GERÂNIOS

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Para Ivo Bender

Não, não tem a menor importância, sacode a cabeça e ajeita os gerânios no vaso com movimentos rápidos, longe de mim essa idéia, apenas você sabe como Ruth é nervosa, e depois de tudo o que passou realmente não é de admirar. Apanha algumas pétalas caídas sobre a madeira e tritura-as entre os dedos sem parar de falar, espera qualquer coisa como um sumo grosso entre as unhas, esperma quente de homem: as pétalas partem-se secas em poeira, gotejam lentamente sobre o assoalho encerado na manhã anterior. Manhã ainda, os cristais retinem sob os raios de sol, mas você sabe, a ideia foi dela, Ruth casar-se com esse armênio gerânio Ascânio é nome de motorista de caminhão, se eu usasse longas saias varreria o chão com a espessa barra bordada, tão original sempre, Ruth, disse-lhe uma vez que parecia uma égua no cio, talvez estivesse enganada, talvez tenha estado sempre enganada, mas aquela pele morena cheirando a sal, os olhos meio verdes de tanta luz, e o cheiro, não sei se você chegou alguma vez a reparar no cheiro dela. Era verdadeiramente obsceno, Roberto dizia sempre, tão sensível, Roberto, às vezes chegava a refugiar-se no banheiro quando Ruth passava feito um bazar oriental, e vomitava, chegava a vomitar, não que tivesse nojo; não sei se você alguma vez chegou a reparar nisso, também não era nojo, Roberto tinha uma incapacidade total para adaptar-se a coisas assim animais, como Ruth, portanto não me surpreendeu o rompimento, a fuga com Ariel, era realmente inevitável, é verdade que sofri um pouco, sobretudo depois que a surpreendi com o armênio no sofá da sala, e isso conto apenas para você. Fico tão cansada às vezes, e digo para mim mesma que está errado, que não é assim, que não é este o tempo, que não é este o lugar, que não é esta a vida. E fumo, então, fico horas fumando sem pensar absolutamente nada: disseram-me uma vez que os discos voadores costumam aparecer ao crepúsculo, mas nunca consegui ver um, me pergunto se eles só se mostram para quem de certa forma está preparado, os tais escolhidos, e confesso que fico um pouco ofendida ao supor que não seja uma das escolhidas, você me entende? Claro, é preciso julgar a si próprio com o máximo de rigidez, mas não sei se você concorda, as coisas por natureza já são tão duras para mim que não me acho no direito de endurecê-las ainda mais. Ruth havia desabotoado as calças do armênio e estava debruçada sobre ele, não me peça detalhes, naturalmente não chego aos extremos de delicadeza de Roberto, se você insistisse em saber eu não vomitaria, mas me custa contar, apenas isso, me dilacera, é uma questão de respeito próprio, você não acha? Mamãe também ficava furiosa na hora do jantar, não dizia nada, claro, com a educação que teve mamãe jamais-jamais desceria a ponto de fazer qualquer comentário agressivo sobre aquela situação profundamente desagradável, mas retirava-se para seu quarto e Roberto e eu íamos colocar lenços embebidos em água-de-colônia sobre suas têmporas enquanto o armênio comia na mesa da sala, a camisa sempre desabotoada, as gotas de suor pingando dos pêlos sobre o arroz, a salada, a carne, como um sal, um sol. Pobre mamãe: sentava-se na sua poltrona favorita e cruzava as pernas muito digna, uma vez a surpreendi esfregando as pernas até deitar a cabeça no espaldar da poltrona, os olhos fechados, suspirando. Ficara muito solitária depois da morte de papai, Roberto e eu compreendíamos perfeitamente essas coisas, embora não falássemos sobre elas, e nada fazíamos, apenas Ruth ironizava, não ironizava propriamente, você a conhece bem, mas fazia aquelas caras, aquelas bocas, dizia aquelas frasezinhas, depois saía a correr de conversível com o armênio. Afasta os cabelos da testa ampla com ambas as mãos e fixa os olhos na porta, vazios, medrosos, uma princesa no deserto, exilada de sua tribo, depois traça riscos nervosos nos braços da poltrona, descabelada, uma mulher das cavernas: escuta ávida o rumor da máquina decepando a grama além das janelas. Foi Roberto, coitado, quem precisou tomar conta de todos os negócios depois da morte de papai. Ruth? Não. Antes do armênio houve o grego Dmitri, entregador de gelo, antes do grego um colega de escola, Helmut, filho de alemães, eu também não entendo bem, sempre essa mania de estrangeiros, deve ser uma forma de escapismo, Roberto ficava ofendido com isso e a chamava de judia, chamava muitas vezes de judia, até que a palavra perdesse o sentido e nem mais ele se sentisse ofendendo-a nem mais ela se sentisse ofendida, mesmo porque ela não era judia, nenhum de nós, você sabe, mamãe sempre teve uma preocupação incrível com isso, chegou a pagar um advogado para rever toda a nossa árvore genealógica. Não dou importância a essas coisas, mas havia barões, uma dama de companhia de Isabel, a Redentora, Ruth dizia também que uma escrava nagô, qualquer coisa assim, ela era meio negra, meio puta, com aquele cheiro, aquela mania de se esfregar em todos os homens, tão deprimente, até em Ariel, coitadinho, tão indefeso com aquele olho desbotado, o melhor amigo de Roberto, foi ele quem teceu aquele xale azul-marinho que mamãe gostava tanto, um talento, um doce, Ariel, o armênio, um dia, tenho até vergonha de contar, você me perdoe, coisas assim tão íntimas, mas você é praticamente da família, não tem importância, acho, meu Deus. Mostra, o gesto largo, e entre dois suspiros, a mão no seio, alguma coisa se passou comigo desde aquela vez, não fui mais capaz de acreditar nos homens, uma vez provei da boca de Ruth, você talvez não creia, mas tinha mesmo gosto de sal, passei devagar a língua no meio de seus beiços, ela acordou e ficou me olhando, só depois de muito tempo é que fui perceber que ela estava ali acordada, me olhando, e eu não senti nada, veja a complexidade da alma humana, como dizia Roberto, nesse tempo eu andava assim observando as minhas sensações, Roberto tinha me aconselhado, então eu não sentia nada, podia fazer as coisas mais audaciosas sem sentir nada, bastava estar atenta como estes gerânios, você acha que um gerânio sente alguma coisa? quero dizer, um gerânio está sempre tão ocupado em ser um gerânio e deve ter tanta certeza de ser um gerânio que não lhe sobra tempo para nenhuma outra dúvida, era horrível, eu sentia o cheiro do armênio o dia todo, pela casa inteira, um cheiro grosso de macho, um cheiro quase de animal, na minha pele, no meu quarto, nos meus lençóis, nos meus cabelos, na minha alma, na boca de Ruth. Roberto trazia sempre incenso junto com os cigarros, havia uns de sândalo, outros de benjoim, almíscar, alfazema, rosamusgosadaíndia, mas nada atenuava o cheiro do armênio na cozinha, nas panelas, no banheiro, nas paredes, nas mãos de Ariel, nos seios de Ruth: Ruth despia-se na minha frente e mostrava as manchas roxas dos dentes e das unhas do armênio, mamãe encontrava os pêlos do peito do armênio boiando na sopa, aquele olho verdeazulado, em todos os cantos, na fumaça dos cigarros: Roberto e eu ficávamos de olhos inchados e não conseguíamos mais rir nem inventar historinhas como antes: em todas as visões estavam Ruth e o armênio, a nudez morena, suarenta, de Ruth, e o armênio entre os sacos de arroz e açúcar no armazém de papai. Mas longe, muito longe de mim essa idéia de matá-los, embora já não tivéssemos paz dentro desta casa e mesmo no campo, para onde fugíamos nos fins de semana, Roberto e Ariel rolavam no meio da grama enquanto eu fumava olhando para os dois e sabendo do terrível que era Roberto procurar com náusea o corpo áspero do armênio no corpo branco de Ariel que procurava o cheiro do armênio no cheiro de pinho do peito de Roberto. Mamãe não resistiu muito tempo, ai, fico esperando a volta de umas tardes sem pirâmides, sem triângulos, sem cabalas, de umas noites sem signos nem pentagramas, de uns crepúsculos sem discos voadores, e vou procurando pelas manhãs de cortinas ao vento apenas coisas como cortinas ao vento e o dia caminhando ao encontro de si mesmo no outro lado do mundo, mas já não encontro paz desde que mamãe morreu e após o enterro Roberto e Ariel fugiram para o Oriente, deixando-me sozinha com os dois, tenho medo do ranger de meus dentes e desta solidão nas entranhas, não sei por que lhe digo tudo isto, por favor, fique mais um pouco, desdobra-se agora e parece quase verdadeira embalando seus fantasmas parada no meio da sala, não sei sequer seu nome, e pouco importa, fico à espera de que abram a porta do quarto: no sétimo dia de siroco a casa estará cheia de gerânios e dessas flores morenas e esguias como beduínos, com cheiro de deserto, deixarei preparadas as facas, os sacrários, Ariel mandou-me amuletos do Nepal, tomaremos chá, embalarei Ruth nos meus braços e depois terei muito cuidado ao depositá-la entre os sacos de açúcar para libertar a mão direita, estendê-la em direção ao armênio e tocá-lo tão fundo que por um instante ele se dissolva e fique oscilando ao vento exatamente como estes gerânios — você está vendo?

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