O MUNDO

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O taquareiro no fundo do quintal era a ilha de Robinson Crusoé. Robinson era ele, enrolado no pelego do quarto de vovó, pés descalços, caminhar asselvajado. O papagaio, uma galinha descuidada que escapara aos olhos da empregada e agora cacarejava sem o menor talento teatral, as pernas amarradas em Sexta-Feira. E Sexta-Feira? Sexta-Feira era uma acha de lenha enegrecida pelo fogo, com uma rutilante dentadura de casca de laranja. (Maurício achava que um negro que se prezasse deveria ter os dentes brancos, chegou mesmo a arquitetar um plano para roubar a dentadura de vovó, que fazia poses tentadoras dentro do copo d’água, na mesinha de cabeceira. Depois desistiu, de medo da chinela.)
Enfiada no meio das taquaras estava a casinhola de tonel vazio, guardando dentro as panelas de latas de azeite e a espingarda de cabo de vassoura. Em alto-mar, jazia ainda o navio encalhado, repleto de tesouros: um carrinho de mão sem uma perna, carregado de todo o lixo que Maurício conseguira juntar no pátio, incluindo uma preciosa roda de bicicleta torta. O papagaio infelizmente não sabia nenhuma palavra, embora não fosse tão mudo quanto Sexta-Feira. E o pobre Robinson-Maurício era obrigado a dialogar consigo mesmo, para não esquecer como se falava. Gostava era quando aparecia o leão que morava nas vizinhanças. Aí, sim, esbanjava valentia. Guardava Sexta-Feira e o papagaio-galinha dentro da cabana, carregava a arma e vinha enfrentar a fera que, para sua decepção, não correspondia ao ímpeto com que ele se atirava à luta. (O que não era de admirar, pensava ele, em se tratando de um gato gordo, castrado e velho.) Mesmo assim, o tempo da luta era exceção, cheio de gritos e energia.
Na maioria das vezes era obrigado a ficar calado, pensando nas coisas que formavam a vida de Robinson-Maurício. E eram tão poucas essas coisas, naquela ilha pequenina e deserta. Quando se entediava muito, tinha que
comer moranguinhos surrupiados dos canteiros da tia, ou então, último recurso, pensar nas coisas da vida de Maurício-Maurício. E que, uns dias, pareciam muitas, e difíceis de serem pensadas, mas noutros eram tão insignificantes quanto as de Robinson. Aquele quintal despido de grama e de árvores, nu, à exceção do taquareiro e dos pequenos canteiros atrás da casa. Fechando os olhos e ouvindo o barulho-não-barulho que o silêncio fazia, podia quase imaginar que estava no mar. Nunca tinha visto o mar, a não serem fotografias e desenhos, mas devia ser assim mesmo, pensava, as narinas palpitando na imaginação de cheiros desconhecidos. Era bom quando havia vento, porque trazia o perfume dos temperos usados na cozinha, que colocavam uma saudade maior nos seus gestos, uma melancolia que devia assentar muito bem a um pobre náufrago. De repente, lembrava de sua condição e tentava mergulhar nela outra vez. Inútil. A imaginação escapava para outros espaços, e Maurício tinha a impressão de que até a galinha-papagaio se detinha, na expectativa do que iria acontecer, voltando para ele uns olhinhos pisca-piscantes onde se refletiam sucessivamente surpresa e indiferença.
Sexta-Feira — este sorria sempre, mas infinitamente mudo, infinitamente distante. Não tanto por ser preto e selvagem, mas principal-mente por ser coisa, e não carne. Maurício sentia falta de outra carne brincando junto com ele. Uma carne infantil como a dele e — como ele —no limiar de grandes descobertas. Ele as fazia a todo instante, mas iam morrendo à medida que nasciam, assassinadas pelo silêncio a que eram confinadas. Às vezes apertava Sexta-Feira nos braços e pedia baixinho: “Fala, fala, Sexta-Feira, fala que eu te dou a minha sobremesa na hora do almoço. Fala que eu te dou o meu caminhãozinho de roda vermelha. Fala que eu te dou aquele relógio grande da sala de jantar.” Suas posses se esgotavam, e ele passava a dispor das alheias: a dentadura de vovó, o pala de papai, o sapato de salto de mamãe. Passava às posses dos vizinhos, das pessoas que ele nem conhecia. Em desespero, oferecia o céu, as nuvens, o pôr-do-sol, a lua, as estrelas, o vento, a chuva. E Sexta-Feira continuava a sorrir seu sorriso mudo, os dentes amarelos num esgar que pedia desculpas por não poder aceitar. Maurício jogava-o longe, a tristeza e o desaponta-
mento pingavam junto com as lágrimas. Sexta-Feira deixava apenas manchas pretas de carvão nos seus braços e mãos pesadamente vazias.
Foi quando apareceu Maria Lúcia. Maria Lúcia vinha de longe, trazia um chiadinho engraçado no fundo das palavras. Maurício reencenou toda a cena do naufrágio, as braçadas aflitas para alcançar a praia, jogado na areia, arfando. Reamarrou a galinha-papagaio, recapturou Sexta-Feira, já meio desbotado de tanta esfregação. Maria Lúcia olhava de lado, sem dizer coisa alguma. Até que não se continha, pedia:
— Maurício, você deixa eu brincar também, deixa?
Ele não respondia. Colava os olhos ao horizonte. Dizia umas palavras a Sexta-Feira. Tornava a matar o leão. Tomava um banho de cachoeira, pescava, assava peixe numa varinha, vivendo dois dias enquanto a prima esperava um minuto.
— Deixa, hein? Deixa?
Maurício continuava mudo. Afastava os cabelos da testa, um ar muito triste perdido no canto dos lábios. Vida difícil a de um náufrago. Quando a menina insistia pela terceira vez, ele explodia:
— Guria chata! Tu não vê que um náufrago solitário não pode falar com ninguém?
Repetia as palavras lidas nos livros, sentindo um gosto bom de implicância. Maria Lúcia arregalava os olhos, sem entender direito o que ele dizia. Ainda insistia:
— Mas por que não deixa, hein? Por quê?
— Porque sou um naufrago solitário.
— E o que tem isso?
—Tem que náufragos solitários não falam com ninguém, ora.
— Ué, tem eu, não tem?
Ele desistia de explicar. “Oh, santa ignorância”, dizia baixinho para não ofender muito, repetindo o mesmo revirar de olhos de vovó. Mas a prima fazia uma cara tão triste que ele resolvia concordar, mesmo porque era chato brincar sozinho.
— Tá bom. Tu pode entrar no brinquedo.
Os olhos da menina se iluminavam. Até a fita azul no cabelo parecia ganhar um brilho novo.
— Ah, que bom, priminho. Que é que eu sou, hein?
Ele pensava, pensava, a mão no queixo, os olhos fixos na poeira do quintal, na monotonia das ondas. A droga é que na ilha de Robinson tinha tão pouca coisa. Descobria:
— Já sei! Tu pode ser a cabra.
Maria Lúcia desconfiava:
— Cabra? Mas por que é que você quer que eu seja cabra?
— Porque tu parece mesmo uma cabra.
Ela saía chorando:
— Estou de mal com você por toda a vida! Vou contar pra sua mãe e ela vai lhe dar uma bruta surra!
Ele continuava a brincar, em seguida se desinteressava. O que dava gosto ao brinquedo era a prima, ali do lado, olhando com olhos curiosos, admirando, invejando. Sozinho não tinha graça. Depois vinha uma pena muito grande da menina, coitadinha dela, com aquele chiado gozado no final das palavras, os olhos de quem já viu muita coisa diferente, tão burrinha — coitada dela. Os olhos se enchiam de lágrimas, ele ia atrás da prima. Encontrava-a sentada nos degraus da cozinha, mexendo na terra com um pedaço de pau, uma lágrima dançando na ponta do nariz.
— Maria Lúcia, quero te dizer uma coisa.
— Não quero saber, não. Estamos de mal pra toda a vida.
Toda a vida era uma eternidade. E ele queria brincar agora, já. Propunha: — Olha, faz de conta que toda a vida já passou, tá? Eu te deixo brincar na ilha.
A menina levantava a varinha. A lágrima pingava na terra. Ainda desconfiava de alguma malcriação:
—Deixa mesmo? E o que é que eu sou, hein? Sexta-Feira?
— Sexta-Feira não pode, já tem. Pode ser Sábado, ou Quinta-Feira, então.
— Eu prefiro Sábado, que é dia de tomar banho de tardezinha e botar fita nova no cabelo.
Menina estranha, ele pensava. Gostava de tomar banho e colocar aquelas idiotíssimas fitas azuis no cabelo. Mesmo assim concordava:
— Tá bom. Te deixo ser o Sábado.
Mas depois, mesmo enquanto brincavam, não podia deixar de sentir uma baita pena dela. Fita azul no cabelo, banho todos os dias, pernas finas, meias brancas e, ainda por cima, aquele chiado engraçado sublinhando as palavras. Ah, meu Deus, como eram esquisitas as meninas. Principalmente as que vinham de longe.
O passeio, escreveu Maurício no alto da página. Depois, na linha abaixo: composição. Mordiscou a ponta do lápis, os olhos postos numa mosca que esvoaçava em torno dele. Em voz baixa, repetiu o título, destacando bem as sílabas: O-pas-sei-o. Desenhou uma margarida entrelaçada na primeira consoante. Bocejou. Mordeu o lápis com mais força. Afastou-o e ficou olhando as marcas fundas na madeira. Passeio. Procurou lembrar de algum que tivesse feito. Não conseguiu. Melhor inventar. Um passeio onde fossem todas as pessoas que ele conhecia. Um passeio de barco. E as pessoas que ele não gostava fossem ficando pelo caminho, morrendo afogadas, abandonadas em ilhas, em barcos em alto-mar.
Começou a escrever o nome dos passageiros do barco. Edu, em primeiro lugar. Depois, Luciana. Mas Luciana já morreu, pensou, e fez um gesto para riscar o nome. Mas a professora não sabe, descobriu, acentuando a perninha do a. Quem mais? Maria Lúcia era chatinha, mas podia ir. Mamãe. Papai. Tia Violeta. Tia Mariazinha. Tio Pedro. Tia Clotilde. Vovó. Só. Pensou em quem chegaria ao fim da viagem. Ele, naturalmente. Edu. Luciana também. Talvez Maria Lúcia. E os outros? Afogá-los, não podia. A professora não ia gostar. Melhor deixá-los numa ilha onde houvesse uma fazenda para papai e tio Pedro; um canteiro de moranguinhos para tia Violeta; uma máquina de costura para tia Mariazinha; duas agulhas e um novelo de lã para mamãe e um álbum de fotografias para vovó.
Uma vez nós fizemos um passeio muito bonito, escreveu. E em seguida riscou. Não era um passeio bonito. Ficou em dúvida sobre o adjetivo. Interessante? Comprido? Difícil? Maluco? Não. Desenhou um rosto debruçado sobre uma vogal, jogou longe o lápis e levantou-se.
Melhor dar um passeio, em vez de só escrever sobre um. Abriu a porta do quarto, ficou ouvindo o silêncio. De vez em quando a voz da empregada vinha lá da cozinha, misturada ao bater das panelas. Da rua chegava o zunido da máquina do afiador de tesouras. E era só. Entre os dois ruídos, enormes vácuos de silêncio. Parecia então que a quietude se transformava em poeira, para desabar devagar sobre as coisas. Passou pelo banheiro, espiou. Cheiro limpo, o do banheiro. Cheio de mistérios também. Aquelas paredes ali viam tantas coisas, pensou. Uma vez espiara tia Violeta pelo buraco da fechadura, mas ela estava de costas e Maurício não conseguiu ver muita coisa. Outra vez espiara Edu, e era tão engraçado que dava vontade de rir — cheio de pêlos nos lugares mais inesperados.
Entrou na sala. E, imediatamente, teve a sensação de que não estava só. Olhou para cima, para os grandes retratos empoeirados. Edu era corajoso, ria deles, ou então fazia grandes reverências irônicas. Junto dele, Maurício ria também, mas assim — sozinho —, o que sentia era medo. Medo misturado a um pouco de respeito, desconfiança. Os homens quase todos de caras barbudas, olhares sérios. As mulheres de ares meio masculinos, rostos sérios. Todos sérios.
Aproximou-se lentamente. Passou um dedo sobre a mesa, deixando uma esteira branca na poeira. Poeira: era o que ele tinha a impressão que havia ali. Cobrindo tudo: mesas, cadeiras, o grande relógio, os bibelôs e, principalmente, os retratos. Olhou para cima novamente, e viu que um dos homens o observava. O cabelo repartido ao meio, lábios quase tão finos quanto o bigode que os cobria, uma verruga no queixo. Maurício baixou um pouco a vista e deparou com o colarinho engomado, a gola larga do paletó de tecido escuro, grosso. Devia ser áspero, desagradável de tocar. Olhou o retrato ao lado: uma mulher magra, de enormes olhos caídos, o vestido decotado mostrando os ombros muito brancos e nus. Mas não conseguiu deter-se na fisionomia dela. Olhou o terceiro, um outro e outro mais, mas
seu olhar voltava-se sempre para o primeiro. Aquela sombra no canto da boca seria o esboço de um sorriso ou um simples roído de traça? E o nariz, o nariz fino e longo, subindo desde os lábios, dividindo o rosto em duas facções, até encontrar o vértice das sobrancelhas arqueadas. Finas também, descobriu; viu que tudo era fino naquela face. As sobrancelhas, o nariz, os lábios, o bigode, o formato do rosto, o pescoço. Até o corpo, que ele não podia ver, devia ser agudo como uma agulha. E os dedos compridos, esguios, possuiriam unhas longas, afiadas. Mauricio tinha a sensação de que o retrato ria dele, como se achasse graça em seu corpo pequeno, seus olhos assustados. Baixou os olhos, investigou-se. Tudo limpo, arrumado. Num desafio, ergueu o rosto para a moldura, mas dentro dela continuava o sorriso. Ele parecia prever alguma coisa. Parecia ter conhecimento de algo que ia acontecer, mas ainda não se definira, entocaiado em algum recanto de sua fisionomia. Passou as mãos pelo rosto, não achou nada, e voltou a olhar o retrato.
Então todas as coisas se dissolveram. Desceu uma grande névoa. No meio dela, aquele homem alto e fino sorria para ele, estendendo os braços. Maurício via a cor estranha através dos lábios entreabertos, e não se movia. Mas não tinha coragem de libertar-se. Ele estendia a mão pálida, segurando a luva vermelha num convite mudo. “Vem, vem”— parecia dizer, a voz cortante como punhal. Punhal que entrava em sua carne sem dor, remexendo devagarinho. “Vem, vem.” O punhal colava em sua carne, o homem encolhia o braço, puxando-o para si. “Tenho que escrever uma composição”, quis explicar. Mas o homem sacudia a cabeça; os dentes eram verdes como pedras de fundo de rio; as mãos, iguais a dois jasmins; o corpo, uma longa espada prestes a quebrar-se. Brotava um cheiro de tempo, muito doce, parecia poeira, mas poeira perfumada, e doce, doce, extremamente doce, tão doce que provocava vertigens, seu corpo por um momento tremia, quase dobrando, quase caindo. A tristeza nos olhos do homem era também fina, mas funda, vinha de dentro, vinha de longe, bem de dentro, muito de longe, cabeças de cobra nas duas pupilas, os corpos sinuosos enroscados no fundo do corpo. A cabeça pendida para o lado, ombros caídos, um cansaço imenso nascia de toda a figura, emprestando-lhe um jeito de folha soprada
por muitos ventos, levada por muitas terras, conhecedora de muitos segredos, mas cansada, infinitamente cansada, querendo parar, por um instante debruçar-se ao bocal de um poço para ver o próprio corpo amarelado, pisoteado, desfeito quase em pó; o homem curvava-se cada vez mais para ele: “Vem, vem antes que seja tarde. Vem, vem antes que eu me vá.” Mauricio hesitava, colado ao chão, as emoções retorcidas como as cobras nos olhos do homem, um cavalo branco surgia por trás, crinas ondulantes, narinas abertas, relinchava, e seu relincho era um longo grito de revolta e susto, rios corriam aos pés do homem, havia frutas em volta dele, um campo azul por trás, o vento ondulando a cabeleira repartida ao meio, dobrando o corpo como um junco, o cavalo esperava, o cavalo convidava, o homem esperava, o homem convidava, estendendo a mão: “Já vou partir, ele me espera. Vou partir para ver campos ainda mais azuis que este, montar outros cavalos ainda mais brancos. Vou comer frutos vermelhos, banhar-me nu em rios de claras águas verdes. Vou perder-me nas nuvens, levantar vôo como se fosse um pássaro, ah, vou cavalgar dias inteiros, noites sem fim, o vento nos meus cabelos, a chuva lavando meu corpo, o caminho deslizando sob os cascos da minha montaria. E só, muito só, eternamente só se tu não vieres comigo”, estendia os braços e dava um passo à frente, as mãos quase tocavam o rosto de Maurício, ele sentia um frio intenso que o fazia arrepiar-se, encolhido e indefeso, a mão se aproximava cada vez mais, o frio aumentava, mas ao redor do homem havia calor e sol, um sol luminoso e um cavalo branco que levaria os dois no lombo para desvendarem segredos em terras desconhecidas, o homem sorria, os dentes verdes, as sobrancelhas, as mãos, o corpo, tudo convidava: “Vem, antes que eu me vá, antes que seja tarde demais. Vem, que eu não tenho ninguém e te quero junto a mim. Vem, que eu te ensinarei a voar e a segurar nas crinas de meu cavalo branco. Vem, que tomaremos banho na chuva, desafiaremos o vento e venceremos o tempo. Vem, que o frio será tão grande, não sentirás mais dores, não sentirás mais nenhum mal. Vem que eu te quero junto a mim”, as mãos recendiam a rosas murchas, quase tocavam em seu rosto, Maurício fechou os olhos, oferecendo-se a carícia que devia ser doce, com gosto de hortelã, cheiro de malva, perfume de flor de laranjeira e consistência de espuma:
“Vem, não vai doer. Vem, é só um contato, um toque e estarás comigo para todo o sempre.”
Maurício abriu os olhos e viu os vermes rastejando sobre a pele da mão estendida. Esverdeada, cheirava mal. Aos poucos foi-se desprendendo. Deu um passo atrás e tudo se desfez.
Apoiou o corpo na mesa, as mãos úmidas de terror, lábios secos de espanto. Levou as mãos à testa para afastar os cabelos que o suor colava à pele. Suspirou devagar, enquanto o corpo tornava a equilibrar-se. Levantou novamente os olhos para os quadros. Procurou divisar o cenário atrás do homem, mas não conseguiu. Eram apenas manchas cinzentas, borrões opacos, informes. Tentou lembrar o que acontecera, mas restava apenas a sombra de uma leve vertigem. Quanto tempo durara? Um minuto ou um século? Voltou os olhos para o relógio, viu que os ponteiros continuavam no mesmo lugar de antes. Como antes também, chegava da cozinha a voz da empregada, barulho de pratos, um canto sem cor nem forma entrecortando os rumores. Da rua vinham os gemidos dos ferros batidos pelo afiador.
O relógio agora batia. Três badaladas. Os ruídos furavam os mistérios, desvendavam os segredos, afastavam as névoas. Sobre a mesa, seu dedo deixara uma pequena estrada aberta no pó. Os cravos, as begônias e margaridas dos vasos estavam murchos. Ao cair da tarde a mãe iria até o jardinzinho com uma tesoura para trazer novas flores, novas cores, novos cheiros. As flores resistiriam dois, três dias, depois seriam substituídas. Para onde iam as flores murchas? Ele não sabia. A peça estava meio escurecida, por uma fresta da janela entravam alguns respingos de luz.
Maurício caminhou até a janela e abriu-a. Ficou vendo a dança frenética dos átomos de poeira que os raios de sol revelavam. Abriu as duas folhas, debruçou-se para fora. Embaixo ia passando uma preta com uma trouxa de roupa na cabeça. Cuspiu na trouxa, pensando que ela nunca descobriria quem tinha sido. Botou a língua para o moleque que passava de bicicleta e respondeu com um palavrão quando ele xingou sua mãe. Depois voltou se para dentro, rindo, rindo perdidamente, o corpo sacudido, mãos segurando a barriga que doía, ah, doía de tanto rir. Mas ria, ria, era tudo tão engraçado, os sons pareciam pedrinhas caindo da boca, rachando em cacos
o silêncio empoeirado. Parecia que não ia poder parar nunca mais. E, de repente, parou. Encostou a cabeça na parede. O contato frio nas costas. Levou a mão até a réstia de sol, buliu com os grãozinhos de poeira. Precisava fazer alguma coisa. Os olhos deslizaram pelas paredes, pelos móveis, detiveram-se sobre o vaso verde. Com dois passos e um movimento rápido, apossou-se dele. Jogou-o pela janela e cerrou os dentes ao ouvir o ruído dos cacos se espalhando pela calçada.
Preciso fazer a composição, pensou de repente, sem susto nem pressa porque a professora sempre elogiava o que ele escrevia. Caminhou até o quarto, abriu a porta e entrou. Sentou-se à mesa, pegou o lápis, começou a escrever: Uma vez nós fizemos um passeio muito bonito. Hesitou um pouco e acrescentou: Um homem alto e magro saiu do quadro e me convidou para montar no seu cavalo branco. Com um gesto brusco, amassou a folha, jogou-a longe. Pensou no que escrevera. Um homem alto e magro saiu do quadro e me convidou para montar no seu cavalo branco. E eu não fui, pensou. Encostou a cabeça na mesa e começou a chorar.

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