TEMPO DE SILÊNCIO

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— Entre, papai — disse.
O homem fez um movimento. Maurício teve vontade de abraçá-lo. Conteve-se. Sentou na cama, encostou a cabeça na parede.
— Preciso falar contigo, meu filho.
— Eu sei. Pode falar.
O pai estendeu o braço, afastou as cortinas que tapavam a janela. O sol pulou para dentro do quarto. Depois abriu a boca. Maurício preparou-se para escutar.
A voz do pai era rouca, hesitante.
— Estive conversando com sua tia, com Edu.
As pausas eram mais abundantes que as palavras. Os olhos vagavam pelo quarto como se procurassem um objeto qualquer onde pudessem apoiar-se. — Eles acham que... que tu podes ir com eles. Morar lá, que é melhor assim. Maurício esboçou um gesto. O pai cortou-o em meio.
— Eu sei, eu sei que tu não gostas deles. Mas é só no começo. Depois tu podes trabalhar, morar sozinho. Ou, se quiseres, também podes ficar aqui. — Não, eu não quero — Maurício sacudiu a cabeça. Acompanhou com o dedo um dos bordados da colcha. Pensou: foi mamãe quem bordou esta colcha. E em seguida, mamãe morreu. Mamãe não existe mais. Nem Virgínia. Nunca chegou a existir. Lembrava vagamente dos corredores esbranquiçados do hospital, dos vultos dos médicos e enfermeiras, manchas de tinta flutuando numa tela sem cor. Edu avançava lentamente, como se estivesse preso no chão. Sacudia devagar a cabeça, e já não era mais um homem gordo — era apenas um homem triste, quase velho, de ombros
caídos, e um vinco entre as sobrancelhas. Era uma menina, disse. E depois, quase sem voz: morreram, as duas.
Maurício ergueu a cabeça para o pai.
— Eu não quero ficar aqui. Eu prefiro ir embora.
O pai sacudiu a cabeça várias vezes. Ele também, agora era apenas um velho, ainda mais velho, cansado e só.
— Mas e o senhor, papai? Para onde é que o senhor vai?
O pai sacudiu os ombros, como se não tivesse nenhuma importância o que ia fazer de sua vida.
— Vou voltar para a fazenda. Eu também não gosto daqui, e as tuas tias estão sozinhas na cidade. Assim eu fico mais perto delas. Depois que o Pedro morreu a Mariazinha se enterrou naquele lugar. Já tentei trazer as duas para cá, mas não teve jeito. Qualquer dia morrem e ninguém fica sabendo. Maurício olhou para ele com surpresa — era aquela ternura brusca, aquele jeito envergonhado e bruto de querer bem, que tantas vezes ele confundira com falta de amor.
— Só tem um inconveniente — ele prosseguiu. — Acho que nesta época do ano é difícil conseguir transferência, vais perder o ano.
— Já está perdido.
— Quê?
— É, já está perdido. Quase não tenho ido a aula.
O pai continuava a sacudir a cabeça. Lentamente, como se estivesse vendo e ouvindo apenas o que existia dentro dele. De repente Maurício lembrou: cavalgavam, ambos, ele na garupa do pai. Seus braços rodeavam com força a cintura dele. O vento zunia, esfriando as faces, despenteando os cabelos. O pai esporeava o animal, que corria feito doido, atravessando os campos. Ele olhava para cima e via as costas largas do pai, imensas, vistas em perspectiva, recortadas contra o céu. O céu era azul, ele lembrava, muito azul, sem nenhuma nuvem. Entre o verde do campo e o azul do céu, eles galopavam. Depois o pai apeara e falara qualquer coisa com um peão, a cabeça sacudindo daquele mesmo jeito. A mãe veio de dentro de casa tirá-lo do lombo do cavalo, os braços dela cheiravam a pão quente. Ele a seguiu,
segurando na ponta da saia, e na cozinha ela lhe dera o pão em forma de boneco, enormes olhos de feijão preto. Ele apertara o boneco com cuidado — Faustino, chamara-o — e fora lhe contar histórias debaixo da paineira. A paineira florida parecia uma adolescente que crescera demais e hesitava entre a doçura das flores e a brutalidade do caule grosso. No caule grosso da paineira ele se recostara, com Faustino nos braços, contando a história do príncipe de costas muito largas que galopava num cavalo branco. Bruxas, gigantes, anões malvados, dragões — tudo que havia de mau e feio sucumbia à força do príncipe. Os olhos de Faustino pareciam aumentar de admiração. E o príncipe é meu pai, sabe? disse Maurício, orgulhoso. Faustino ficaria com um baita ciúme. Mas os feijões dos olhos não piscaram, e ele nem tinha boca para sorrir. Era despeito aquilo, Maurício sabia, pura inveja. Olhou-o novamente, o boneco não dava sinal de vida. Então mordeu-o. Com raiva, cravou os dentes na cabeça, engolindo junto os grandes olhos pretos. Ficou olhando o corpo aleijado, a boca cheia de farelos de Faustino que escorregavam pelos cantos dos lábios. Depois viu o pai que se aproximava, ainda falando com o peão. E não era príncipe, não era nada. Um homem alto, de botas e bigodes negros, sacudindo devagar a cabeça. Correu para o cavalo. E não era corcel, nem era branco — pouco mais que um matungo, de cauda recém-cortada, olhos ramelentos e mansos.
Desviou os olhos do pai e procurou a luz lá de fora.
— Uma amiga tua mandou um telegrama. Marlene, acho que é o nome dela. Queres ver?
— Depois — disse. E tudo aquilo parecia muito longe. Seus dedos perdiam-se no labirinto da colcha, buscando uma saída, hesitando, tomando novos caminhos, voltando atrás, perdidos nos corredores que a mãe bordara.
— E tia Clotilde? — perguntou.
— Está bem. Ficou muito nervosa, claro, mas agora já passou. Teve a impressão de que o pai ia acrescentar: “Agora está tudo bem.” Apressou-se em fazer outra pergunta:
—E Edu?
— Também está bem. — O pai hesitou, depois acrescentou: — Ele gosta muito de ti. Quer que fiques na casa dele.
Maurício concordou.
— E Maria Lúcia?
— É uma boa menina. Fico com pena dela. Coitada, vir de tão longe e passar por tudo isso.
Maurício cravou as unhas na palma das mãos. Depois abriu-as para ver os pequenos valos impressos na carne. As mãos de Maria Lúcia eram como pedaços de gesso sobre os joelhos. Mas não estavam frias, o calor entrara pelos poros dele, abrindo caminho pelos braços, até aquecer um ponto vital onde se encolhera e permanecia, morna, até agora.
— Ela ia se chamar Virgínia — disse.
— Quem?
— A... a criança. Uma vez ouvi mamãe dizendo.
— Ah. Era uma menina mesmo.
A voz do pai tremeu. Sim, ele ia lembrá-la durante toda a vida que lhe restava, pensou Maurício. Caminhando pelas salas desertas da estância, sem a presença dela; levantando cedo para tomar sozinho o chimarrão na cozinha, onde ninguém acenderia o fogão; deitando à noite na cama gelada, infinita, como se o corpo magro dela a aquecesse e diminuísse, antes. E à hora de dormir, a mente entorpecida, estendendo a mão e apalpando o vazio, seu último pensamento seria para ela, que nunca mais estaria ali.
— Papai — chamou.
O homem voltou o rosto.
— Quê?
— Se o senhor quiser, eu posso ficar. Posso ir para a fazenda, o senhor vai ficar muito só lá.
— Só? — ele sorriu. — Eu já estou acostumado. E, de qualquer jeito — a mão esboçou no ar um gesto vago —, tu não gostas mesmo daquilo lá. Eu entendo, é um fim de mundo. Mas a minha vida já está terminando, a gente tem é que pensar na tua, que está começando.
Maurício baixou os olhos, o pai fez um movimento para levantar-se. Deteve-se e ficou olhando para o filho, suspenso. Passou devagar a mão na cabeça dele.
— Tudo vai sair bem, eu sei. Tu vens passar as férias lá na estância de vez em quando. Eu já estou muito velho pra andar viajando pro tal de Rio de Janeiro. Maurício ouviu os passos se afastarem, a porta fechar de leve atrás do corpo. Depois foi Maria Lúcia quem entrou.
— Vim ver se você está bem — ela disse. Aquele chiado na maneira de falar era o mesmo da menina chorosa que pedia para brincar.
— Estou, sim. Estou bem.
Ela sentou na ponta da cadeira, brincou um pouco com uma ponta dos cabelos, depois soltou os braços, ficou olhando para ele.
— Cheiro de café — disse Maurício.
— Eu estou fazendo. Pra você. Quer?
— Quero, depois.
— Você vem com a gente? — ela perguntou.
— Vou — ele disse.
Maria Lúcia esboçou um sorriso, caminhou até a porta e disse:
— Vou buscar o café.
Maurício levantou-se. Foi até a mesa e abriu o caderno de capa azul. Abriu-o, escreveu: 28 de maio. E mais abaixo: Mamãe morreu. A caneta escorregou dos dedos. Tomou-a novamente e escreveu mais: Um dia, poderei olhar-me nu em um espelho sem baixar os olhos. A frase parecia estúpida, vazia. Fechou o caderno. Caminhou até a janela, limpou com os dedos a poeira acumulada nas vidraças. Limpas, mostravam uma paisagem mais nítida, as árvores definidas contra o céu azul. Afastou-se um pouco e viu o reflexo da própria imagem sobre as árvores. “Um dia”, repetiu, “um dia poderei olhar-me nu em um espelho sem baixar os olhos.” O cheiro de café entrava por baixo da porta. Era escuro e bom, mas não ia ser fácil, ele sabia. Haveria muitas quedas, e sucessivos impulsos para levantar-se.
Como se despertasse, olhou a praça lá embaixo. Um dia, um dia. As folhas mortas dos plátanos, o céu de vidro, pessoas caminhando, o seu reflexo vivo.
Com os olhos fechados, mas totalmente desperto, imaginou passos que se aproximavam da porta do quarto. Depois cessavam. Batiam na porta,
perguntavam: — Posso entrar?
— Pode — ele disse.
E voltou-se para encará-la.

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