia, eia!”, gritou, e cravou os calcanhares nas ancas suadas. Agarrou-se com mais força às crinas longas como cabelos de mulher, estranhas crinas negras contrastadas com o corpo branco do animal. As patas dele afundavam no trigo, tão alto que fazia cócegas nas pernas de Maurício. E tão maduro que, sem mastigá-lo, adivinhava certo gosto distante, sorvete de infância em tarde de domingo, perdido entre os dentes — um gosto que exigia fechar os olhos e ficar em silêncio, mãos cruzadas, para adivinhar se bom ou mau. O vento despenteava seus cabelos, ao mesmo tempo em que secava o suor do corpo. E o suor era o que o ligava ao cavalo, tornando-os um único corpo, fundidos, sós e pálidos no meio do trigo. Não era lua nem sol o círculo que os iluminava. Era um enorme olho de gato, cheio de pontos dourados nas pupilas. A circunferência escura do centro estava cercada por outra mais clara, e era nessa que se refletiam os dois, cavalo e cavaleiro, transformados num centauro que corria cada vez mais velozmente. O trigo estava maduro. Um dia a mais, e começaria a apodrecer. Pensou então que aquela fazenda não era a do pai, senão ele andaria por ali, sem camisa, o chapéu de palha enterrado na cabeça, comandando a colheita. Nesse momento foi que viu a vegetação mais verde e mais densa da beira do açude. Quis desviar o cavalo, agarrou-o com força pelas crinas, tentando voltar a cabeça dele para o outro lado. Não conseguiu, e o cavalo nem corria mais: seu passo era medido, calculado como se tivesse decorado a rota, como se a fizesse há anos. Pensou em saltar o açude não, o açude não. Mas o chão estava cheio de espinhos e serpentes entrelaçadas nos troncos apodrecidos de madeira. Olhou para cima, aterrorizado, e não era lua, não era sol nem olho de gato — era uma enorme moeda rebrilhando no espaço.
Afastou a vegetação. E viu a moeda brilhante abandonada sobre o corpo nu de Laurinda. Aproximou-se lentamente, apertou-a nos dedos. Mas alguma coisa agarrou seus pulsos, obrigando-o a levantar os olhos. Era Luciana que o segurava apertado. E chorava devagarinho, abanando a cabeça: “Quando a gente gosta mesmo, faz até pior.” “Mas por que é que tu estás chorando, Luciana?”, ele perguntou. E, como se não tivesse escutado, ela repetiu apertando a coroa de flores roxas contra os seios: “Quando a gente gosta de verdade, faz até pior.” “Mas eu gosto de ti, Luciana”, ele gritou com tanta força que a saliva nascida junto com as palavras transformou-se em chuva. Os pingos começaram a cair sobre ele e dissolveram o barquinho de papel que tinha nas mãos, pronto para soltar nas águas do açude. O barco desfeito escorreu entre os dedos. E não era mais barco, era uma flor. Quatro pétalas desajeitadas em torno de um miolo escuro, informe e feio. Bem-me-quer-mal-me-quer-bem-me-quer-mal-me-quer, ele disse rapida-mente enquanto jogava ao vento as pétalas arrancadas. Mal-me-quer, pensou com tristeza, vendo a última pétala. Depois lembrou que não tinha pensado em ninguém, e ficou alegre outra vez.
“Como é que é, a vara já está empenando?”, uma voz rouca fazia a pergunta, uma voz que ele nunca tinha ouvido antes. A mão avançava até o meio de suas coxas, depois detinha-se, investigando, e começava a subir numa carícia. Ele quis debater-se, gritar: “Me deixe, me deixe, me deixe!” Mas a carícia era morna, era boa e morna, e ele abandonou o corpo. Fechou os olhos, roçou as faces naquela pele macia. A mão avançava, despertando arrepios que subiam até o rosto, colocando tremores no corpo todo. Teve vontade de mordê-la, mordê-la devagar, não como quem está com raiva, mas como quem quer agradar. Outras mãos desciam suas calças, deslizavam pelas nádegas, mãos muito doces, cheirando a trigo. E dedos abriam lentamente os botões de sua camisa, um por um. Os tecidos escorregavam na pele, deixando o corpo nu. Foi quando ele abriu os olhos que viu que não era mão: era uma moeda enorme, rebrilhando doidamente.
Gritou e correu para Maria Lúcia, que o esperava com um sorriso no canto dos lábios. “Por que é que tu estás com a fita esfiapada?”, perguntou. E ela respondeu: “Porque Luciana morreu.” “Mas isso já faz muito tempo”,
ele disse. A menina retrucou, naquele jeito gozado de falar: “Faz nada, foi agorinha mesmo.” Deram alguns passos em silêncio. Maurício enfiara as mãos nos bolsos, não sabia o que dizer. De repente lembrou-se da flor. Estendeu-a para a menina. Ela jogou longe, com uma cara de nojo: “Você não vê que está toda despedaçada? Nem pétala tem mais.” “E que eu fiz mal-me-quer-bem-me-quer”, ele explicou. Maria Lúcia animou-se: “É? E o que foi que deu?” “Nada”, ele disse. “Não deu nada, eu não pensei em ninguém.” Foi aí que ela fez um jeito de quem está muito zangada, empurrou-o e saiu correndo. Ele começou a andar em direção à estação, onde o trem estava prestes a sair. Edu barrou seus passos. Estendeu-lhe uma pilha de livros e o vidro de remédio verde. “Tu és o único que tem possibilidades”, disse. Depois foi-se afastando, nos olhos um reflexo que parecia de lágrima presa. Chamou-o. O primo voltou-se e ele quis dizer que não entendia, mesmo assim o queria muito bem: “Edu, Edu, eu gosto muito de ti. Não vai embora, senão eu vou ficar sozinho outra vez.” Sabia que bastaria dizer uma palavra e o primo ficaria junto dele. Mas as mãos douradas o puxavam para baixo, o sorriso morria nos lábios de Edu, o reflexo dos olhos tombava feito água sobre o chão de ferro da estação, amolecendo-o e transformando-o num canteiro de morangos.
Tia Violeta abanava com o lenço branco, mas o que fazia a gente perceber que ela estava abanando era a saia vermelha ondulada pelo vento, não o lenço. Maurício encostou a cabeça no vidro e acariciou os chifres do Minotauro. “O trigo amansou a ferocidade do monstro de guampas.” Por entre o trigo é que os corpos rolavam, naquela luta que não terminava nunca. Aquela luta feita de gemidos, não gritos. Depois, apenas o líquido esbranquiçado, não sangue.
A negra rosa úmida cintilara quando Maria Lúcia atirou-a ao chão. Maurício sentira vontade de curvar-se para apanhá-la e recompô-la pedacinho por pedacinho, como tia Violeta fazia com os bibelôs quebrados. Ficariam as marcas depois? Ele sabia que sim. Nenhuma cola conseguiria apagar os sinais da queda, da quebra. Ficariam sempre as arestas, ferindo feito espinhos — nem na morte a rosa se livraria de sua sina de ferir. Para sempre o sinal da junção dos pedaços, uma cicatriz fina, persistente e
tortuosa que ele acompanharia com o dedo, devagar, sem nunca encontrar a saída. Porque estava num labirinto.
Levantou a cabeça para prestar atenção nas paredes. Eram altas, mas descobertas, lá em cima, sem teto, mostrando um céu azul e limpo. Maurício pensou que pareciam ainda mais cruéis assim, abertas, pois prometiam a possibilidade de uma fuga que jamais aconteceria. As nuvens muito tênues não chegavam a manchar a limpidez do céu, pareciam até acentuar o azul com os salpicos de sua brancura. Foi abaixando a cabeça para observar os entalhes que os antigos prisioneiros haviam deixado na carne cimentada das paredes. Tentou ler; encontrar alguma palavra conhecida seria uma espécie de salvação — mas os garranchos eram pequenos monstros indecifráveis, incompreensíveis. Mais adiante havia a curva do corredor e, mesmo sem caminhar até lá, ele já adivinhava outra curva depois dela, depois mais uma, para dar lugar a outra ainda e outra mais — como um longo braço cheio de cotovelos.
Se tivesse apanhado no chão a rosa negra, pensou, estaria salvo. Mas ela era viscosa, peluda, e ele tinha medo. Um medo que o fazia encolher-se feito feto, com vontade de rebaixar-se, envilecer-se humilhado para provocar a simpatia de alguém que pudesse ajudá-lo. Estava só. Mesmo assim, através das paredes, conseguia escutar os passos que pouco a pouco rasgavam o silêncio dos corredores.
Só ergueu os olhos quando sentiu a presença do estranho ser. Ainda de olhos baixos, sem ver nem sentir, já sabia que era estranho. Então olhou-o, ofuscado pela luz. “Luciana!”, julgou reconhecer, estendendo os braços. A criatura recuou, sacudindo a cabeça. Olhando-o mais atentamente, Maurício percebeu que os dedos longos e os olhos azuis eram os de Edu. Ou talvez não fossem azuis, pensou, mas incolores: olhos incolores que absorviam a cor do céu. “Edu, Edu, que bom que tu voltaste!”, disse. A criatura recuou outra vez, e tornou a sacudir a cabeça. Os seios fartos, Maurício pensou, os seios grandes e o jeito triste de inclinar a cabeça eram os mesmos de Luciana. Mas os cabelos cor de fogo pertenciam a Zeca, e a rosa que brilhava no meio das coxas era de Laurinda. E havia ainda as unhas longas nos dedos mindinhos, o bigode acentuando a boca, a boca aberta para mostrar a
fileira de dentes brancos. Aquele jeito de passar a mão na cabeça da gente era o de mamãe, mas o corpo todo estava entrelaçado de morangos vermelhos, pontilhados de grãos mais pálidos, subindo até o pescoço com seus pés de folhas.
O estranho ser curvava-se para ele, com jeito de querer contar uma história. Seu movimento era tão natural que, apesar da estranheza, Maurício não fugia. Sentia uma espécie de ternura ou pena, que o fazia passar lentamente a mão pelos cabelos de trigo que desciam pelas costas do ser. A boca dele — dele ou dela? — movia-se devagar, mas a história não nascia. E suas mãos começaram a subir pelas pernas de Maurício, até seu rosto — eram muitas mãos, as longas unhas não machucavam e os cabelos tinham aquele cheiro meio sem cheiro de corpo, de extensão limpa e verde. Cabelos amarelos que com a luz do sol pareciam uma moeda de ouro girando vertiginosa. Como se estivesse indecisa entre cair e não cair.
Tão só, tão só ele estava que começou a ceder as caricias. O sol escurecera, as nuvens haviam sumido, o pedaço de céu que ele via no final das paredes agora era somente um negrume espesso. Além do medo, sentia frio, medo e frio, frio e solidão, solidão e medo novamente. As sensações circulavam ao seu redor, de mãos dadas numa ciranda, de vez em quando estacavam e uma delas saía da roda para invadi-lo. Adensava-se lá dentro, e Maurício tinha vontade de gritar, gritar para agarrar-se em alguma coisa, para não afundar em si mesmo. Escancarava os olhos, as órbitas inundadas de escuridão, e só o contato com aquela criatura o fazia sentir que não estava sozinho. O corpo quente, Maurício roçava a pele naquela quentura áspera, repetindo que era bom estarem no escuro, assim não veria o corpo estranho da criatura, podia imaginar que a mãe o embalava. Como quando era criança, cantando canções de ninar.
Então percebeu os movimentos que a criatura fazia sobre seu corpo. E mesmo no escuro, percebeu também que eram aqueles mesmos movimentos de Zeca sobre o corpo de Laurinda. Abandonou-se aos poucos, os raios da lua nascendo por cima das paredes sem fim o deixavam exausto. Arrepios cresciam nas extremidades dos membros, entrelaçavam-se feito cobras, encontrando se nos flancos. O cansaço o abandonava então, e vinha uma
especie de fúria que fazia nascer uma vontade desenfreada de fundir-se com aquela estranha criatura. Tornar-se um só corpo. Rapidamente, subitamente. Depois abandonar-se outra vez, com alguma paz nascida desse abandono. Uma paz que depois se iria também para dar lugar a outra coisa. Como uma febre, talvez.
Sentiu que tudo ia mudar. Que uma coisa crescia dentro dele, feito avalanche, levando consigo outras coisas para fazer-se mais forte, cada vez mais, até explodir numa golfada de alívio. Empurrou devagar a estranha criatura e deitou-se sobre ela. Agora eram seus os movimentos, como os de Zeca sobre Laurinda. A rosa negra tornara-se subitamente clara, fosforescia no meio da noite. O corpo da criatura era macio e morno como um pão recém-tirado do forno. Maurício afundava nele, faminto, e cada movimento saciava um pouco mais daquela fome, que não se saciava nunca. A lua subia no céu, tornava-se maior, mais clara, ele já podia distinguir o contorno das coisas, as arestas do corredor suavizadas na penumbra. Nos cabelos da criatura encontrou de repente a fita esfiapada de Maria Lúcia. Tentou agarrá-la, mas os movimentos do corpo nu que se abria como uma fruta partida em gomos ficavam mais rápidos. Alguma coisa ia acontecer. Apertou com mais força a estranha criatura, sua solidão explodia mais alto, ele precisava segurar-se em qualquer coisa. Foi então que percebeu que abraçava a si próprio. Quis parar com aquilo, separar-se da estranha criatura que era ele mesmo, mas a avalanche crescera tanto que já não conseguiria contê-la. Um jato súbito expulsou a matéria viscosa para fora de seu corpo. Maurício empurrou violentamente a criatura, vontade de gritar, a lua subindo no céu, aquela matéria viscosa se espalhando por tudo, inundando os lençóis, cada vez mais forte, molhada, pegajosa, saindo para fora. Acordou de repente, atirando longe as cobertas úmidas de suor. Hesitou alguns momentos na fronteira entre o sonho e a realidade. As imagens iam-se desfazendo, dissolvidas pela luz da rua que as frestas da janela coavam para dentro do quarto. As coisas, as coisas de fora, as coisas reais impunham seus contornos sólidos, e o gemido prolongado do bonde nos trilhos terminou de despertá-lo.
Baixou o pijama, levou a mão até o meio das pernas. E não sabia se sentia nojo ou medo do líquido viscoso espalhado entre as coxas. Levantou-se, deu alguns passos pelo quarto, esbarrando com os móveis ainda pouco familiares. Pensamentos varavam a cabeça em todas as direções, feito faróis desencontrados na escuridão. Mas apenas um deles ganhava consistência e se revelava, concretizado em palavras.
“Fiquei homem”, disse no escuro. As vagas advertências, e todas as suspeitas, tudo tomava forma. Ele admitia, ele agora compreendia. “Fiquei homem”, repetiu. Sentou na guarda de ferro da cama e ficou olhando os reflexos que a lua cheia colocava nos trilhos dos bondes.

Ler mais »

0 comentários: