A DESCOBERTA

0

As quatro pétalas agrupavam-se desordenadamente em torno do núcleo escuro. Maurício abaixou-se para examinar a flor mais de perto. Vista assim, parecia ainda mais humilde, mais flor. Eram apenas quatro as pétalas, pobres, feias, nem sequer cor definida possuíam — apenas aquele branco duvidoso, que o fazia lembrar dos lençóis pendurados nos varais da casa vizinha, na cidade. Pequenas nervuras entremeavam a vaga coloração das pétalas, mas até elas eram tímidas, como se tivessem medo de marcar um pouco mais fundo. O caule era longo, mas fino e frágil, dobrado a todo instante pela brisa vagabunda, tão fraca que não restava à flor sequer o consolo de pensar que era vento. Ela deitava-se quase até o chão — aquele chão áspero que a acolhia como um pai severo a uma filha que pecou justamente por ser fraca demais —, via-se que a qualquer momento poderia quebrar-se e morrer. Era uma flor solitária. E, ainda por cima, anônima. Não
havia em volta nem mesmo uma prima longínqua, e seu desajeitamento era tanto que seria impossível batizá-la.
Maurício levantou-se. Tornou a vê-la de cima. Assim, nem flor era. Não era nada. Ele nem sabia como conseguira descobri-la, com toda a sua insignificância. Não havia nenhuma vegetação a escondê-la, não havia nada — mas era tão ínfima que mesmo o nada já a escondia. Ele olhou o campo sem fim, onde ela era única, e subitamente sentiu respeito pela coragem da flor. Pela audácia de ser pequena e fraca em meio a coisas rudes, maiores do que ela.
Tornou a debruçar-se ao lado dela. A ventania miúda fazia-a dançar, em pânico. Ele mexeu a cabeça, o vento era tão ralo que nem conseguia desmanchar seus cabelos. Virou o corpo, colou as costas contra o chão, sentindo a aspereza e a quentura da terra atravessarem a camisa. Nuvens zoológicas passeavam pelo céu: camelos, elefantes, cobras. Cobras... o talo da Flor era uma serpente pequenina, com a cabeça recém-desabrochada. As coxas nuas escapuliam pelas pernas dos calções, acariciadas pelas folhinhas de capim. Maurício mexeu lentamente o corpo contra a pele da terra. Era bom aquele roçar de peles, mesmo sendo a outra completamente diferente da dele. E com a sua própria, como seria? Passou as mãos pelas pernas, devagar. A penugem arrepiava e numa sensação estranha, que não era frio, não era calor, mas uma vontade assim de. Exato: uma vontade de. De o quê?, perguntou-se. Riu baixinho, sem sabem a resposta. Estou ficando louco, decidiu. E quis fingir, por um instante fingir, mas o sol quente de hora de sesta prendia-o contra a terra.
Assim de costas, quase não podia ver o campo. Seu olhar captava apenas uma tênue linha verde oscilante, que de vez em quando parecia mesmo um campo, mas depois traquejava, nada mais que uma sugestão. Maurício via o céu. O céu que em certos pontos era quase tão verde quanto o campo, mas em outros lugares assumia as colorações mais diversas. Havia até aquela brancura enxovalhada, igual a das pétalas da flor. E as nuvens disformes, preguiçosas. Incógnitas.
O pensamento deslizava pelas coisas sem conseguir deter-se. Moleza nos membros. Fechava os olhos e era como se estivesse no meio de lençóis,
lençóis verdes, com cheiro de campo. Depois abria-os, e não havia nada. Nem mesmo um pensamento.
O sol não fazia suar — se fizesse, ele poderia pensar: “Agora chego em casa e vou tomar um banho.” Não havia suor, não haveria banho. Ainda assim, podia tomar um e, desde agora, deslumbrar-se com as descobertas que seriam feitas. O corpo se expandia em todas as direções, flutuando na água que chegava as bordas da banheira e às vezes caía sobre o chão de ladrilhos, formando pequenas poças nas quais ele via o próprio crescimento. Depois, o abandono ao calor que subia, e subindo trazia consigo um perfume de carne, de muitas descobertas a serem feitas, perfume de coisas que só eram sugeridas e cresciam subterraneamente, sem causar propriamente dor, mas uma espécie de ânsia, que crescia junto com o calor e subia também, subia até as têmporas, onde colocava estremecimentos de sangue pulsante. O sabonete limpava os cheiros externos — de campo, de vento, de flor — e deixava-o a sós com o próprio cheiro. Fechava as narinas para não senti-lo, mas era inútil, porque estava também dentro dele. Subitamente, então, cansava de lutar — e cedia.
O mistério de repente abandonava-o. Restava só um menino nu, numa banheira laqueada, sobre um chão de tijolos. Enrijecia-se, o mistério voltava a atormentá-lo. “Decifra-me, decifra-me.” Cedia. O mistério recuava. Períodos de entrega e recusa sucediam-se, sem que afundasse naquilo — o que era?, até que alguém batia na porta para reclamar: “Como é que e, alguém morreu aí dentro?”
Voz decifrada. Gestos decifrados. Corpos decifrados. Era o que tinham aqueles que eram maiores do que ele. E com isso englobava todos: o pai, a mãe, as tias, Laurinda e Zeca.
A brisa inclinou a flor, ele sentiu uma carícia leve no rosto. Moveu a mão, mas deteve-a no meio do gesto. Vontade de falar com alguém. Sentou sobre os joelhos. Observou a casa, meio escondida por trás da paineira. A mãe, o pai, a tia — todos estavam sesteando. Nos galpões também, os homens estariam imersos naquela espécie de breve hibernação. Mesmo que estivessem acordados, Maurício não os procuraria. Sentia uma espécie de medo das caras tostadas, as bocas circunflexadas por bigodes escuros a
sugar a água verde e quente do chimarrão. E além dos vultos imprecisos dos piás esquivos e barrigudos, restavam apenas Laurinda e Zeca.
— Laurinda! — chamou, levantando-se. Deu alguns passos, depois voltou e apanhou a flor. Tornou a chamar: — Laurinda!
Começou a caminharem direção à mancha esbranquiçada do casarão. Enquanto caminhava, descobriu que aquela cor era quase a mesma das pétalas. E do céu. As coisas brancas são sempre meio enxovalhadas, pensou, sentindo-se confusamente feliz. Parou, repetiu a frase ao inverso: as coisas enxovalhadas são sempre meio brancas. Pode ser, concordou. E continuou andando. A casa crescia à medida que se aproximava. Ficava mais nítido o verde das janelas, definiam-se as roseiras em torno delas. De longe, as rosas pareciam palpitar com sua fartura, sua turgidez, sua beleza quase obscena. Então explodiu a raiva que há muito sentia avolumar-se contra elas. O ódio embaralhou seus passos, fazendo-o tropeçar num monte de pedras. Mesmo pulando com um pé só, de dor, enfrentou-as:
“Suas vaidosas”, sussurrou, quase cuspindo, “suas nojentas, fiquem sabendo que tenho aqui no bolso uma flor que vale mais que qualquer uma de vocês, sabem? Que vale mais do que todas juntas, até”. Lembrou sem querer das quatro pétalas, do miolo escuro, granuloso, do talo dançante — e um riso entrecortou a frase. Ainda bem que ela está no bolso, pensou, não pode saber do que estou rindo. Mas conteve o riso. Aquela espécie de solidariedade que une os imperfeitos unia-o à flor. Porque ele se achava feio. Como as pétalas, seu corpo expandia-se sem métrica nem geometria em torno de uma cabeça escura.
Fez um gesto para espatifar as rosas, mas deteve-se. Desviou-se delas, dirigiu-se à cozinha. Um cheiro de comida já fria elevava-se das panelas abertas sobre o fogão. Foi só o que ele sentiu no início. O cheiro. A escuridão meio úmida da cozinha cegava seus olhos desacostumados à sombra. Estendeu o braço, tocou numa coisa mole, molhada. Retraiu-se, até perceber que mm passava de pano de pratos. A escuridão foi-se diluindo e, num canto, ele viu a fumaça do pito de siá Zefa subindo no ar.
— Siá Zefa, a Laurinda está?
A velha colocou a mão em concha no ouvido:
— Como?
— A Laurinda está?
Ela pensou durante algum tempo, era tão velha e tão enrugada que ele pensou que parecia ter dormido embrulhada na própria pele, amarrotando-a toda.
— Não. A Laurinda não está.
— Onde é que ela foi?
Mão no ouvido, pescoço esticado, pito na mão:
— Como?
— A Laurinda, onde está?
Siá Zefa desligou-se novamente. Uma mosca esvoaçou em torno de sua cabeça. Ela afastou com a mão. Depois, como se ao fim de um longo raciocínio tivesse conseguido chegar a algum conhecimento raro, disse:
— Ah.
Maurício impacientou-se. Berrou no ouvido da velha:
— ONDE É QUE A LAURINDA FOI?
A mulher estremeceu:
— No açude. Lavando roupa.
Falava aos arrancos. A conversa parecia fragmentada pelo tempo, às vezes misturava passado, presente e futuro em frases que eram, ao mesmo tempo, remesmoração, constatação e previsão.
Maurício foi andando em direção à porta. Deteve-se no meio do caminho. Voltou-se e disse:
— Vai tomar no cu.
— Como?
— VAI TOMAR NO CU!
A velha tornou a enfurnar-se em si mesma. Depois segurou o cachimbo e suspirou, quase sorrindo:
— Ah.
Maurício saiu correndo em direção ao açude. Nem sequer olhou para as roseiras, que pareciam tentar barrar-lhe o caminho. Os pés descalços venciam a grama, aos pulos; o sol furava o pano da camisa, esquentando a pele mesmo através dela. Chegou ofegante, largou o corpo sobre a terra,
num silêncio tão fundo que ele não tinha coragem de gritar. Ficou durante muito tempo com os olhos fechados, ouvindo somente o próprio ofegar. Depois a respiração foi serenando, e começou a escutar também o barulho das águas e das folhas que de vez em quando escorregavam das árvores. Foi abrindo os olhos devagar, a vegetação mais densa ali, mais verde. Ele não conseguia ver a água, mas era como se visse. Ouvia o zumbido das libélulas como se elas tivessem gravado nas asas o barulho das águas, pequeninos açudes voadores. Abriu a boca para chamar Laurinda, mas não chegou a gritar, um pudor muito grande de quebrar o silêncio. Esquisito é que não ouvia nem o canto de Laurinda nem as batidas ritmadas da roupa contra a tábua de lavar. “Será que a siá Zefa mentiu?”, perguntou-se. Mas sabia que não. De repente, por motivo nenhum, um versinho subiu-lhe na memória:
Se este livro for perdido e por acaso for achado, é de um pobre estudante que o perdeu por relaxado.
Relaxado ou relachado? Ah, os grandes dilemas gramaticais, a voz antipática do professor de português voltou na cabeça. E por que exatamente aquele verso, exatamente aquela hora, naquele lugar? Não sabia. Sabia que o escrevia na primeira página de todos os seus livros. Podia musicá-lo. Imitou um gemido de sanfona. Não dá, assim não, pensou, e muito varzeano. Mas o verso também é varzeano, reclamou uma outra vez. Ele encolheu os ombros, como quem quer evitar uma discussão inútil. E pela segunda vez chegou a abrir a boca para chamar Laurinda. Pela segunda vez fechou-a, sem produzir nenhum som.
Pensou em dar-lhe um baita susto, Laurinda era uma grande medrosa. Imagina, tamanha guria, quase uma mulher, já com aqueles peitões e aquele caminhar rebolante que os peões acompanhavam, o olhar e a voz dizendo coisas que ele não entendia. Afastou com as mãos as macegas que tapavam sua vista.
E então viu.
Estavam os dois nus. O sol batia no lombo suado de Zeca, fazendo-o rebrilhar como se fosse metal. De Laurinda, Maurício via apenas as coxas abertas escapando de baixo do corpo do capataz, em movimentos ritmados, trêmulos. Ritmados e trêmulos eram também os movimentos da bunda dele, subindo e descendo, o movimento espalhando-se devagar pelas pernas, pelas costas, até a cabeça afundada naqueles peitos enormes. Podia ver também as mãos da chinoca, a pele mulata destacada contra as costas fulvas e fortes de Zeca. Os cabelos despenteados dele eram como ver um campo de trigo em dia de vento norte. E a bunda dourada, uma imensa moeda rebrilhando ao sol de hora de sesta.
Estavam nus, Maurício tornou a ver, mas o que tornava aquela nudez mais completa era o relógio de pulso que o capataz não tirara. De vez em quando alguns reflexos de sol batiam nos olhos do menino, e naquele clarão cego ele sentia-se como se estivesse participando do ato dos outros dois. As mãos de Laurinda agora pareciam aranhas, aranhas furiosas perdidas na vastidão da planície fulva. Maurício viu uma delas eriçar o ferrão e penetrar fundo na carne do homem. Fechou os olhos quando o pequeno fio de sangue escorreu do ferimento. “Agora”, Laurinda gritou, “vem junto, meu macho”. Quando Maurício tornou a abrir os olhos, os movimentos tinham se intensificado. Parecia uma luta, uma luta mortal. Rolavam um sobre o outro, a terra úmida da beira do açude manchava a nudez dos corpos. e Maurício viu o barro colado aos pêlos negros de Laurinda, aos pêlos ruivos de Zeca, ali onde os pêlos dos dois se encontravam. Eles gemiam igual a porcos na hora do facão entrando na goela.
De repente veio o medo — e se Zeca estivesse matando Laurinda? Matando de um jeito que ele nunca tinha visto antes, mas matando, matando. E só ele, Maurício, só ele assistindo. Então Zeca gritou rouco, mais alto, e tremeu, e saiu de dentro dela. Agora estavam separados, um ao lado do outro, de mãos dadas, as barrigas viradas para o sol. Ela sorria. Do meio dos pêlos negros escorria um visgo branquicento. Zeca passava a mão pelos cabelos suados do peito, os olhos fechados, um gemido escapando pelas frestas dos lábios. O pé estendido de Laurinda brincava com a trouxa de
roupa suja entreaberta, e Maurício pôde distinguir os floreados de uma camisa sua no meio dela. Sentiu uma espécie de nojo, que não era nojo, mas uma palpitação na garganta e mais embaixo, na barriga. Ao mesmo tempo, uma vontade louca de correr ao encontro deles, de encostar a cara quente nos pêlos suados do peito do homem, de passar devagar as mãos pelas coxas cor de terra de Laurinda. E lamber, e gemer, e rolar na terra molhada da beira do açude, aprisionado no meio dos dois. Levou a mão ao sexo. Estava duro, latejava.
Levantou-se de um pulo, saiu correndo. Era isso, então, era isso então, era isso então, era isso era então isso era — pensava, gemia, gritava, correndo, correndo quase tão veloz quanto o pensamento que abria portas e descerrava janelas há muito tempo adivinhadas na escuridão de palavras sussurradas, quase incompreensíveis.
“A flor, a flor!”, pensou em pânico, estacando. Levou os dedos trêmulos aos bolsos, remexendo em vão todos os lugares onde ela poderia estar, com sua brancura enxovalhada. Então era isso, repetiu, e continuava sem saber se relaxado, enxovalhado, seriam com x ou ch. Os corpos nus reluziam na beira da sanga, manchados de suor, de terra e daquele visgo branquicento saído de dentro do homem para dentro da mulher. No sol da hora da sesta. Ele tinha ódio das rosas. E a flor havia desaparecido.
As coisas enxovalhadas são sempre meio brancas, ele poderia gritar para a noite. Todos então ficariam sabendo que ele sabia, mesmo que não soubesse realmente. Mas não gritou. Não gritou porque a noite era clara, porque a luz dançava na copa da paineira, porque não tinha importância nenhuma que os outros soubessem ou não que ele sabia.
Debruçou-se na janela, encostou o rosto no pano fino do pijama. Lá longe, no meio do campo, vultos brancos oscilavam. Boitatá, pensou. Depois sorriu com descrença. Boitatá era mentira de Luciana, mentira da mãe, do pai, de todo mundo. Havia muitas mentiras, precisaria ir crescendo aos poucos para desvendá-las todas. Só não entendia por que mentiam. Não era mais criança, viviam dizendo isso, e no entanto continuavam a mentir. Por que não contavam tudo claramente? Não, pensou, teria que fazer sozinho as
suas próprias descobertas. Sozinho. A palavra o assustava e, sem querer, imaginava um homem de capote negro por uma imensa estrada vazia e também negra. Sozinho.
Como um espelho, a paineira em flor parecia refletir os raios da lua. E debaixo da janela estavam as rosas. Não sentia mais ódio delas agora. Cada uma era como era, pensou, e as rosas tinham a sorte de serem bonitas. Assim como ele tinha o azar de ser feio. Mas não tinha vontade de pensar nessas coisas. Nem em outras.
Roçou o rosto contra o pijama. Um silêncio tão grande na estância. Suspendeu a própria respiração, ficou ouvindo. Nem o tique-taque incessante do relógio na casa da cidade havia ali. Lá, pensava, o relógio parecia o coração da casa; aqui, a casa não tinha coração. Só havia ruídos que vinham de fora, as vacas, os galos — dentro, não havia nenhum. Como se todos estivessem mortos. E se estivessem? Se acordasse de manhã e encontrasse apenas cadáveres nos quartos? E se? Ficou com preguiça de imaginar o resto, então estendeu a mão para uma das rosas. Não a alcançou, porque era assim então que eles faziam a noite um sobre o outro, rolando sem descanso como se estivessem se matando, suados, e depois de mãos dadas, a rosa negra e úmida do líquido branquicento saído de dentro dos homens — era assim, tinha sido sempre assim. Escondidos, em segredo, todos.
Levou a mão até os cabelos, ficou enrolando alguns fios. Era, sim, assim. E, de repente, ele perguntara: “Mas Luciana, por que é que tu estás chorando?” E ela não respondera. Até hoje, não respondera. Mexeu devagar o corpo, era desagradável a sensação de uma perna dormente. Parecia que tinha se desligado do resto do corpo, podiam ate cortá-la que ele nem sentiria. Depois ficaria perneta, que nem o Juca Perneta. Os piás da rua corriam atrás dele, gritando: “Juca Perneta! Ju-ca Per-ne-ta!” O homem sorria um sorriso sem dentes e gritava furioso: “Juca é perneta, mas gosta de buceta!” Só depois de dizer isso a piazada o deixava em paz. Ele seria então Maurício Perneta, Mau-rí-cio Per-ne-ta! Para que o deixassem em paz, teria que parar e gritar furioso: “Mauricio é perneta, mas gosta de buceta!”
Gostava? A rosa úmida, preta, palpitante, parecia ter vida própria. Assustava, como se fosse se abrir e morder. Dava medo. Nojo. Frio.
Uma tábua estalou no teto, ele voltou-se rápido. Deu com a porta alta, as três camas enfileiradas além da dele. Edu às vezes dormia numa delas, quando vinha. Mas agora não havia Edu, não havia ninguém além dele, os contornos se esbatiam na treva, informes. Lá fora a lua cheia, a noite cheia, a paineira cheia. E a cabeça dele, cheia também. Ou vazia? Cheia demais ou vazia demais? Aquele calor no corpo, ainda nem era verão, uma moeda de ouro jogada para o ar fulva redonda frenética cara ou coroa? nem cara nem coroa só os movimentos sobe-e-desce-sobe-e-desce-sobe entrando-saindo à luz da lua como seria? ainda mais fulva redonda frenética. Assoou o nariz na manga do pijama. Um latejamento na cabeça. Um esquecimento na perna. Aquela coisa quente. Vontade de chamar pela mãe. Por Edu. Por Luciana, por que tu não me disseste por que estavas chorando, sua china sem- vergonha? A do Negrinho do Pastoreio ou Pastorejo? relaxado ou relachado, meu Deus? qualquer coisa, qualquer coisa desde que tu fales Luciana, por que não me contaram a verdade?
Devia voltar para a cama. Mas os lençóis estavam quentes, ele também estava quente. Quentura com quentura vai dar incêndio. Quem dissera isso? Guardara apenas uma risada indecente sublinhando a frase, e só. E só, só a quentura do corpo de Laurinda grudada no corpo de Zeca sob a quentura do sol. Podiam ter dito “olha, te prepara”. Só isso. Porque há coisas que tu não sabes, coisas quentes. Mas não mas não mas não. Fora preciso o sol rebrilhando no relógio, a bunda como uma moeda de prata, o peito suado cabeludo, a rosa negra aberta.
Antes que tivesse tempo de debruçar-se na janela, o líquido amargo escorreu pela boca. Escorreu pelo pescoço, empapando o casaco do pijama, as pernas nuas. Nuas as carnes. Ambas. O estômago pulou como uma moeda jogada no ar. Cara ou coroa? Estatelou-se no chão antes de qualquer resposta, o líquido tornou a subir e a entornar, azedo. Partiu-se em mil, mil não, mil e um, mil e dois, mil e três — isso, mil e três pedaços amarelos, mil e três bundas fulvas rebrilhando ao sol e à lua misturados, suando sobre a terra.
Deu-se conta de que gritara quando a luz invadiu o quarto e os braços frescos da mãe envolveram-lhe o pescoço. Quis contar, então, contar tudo, mas ela spo fazia apertá-lo levemente, e passar a mão por sua testa. De leve, de leve. Tão leve que ele começou a cair num poço escuro e fundo, cada vez mais escuro e tão fundo e sem fim. “Mamãe, eu não vou voltar nunca mais!”, quis gritar. Mas ela apenas sacudia a cabeça, com um ar tão resignado que era como se já soubesse de tudo, de tudo que ele sabia que ela sempre soubera, antes mesmo de ele contar, antes mesmo de ela própria saber que ele já sabia. Qualquer coisa, naquilo tudo, vinha antes. Ele não compreendia o que pensava, então quis gritar de novo: “Mamãe, eu não vou voltar nunca mais!” E não voltou nunca mais.

Ler mais »

0 comentários: