A Charles Kiefer

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Sampa, 16 de novembro de 1982.

Charles,
recebi seu livro na sexta-feira. Chovia sem parar. Aí, talvez motivado
principalmente pelo título, comecei a ler e não parei mais. Terminei na mesma
noite. Agora já é terça, a chuva continua e o rádio vai dando os resultados das
eleições (estou com vergonha dessa vitória do PDS aí), e deu vontade de conversar
um pouco com você.
Gosto do seu livro. Talvez principalmente (veja que imodéstia) porque ele
me lembra um pouco o meu primeiro romance, Limite branco, que também conta
a história de um adolescente, mudando do interior do Rio Grande do Sul para
Porto Alegre. Tem, então, um tom parecido — embora você seja bem mais direto.
Gosto desse jeito de ser direto, da falta de afetação, da simplicidade. E penso então
que você vai-longe. Não me pergunte o que quero dizer com ir-longe. No mínimo,
talvez, escrever outros livros? Pode ser.
É que essa nossa “profissão” (aspas intencionais & irônicas) de escritor na
verdade não tem muitas vantagens objetivas. Até hoje, cinco livros publicados, 34
anos, me debato todos os dias para sobreviver e para não desistir. Nélida Piñon
costuma dizer que, de alguma forma, todos os dias alguém bate à nossa porta e nos
convida a desistir. Não desistimos de teima quem sabe até meio burra.
Mas gosto do seu Caminhando na chuva (incluindo a capa — linda! — e a
apresentação inteligentíssima do Deonisio da Silva) e gosto também de saber que
você existe. Não deixe o Túlio ser devorado por Porto Alegre. Sabe que,
terminando de ler você, fiquei com pena que o livro fosse tão curto e me deu uma
curiosidade enorme de saber o que teria acontecido com Túlio em Porto Alegre.
Daí me passou pela cabeça que você podia continuar a história, num outro livro,
com a mesma personagem. Mas aí já é a minha cabeça se metendo sem ser
chamada na sua invenção. Seja como for, gostaria de saber do resultado, em termos
de ficção, da sua mudança pra Portinho.
É isto. Eu aqui tenho ido um pouco aos trancos. As vezes duvidando um
pouco do acerto das opções que foram sendo feitas nos últimos anos, quando me
dou por conta nesta cidade quase sempre árida, sem nenhum amor, sem paz. Um
ceticismo, umas durezas que eu não tinha antes. Deixa pra lá. Mando a carta aos
cuidados da editora, espero que chegue a você. Se quiser bater um papo, estamos aí.
Receba um abraço e votos de sucesso para o seu livro,
Caio Fernando Abreu


Sampa, 14 de abril de 1983

Charles,
tua carta foi tão bonita, e eu não respondi logo. Perdoe: é que eu tinha
escrito essa resenha pra IstoÉ (há MESES) e estava esperando que saísse. Saiu
agora, com alguns cortes por falta de espaço, aquelas coisas de imprensa — mas
fiquei contente, e espero que você tenha gostado. Já havia saído, no Jornal da
Tarde, uma crítica muito elogiosa ao teu livro, escrita pela Marisa Lajolo, imagino
que você tenha visto. Fiquei meio puto, porque queria ter tido a honra de ter sido o
primeiro a falar no seu trabalho aqui nestas poluídas bandas. O Geraldo da IstoÉ
marcou, o JT se adiantou, mas tudo bem.
Eu tô meio agitado, aqui, de mudança para o Rio de Janeiro. Faz tempo
tenho problemas com Sampa — barulhenta, pouco saudável, solitária, amarga.
Agora decidi. Não dá mais. Há uns seis meses praticamente não saio de casa,
detesto tudo, perdi o contato com as pessoas, fico vivendo uma vida toda pra
dentro, lendo, escrevendo, ouvindo música o tempo todo. Daí, então, vou em
busca de um pouco de Sol (em todos os sentidos). Faz tempo que me mexo sem
parar. No momento, estou reduzindo tudo que tenho (uma casinha cheia de coisas,
coisas inúteis, mas gosto delas) a no máximo duas malas. No Rio, vou ficar
provisoriamente num hotel, em Santa Teresa, um lugar antigo, tranqüilo, com um
jardim e longos corredores coloniais. Já fiz 10 mil fantasias literárias, claro. Não sei
se fico lá nem o que vai acontecer. É esquisito, mas sempre orientei minha vida
nesse sentido — o de não ter laços, o da independência, de poder cair fora na hora
que quisesse —, e agora que ficou tão nítido, aos 34 anos, que realmente consegui
isso, fico meio.., desamparado, acho que a palavra é essa. Devia ter inventado outra
coisa? Teria sido possível? E que outra coisa seria? Não sei. Estou ouvindo Milton
Nascimento que neste momento exato acabou de me dar a resposta: “Se quieres ser
feliz como me dices/ no analices, ah no, no analices...”
Andei escrevendo bastante. De repente, acho que está saindo um livro novo.
Sabe que tenho MEDO de escrever? Evito sempre que posso. Dá uma grande
exaustão, depois. Uma exaustão agradável, mas a cabeça fica excitada demais, é
qualquer coisa muito próxima da loucura. Mas nos últimos tempos não tenho
conseguido evitar. Vai saindo. É meio assustador. Passei os últimos meses
envolvido com uma pequena novela, O marinheiro, tão desesperadamente solitária
e tão alucinadamente onírica que eu tinha medo de não voltar cada vez que
mergulhava nela. Acho que está pronta. Peguei pânico de máquina e, há poucos
dias, voltei.
E você, como vai? Detesto perguntar “tem escrito?”. Soa sempre como
cobrança, e quem faz esse tipo de cobrança geralmente não sabe que a cabeça de um escritor é louca demais para que se possa responder “sim” ou “não”. Mesmo
que não se esteja escrevendo realmente, a gente sempre está escrevendo por dentro.
Mas eu tenho, anyway, vontade de ler outras coisas suas. Imagino que depois do
Caminhando na chuva deve vir muito mais.
Olha, quando eu tiver um endereço fixo no Rio, te mando. Gosto muito de
cartas (tanto quanto detesto telefone) e, se você gostar também, a gente pode quem
sabe trocar coisas. Estou aqui, ainda, até o dia 30 de abril. Se até lá, você quiser me
escrever, mande pra cá. Meu tempo no hotel deve ser provisórios mas não posso
prever.
Parando agora um pouco, me deu uma saudade grande de Porto Alegre que
fica linda em abril, maio. Os plátanos da Redenção já começaram a amarelar e a
perder as folhas? Acho que não, é muito cedo. Outro dia descobri três plátanos
aqui, em Higienópolis, devem ser os únicos da cidade. É meio inconcebível uma
cidade sem plátanos. Tenho uma vontade besta de voltar, às vezes. Mas é uma
vontade semelhante à de não ter crescido.
É isto, então. Qualquer coisa que você precisar destas bandas de cá, estou às
suas ordens. Cuide-se bem. Um abraço do seu amigo
Caio

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