Noções de Irene

0

Levou algum tempo para abrir a porta, a campainha soando sem resposta até que ele terminasse de ajeitar cuidadosamente as duas poltronas, uma em frente À outra. Depois entreabriu a pequena janelinha e simulou uma espécie de espanto:
– Ah, é você — e abriu a porta para que o outro entrasse. – Você foi pontual — acrescentou, apontando para uma das poltronas. – Sente-se, por favor. Estava com medo que você não viesse.
– Medo?
– É, não exatamente medo. Você compreende, praticamente não me conhecia. Deve ter ficado surpreso com o convite.
O outro sacudiu ligeiramente a cabeça. Parecia mesmo espantado, as mãos um pouco tensas sobre os joelhos dos jeans desbotados. Ele encaminhou-se para a mesinha e mostrou a garrafa de uísque.
– Muito ou pouco gelo?
– Puro, por favor.
Espantou-se também, um pouco. Mas imediatamente conteve-se: era preciso que tudo fosse feito com muito cuidado, e que todas as palavras e movimentos se encaminhassem para um único fim. Enquanto enchia o copo, examinou-o disfarçadamente. Tão jovem, pensou com uma sombra que chamaria amargura, não estivesse tão empenhado em delicadezas. Voltou com os dois copos e, sentando, não soube por onde começar. Hesitava entre falar diretamente ou esperar que um clima de cordialidade — certa cordialidade, pelo menos, concedeu — se estabelecesse enquanto os copos eram esvaziados. Então percebeu que o outro olhava para os discos.
– Gosta de música?
– Muito.
Claro, claro — pensou. — Todos eles gostam de música. Fez um movimento como se fosse levantar.
– Quer ouvir alguma coisa? — Sorriu. – Curtir um som... não é assim que vocês dizem?
O outro também sorriu:
– Sim.
– Bem, acho que não tenho exatamente aquilo que vocês gostam de ouvir. Irene sempre se queixa disso — estremeceu. Mas não havia nenhuma premeditação. O nome dela saíra naturalmente, assim como se não tivesse importância. Caminhou até a vitrola e perguntou: – Rock?
– Bach.
Escolheu rapidamente e voltou a sentar. Surpreso. Porque, afinal, não era como esperava. Talvez tivesse sido demasiado apressado em julgar, catalogar gostos, rotular expressões, como se nenhum deles fosse capaz de alguma individualidade. Afundou na poltrona. Os olhos muito claros do outro. Ou, quem sabe, estava apenas representando, justamente para confundi-lo.
– Não queria que fosse como um jogo.
– Como?
– O quê?
– Desculpe, não entendi direito o que você disse.
Cruzou as pernas, contrafeito:
– Falei sem pensar, desculpe. Ou melhor, pensei em voz alta. Disse que não queria que fosse como um jogo. — Ouviu a própria voz, um pouco rouca. Estava se comportando como um idiota. Mas subitamente resolveu dizer: – Bem, suponho que sabe por que pedi que viesse aqui.
– Sei. Suponho que sei.
Já havia começado. Não poderia mais voltar atrás:
ele olhou para cima da mesa e viu o porta-retratos voltado para baixo. Estendeu o prato com biscoitos. O outro serviu-se devagar.
– Estes biscoitos têm gosto de flor, não é?
O outro tornou a sorrir, os dentes aparecendo súbitos entre os fios de barba manchados de sol e fumo, os cabelos enormes. Ele levou o copo até a boca e ficou sentindo as pedras de gelo baterem contra os lábios. Arrancou um fio invisível da perna da calça.
– Quero dizer, se você sabe, ou se acha que sabe por que o convidei, bem, creio que não há necessidade de ficarmos... Bem, de ficarmos falando sobre outras coisas. Afinal, somos homens civilizados, não é?
O outro concordou sem falar, contraindo imperceptivelmente as sobrancelhas. Ele julgou perceber ironia no movimento, e por um instante odiou: todo concentrado em odiar profundamente. Falou rápido:
– Sou só um pouco mais velho que vocês. Uns dez anos. — Lembrou da outra vez que o vira, dizendo convicto: todo homem com mais de trinta anos é um canalha. Voltou a odiar um ódio compacto e breve: – Talvez daqui a vinte anos isso seja uma diferença insignificante. Mas por enquanto é terrível, quase um abismo. — Levantou-se brusco, não suportando o olhar muito claro do outro e suas mãos magras sobre os jeans desbotados. Afastou as cortinas e ficou olhando para fora: — O que quero dizer é que...
Deteve-se. No lado oposto da rua a pequena loja de flores fechava suas portas. Era quase noite. Sem sentir, fez uma longa pausa, praticamente esquecido do outro. Depois completou:
– Não me surpreende que ela vá embora.
Olhou-o. E de repente a música começou a ter importância: as notas subiam e baixavam, davam voltas concêntricas sobre um ponto desconhecido, subitamente se espatifavam para voltarem a recompor-se, cheias de pequenos movimentos internos, mas sem perderem a continuidade, escorrendo, fluidas. O outro, na esquina, os dedos formando um V, os dentes entre os fios manchados de barba, os cabelos crespos, enormes: – Grande lance, bicho. — Sentou-se com um suspiro:
– Quero dizer que não pretendo colocar a mínima dificuldade. Entendo perfeitamente tudo. E depois, mesmo que não entendesse, não adiantaria nada. Ela sempre fez o que quis. Mas não com... com agressividade, entende? Quero dizer, ela está sempre tão dentro dela mesma que qualquer coisa que faça não é nem certa nem errada, é simplesmente o que ela podia fazer. — Parou por um momento, talvez estivesse sendo subjetivo demais, quase literário. Não queria parecer ridículo, nem demasiado velho. Mesmo porque não sou velho. Nem ridículo. Tornou a levantar-se.
– Quer mais uísque?
O outro disse que não.
Encheu um copo e trouxe a garrafa para perto da poltrona. De repente perguntou, quase alegre:
– Sabia que Irene é um nome de origem grega?
O outro perguntou: – O quê?
– Quer dizer Mensageira da Paz — continuou, sem dar atenção. – Gozado, não é? Uma vez eu disse isso a ela, ela riu, disse que era besteira. Mas outro dia eu fiquei pensando e achei que tudo foi realmente muito calmo. Mesmo agora, não está sendo difícil. — Ergueu o copo. – Sabe, nunca houve assim... grandes cenas, choros ou desesperos, tentativas de suicídio ou sequer ameaças. Nenhuma dessas coisas. Ela tem horror de tragédia. — Sentou-se, o copo na mão. E repetiu: – Ela tem horror de tragédia. Às vezes, na hora do jantar, a televisão ficava ligada e a gente via umas novelas. Sabe, eu chorava potes com aquelas coisas, separações lancinantes, amores impossíveis. Ela ria o tempo todo e dizia que eu era uma besta. Ou então aqueles concursos de empregada mais desvelada, eu precisava sair da sala para que ela não me chamasse de besta. — A voz dele ficou um pouco mais baixa, quase inaudível. – Mas uma vez eu voltei de repente e surpreendi ela com uma lágrima escorrendo pela face. Desculpou-se e disse que às vezes era mesmo meio cafona. E mais baixo ainda: – Faz tanto tempo.
Estremeceu. Como se, de repente, percebesse que enveredava por um caminho perigoso. Sacudiu os ombros e reaprumou-se na poltrona. Riu alto e meio desafinado, enquanto tornava a encher o copo:
– A gente está falando dela como se estivesse morta. Mas está tão viva, não é?
Levantou-se para virar o disco. Depois voltou-se e perguntou:
– Você leu Cleo e Daniel?
Não prestou atenção na resposta. Apoiou a mão no encosto da cadeira:
– A primeira vez que vi vocês juntos, foi o que lembrei. Cleo e Daniel. Tudo era parecido, até aquela quantidade incrível de bolinhas brancas que você tirava do vidro enquanto ela formava figuras sobre a toalha. Ficava assim tão... tão doce, depois. Ou então falava horas. Às vezes sentava no chão e ficava enrolando aqueles cigarros fininhos, que eu achava com um fedor horrível. Dizia que eu estava por fora, me chamava de careta e ficava horas fazendo uns desenhos malucos.
Interrompeu-se para olhá-lo fixamente:
– Você é pintor, não é? Lembro que ela falou que uma vez você tinha feito uma exposição na praça, e que a polícia chegou e rasgou todos os quadros, menos os dois que ela tinha comprado. — E sem mudar de tom: – Talvez eu seja mesmo um chato. — Dobrou-se sobre a poltrona: – Você acha que eu sou um chato?
Olhou longamente para o outro, para as pernas cruzadas sobre a poltrona, como um iogue. Mas não ouviu a resposta.
– Lembra daquela cena, quando ela está deitada e passa alguém na rua cantando? Lembra aquela cena?
– De Cleo e Daniel?
– Não, não. Um livro não tem cenas, tem trechos. — Olhou para o próprio dedo, parado no ar. – Às vezes eu fico meio didático, não dê importância. — Acrescentou:
– Quem tem cenas é um filme.
– Qual era o filme?
– Filme?
– É, quando ela estava deitada e passava alguém na rua, cantando.
– Ah, você lembra, então? — Sorriu largo. – Sempre soube que você tinha visto aquele filme. Lembra da música?
– O quê?
– A música. A música que alguém passava cantando. Era assim: lo che non vivo piú di un‘ora senza te... Não lembro o resto. Faz tanto tempo. Acho que foi o primeiro filme que vimos juntos. Ela chorou o tempo inteiro.
Deslizou para a poltrona, tornou a encher o copo e virou-o de uma só vez:
– Talvez eu esteja falando demais: logo, isto não é um diálogo, é um monólogo. — Repetiu: – Às vezes eu fico meio didático. Mas fale alguma coisa, você não disse quase nada. Pode crer que nada me choca. Não que eu espere ouvir somente coisas chocantes de você, não é isso. Mas acho que vocês pensam que me chocam o tempo todo. Vocês não acham mesmo que sou muito velho e muito careta? Afinal, já tenho alguns anos de canalhice.
O outro disse que absolutamente. Então ele disse que achava que aquela música já estava enchendo, mas o outro não disse nada, então ele permaneceu durante muito tempo na mesma posição, acompanhando com a cabeça o som do cravo. Só parou para encher mais uma vez o copo. Subitamente falou em voz muito baixa:
– Sabe, não é verdade que eu entenda tudo.
– Não?
– Não, não é verdade. Não entendo, por exemplo, como é que ela pode trocar a segurança de ficar comigo pela insegurança de ficar com você. Vocês são todos tão... tão... — Interrompeu-se, procurando a palavra. – Tran-sitó-ri-os, é isso. Vocês são muito transitórios, entende? Tão instáveis, hoje aqui, amanhã ali. Eu sei, também já fui assim. Só que chega um ponto que a gente cansa, que não quer mais saber de aventuras ou de procuras, entende? Acho que é isso que vocês não são capazes de compreender, que a gente, um dia, possa não querer mais do que tem. É isso que ela não compreendia. Acho que é por isso que ela foi embora. Talvez as coisas comigo fossem muito chatas, muito arrumadas. Acordar todos os dias à mesma hora para encontrar a mesma cara. É engraçado. Ela dizia sempre que morreria qualquer dia, de susto, de bala ou vício. Acho que citava algum verso de um desses cantores que vocês tanto gostam, desses que morrem por excesso de drogas.
Levantou-se, o passo precário. Deu algumas voltas sem direção, depois tornou a encarar o outro:
– Sabe, acho que ela vai se destruir com você.
Virou mais uma vez o disco. Sabia que estava saindo tudo errado. Não era aquilo o que planejara, detalhado, meticuloso, arrumando as duas poltronas, uma em frente à outra, a mesinha com uísque, o balde de gelo. Talvez até chorasse agora, admitiu. A sala inteira girava quando ele se encaminhou para a janela. Espiou pelas dobras da cortina. Havia anoitecido. A loja de flores estava fechada, as latas de lixo transbordavam cravos, palmas, crisântemos. Deixou-se cair sobre os joelhos e não fez o menor esforço para levantar-se, as costas apoiadas contra a superfície fria da parede. O outro levantou-se e perguntou se não achava que estava bebendo demais. Ele disse que não, que não achava. E perguntou mais uma vez se não era mesmo um chato. O outro fez que não com a cabeça. Que de maneira alguma. Então ele disse que precisavam ainda conversar muitas coisas, com muita calma, com muito tato, como homens civilizados.
– Não é verdade que somos homens civilizados?
O outro disse que sim, disse muitas vezes que sim — e subitamente apertou o ombro dele com aquelas mãos magras e nervosas, como se compreendesse. Vistos de perto, os olhos eram ainda maiores e mais claros, um brilho seco nas pupilas dilatadas. A barba crescida, manchada de sol e fumo. Depois saiu devagar, fechou a porta atrás de si. Então ele encostou a cabeça na parede e ficou ouvindo aquelas notas subindo e baixando, dando voltas concêntricas sobre um pequeno ponto desconhecido, mas sem perderem a continuidade. De certa forma, disse baixinho, de certa forma Irene era assim.

Ler mais »

0 comentários: