BRUNO

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A primeira coisa que notou quando passeou os olhos pela sala de aula foram uns cabelos louros, presos a um corpo que, no primeiro momento, não chegou a se definir. Pareciam soltos no ar, tomados de vida própria, desligados de qualquer cabeça. Só um pouco mais tarde, raciocinando vagamente que aqueles cabelos deveriam pertencer a alguém, complementar um par de olhos, um nariz, uma boca, duas mãos e todas essas coisas — só depois de chegar a esse pensamento foi que Maurício voltou-se devagar, outra vez, para ver melhor.
E teve medo da decepção. Aqueles cabelos louros e bonitos mereciam também um corpo louro e bonito. A voz do professor cortou no meio o ato de voltar-se. Deslizou os olhos pelos outros cabelos que se ofereciam, sem mistérios, mas logo aborreceu-se. Não tinham a vida — era vida? — daqueles outros, dos louros. Espiou pela janela, para o verde das árvores da Redenção. Estavam imóveis no meio da vaga bruma. O globo terrestre girava com o movimento dos dedos do professor, misturando continentes, oceanos e ilhas numa só massa azulada. Dava um pouco de sono.
Na ponta dos dedos, a caneta tomou vida própria e começou a escrever frases sem sentido. Olhou o relógio, cinco minutos para bater. O corpo do professor, bem à sua frente, obrigava-o a afetar um olhar interessado, acompanhando com movimento de cabeça as frases que ele dizia. Sacudiu a caneta, um borrão de tinta espalhou-se sobre as frases recém-escritas. O professor fez uma pausa. As gotas de tinta atingiram os dedos de Maurício, escorreram para a mesa, para o chão. No meio da pausa, o professor olhou-o interrogativo, esperando decerto que levantasse e fosse lavar as mãos. Teve vontade de não se mexer, como se não tivesse acontecido nada. Mas os colegas aguardavam em silêncio, o globo ainda girava, o professor tinha um gesto suspenso no meio, a tinta espalhava-se lenta. Levantou, pediu licença e caminhou até a pia no canto. Enquanto andava, sentia a sala dilatar-se,
aliviada, às suas costas. Abriu a torneira, a água escorreu pelos pulsos, pela palma, pelos dedos, levando a tinta. Com movimentos cuidadosos, arrancou a toalha de papel, secou as mãos lentamente. O olhar dos outros queimava suas costas. De agora em diante, até aprenderem seu nome, seria conhecido como aquele-que-lavou-as-mãos-na-aula-de-geografia. “Ele está me vendo”, pensou de repente. E voltou-se, procurando os cabelos louros.
No fundo da sala, encontrou um par de olhos claros que o observavam com interesse. Voltou até seu lugar, sentou-se. E recompôs então o rosto que vira, inclinado de leve, o queixo pousado no côncavo da mão direita. “Não tenho nenhum amigo”, pensou sem sentido. Ou só percebeu o sentido um pouco depois. Até lá, desfilaram por sua cabeça todas as coisas que eram, ao mesmo tempo, causa e conseqüência de não ter nenhum amigo — não conhecia ninguém, viera do interior e ia para casa de bonde. Não havia nenhuma relação entre não ter amigos e andar de bonde, mas continuou a enumerar razões, batendo com o dedo no tampo da mesa. Como cinco minutos custavam a passar, meu Deus. Repetiu baixinho “Meu Deus”, sem exclamação. De súbito resolveu prestar atenção nas palavras do professor, mas só começou a ouvi-las no momento exato em que o homem colocava o livro dentro da pasta e dizia: “Bem, com isso então encerramos o assunto de hoje.” Houve uma pausa que Maurício não saberia dizer se de alívio ou cansaço. Logo depois o barulho da Campainha espatifou o silêncio, fazendo entrechocarem-se no ar o ruído de fechos cerrando, livros sendo guardados, palavras se desencontrando. Propositalmente, demorou um pouco mais. Os alunos que já se conheciam passavam em grupos, vagamente arrogantes, enquanto os novos como ele dividiam-se em duas categorias — a dos que se esquivavam, como se realmente não quisessem ser conhecidos, e a dos que sorriam com timidez, tentando uma aproximação humilde. Até agora, Maurício colocara-se entre os primeiros, mas começou a retardar os movimentos, sorrindo difícil. Logo a sala ficou totalmente vazia.
Foi então que o rapazinho louro mexeu-se em direção à porta de saída. Maurício acompanhou-o hesitante. Na escada emparelhou com ele. Sorriu. O menino sorriu também. Maurício resolveu ser o primeiro a falar:
— Chata a aula de geografia, não?
O outro entortou a cabeça:
— Você acha? É uma das minhas matérias preferidas.
Às primeiras palavras Maurício descobriu um sabor de coisa já vivida. Não conseguiu precisar o que era. Apressou-se a explicar:
— Eu também gosto. Mas é que é a última aula, a gente já está cansado. — Ah, bom. Eu também estava cansado, sabe?
Maurício lembrou: aquela maneira de falar, chiando levemente nos “esses”, puxando forte nos “erres”. Lembrou de Maria Lúcia.
— Tu és carioca?
— Sou. Como é que você sabe?
— Está na cara — disse. Depois emendou, numa tentativa de brincadeira: — Ou melhor, está na voz. Tenho uma prima que é de lá do Rio e fala do mesmo jeito.
O menino sorriu. Sorria muito, mas falava pouco e baixo. A escadaria chegou ao fim, a porta aberta expeliu-os para a rua onde o movimento de fim de tarde ficava mais intenso.
— Eu também não sou daqui — explicou Maurício. — Sou do interior. Viemos faz pouco tempo de lá, não conheço ninguém.
— Eu também não conheço ninguém. Só você agora.
Sorriram um para o outro. A solidão e a timidez unindo-os com suavidade. Começaram a caminhar.
— Vou tomar o bonde — disse Maurício. — Tu vais a pé mesmo?
— Vou. — O menino hesitava um pouco, sacudindo a pasta, o olhar fixo nos sapatos. — Moro aqui perto.
— Ah, que pena. Senão a gente ia junto.
O menino estendeu a mão:
— O meu nome é Bruno.
— O meu é Maurício.
Apertaram as mãos. Tornaram a sorrir, embaraçados. Maurício queria dizer alguma coisa, mas a cabeça estava vazia. Deu alguns passos em direção a um bonde que se aproximava.
— Bom, vou indo. Amanhã a gente se encontra na aula. Até logo.
Começou a caminhar. A voz do outro o deteve:
— Maurício!
Voltou-se rápido:
— O quê?
— Ao meu lado tem uma carteira vazia, se você quiser pode sentar lá amanhã. Bruno hesitou, gaguejou ruborizado:
— Eu gostaria muito.
Subindo no bonde, Maurício gritou:
— Quero sim. Claro que eu quero.
Antes do bonde dobrar a curva, olhando para trás, ainda conseguiu ver mais uma vez aqueles cabelos louros.
— Boa tarde. O Bruno está?
— Está, sim. Entre, Maurício.
Embaraçado, apertou a mão que a mulher estendia. Sentia-se intimidado, talvez pelo vestido preto justo que ela usava, pelo colar de pérolas um tanto despropositado àquela hora da tarde.
— Como vai a senhora, dona Cristina?
—Vou indo — ela disse. E acendeu um cigarro.
— Bruno melhorou?
Ela sorriu levemente, sem responder. Em sua presença, Maurício ficava tomado por uma mistura de respeito, fascinação e antipatia. A mulher sempre de saltos altos, cabelos bem penteados, sorriso agradável e palavras exatas fazia-o pensar na própria mãe. Isso lhe dava um sentimento de inferioridade, porque revia os olhos baixos da mãe, com seu interminável tricô de Penélope. Os próprios móveis da casa eram diferentes. Piano de cauda, vasos de cristal, cortinas de renda branca.
— É justamente sobre isso que quero falar com você — ela disse de repente. Maurício surpreendeu-se:
— Sobre o quê, dona Cristina?
— Sobre a doença de Bruno.
Ela também era loura, e o jeito de falar, baixo e triste, o mesmo de Bruno. Só as mãos eram diferentes. As de Bruno, quietas, moviam-se apenas para segurar o cansaço do rosto. As de dona Cristina alisavam nervosas o vestido, subiam pelo busto, consertavam uma mecha de cabelo fora do lugar, às vezes torciam-se como se estivessem desesperadas. Maurício pensava nas mãos de um afogado, afundando aos poucos, só elas ainda à tona, pedindo ajuda. Mãos de um afogado que não se afogava nunca. Acomodou-se melhor na cadeira forrada de veludo vermelho. Sentia-se sujo, grosseiro e vulgar.
— Você sabe, Bruno é um garoto muito sensível — ela disse. As mãos enrugaram uma prega do vestido. — Como você também é. Pois foi essa sensibilidade excessiva que causou a doença. Na verdade, ele não está doente. Não no corpo, compreende? Está é fugindo de alguma coisa, e para não enfrentá-la inventa pretextos para ficar o dia todo na cama.
Maurício concordou com a cabeça. Apertou nas mãos o livro que trazia para devolver a Bruno — Viagem ao centro da Terra, Júlio Verne. Não sabia onde dona Cristina queria chegar.
— Você é inteligente — ela disse. Mas Maurício não teve tempo de sentir-se lisonjeado, pois as mãos subiam até o colar de pérolas, enrolando-se como cobra nos dedos esguios, prendendo toda a sua atenção. — Você sabe que é o único amigo de Bruno. E sabe também que a gente precisa ter muito cuidado sempre para não magoá-lo. É um verdadeiro cristal, ameaça quebrar-se com qualquer toque menos delicado. — As palavras nasceram em rajadas, sem pausa. Depois cessaram, como se a fonte que as gerava tivesse estancado. — Agora ele está entrando numa idade difícil. Você também. Todo cuidado é pouco, compreende?
— E o que é que a senhora quer que eu faça? — Maurício quis colocar um tom mais rude na voz, mas ela saiu tímida, hesitante, assustada.
Dona Cristina falou ainda mais baixo, mais triste, um pouco rouca: — Nada, não quero que você faça nada. Só quero que você continue amigo dele. Você é muito importante para ele. — Ficou de cabeça baixa
durante alguns instantes, depois tornou a erguêla e sorriu. Levantou-se, passou as mãos pelos cabelos dele. — Venha, Bruno vai gostar de vê-lo.
Enveredou em direção ao interior da casa. Maurício seguiu-a automático, meio estonteado. Ela caminhava à sua frente, a cada passo o vestido de tecido leve subia um pouco, mostrando um palmo da coxa muito branca. Teve vontade de voltar atrás, fugir dali. Não conseguiu. Parada à porta do quarto, dona Cristina sorria. Seu sorriso era um anzol que o fisgava lentamente. Desviou-se dela e entrou, o rosto ardendo.
Do fundo da cama, Bruno olhou-o. E sorriu, como sempre. No primeiro instante, foi só o que Maurício pôde ver: o brilho dos olhos e dos dentes. Sem saber o que dizer, sentou-se perto dele, estendeu o livro.
— Trouxe teu livro, já li. Gostei muito.
Falava aos arrancos, sentindo-se idiota. Deveria perguntar como o outro estava, se se sentia melhor, coisas assim.
Bruno apanhou o livro. Folheou-o devagar, um sorriso estranho no canto dos lábios. Leu:
— Viagem ao centro da Terra... seria bom se a gente pudesse fazer uma viagem dessas, hein, Maurício? Para o centro da Terra, onde ninguém pudesse ver a gente.
Maurício desviou o olhar para a porta, em pânico. Seus olhos esbarraram na madeira, dona Cristina havia ido embora e fechado a porta. Sentia-se desamparado como se o tivessem deixado a sós com um animal estranho, ou uma mistura química de reações imprevisíveis. Sacudiu a cabeça, lutando contra a imagem. “Bruno é meu amigo”, pensou com força, “Bruno é meu amigo”.
O sentimento dissipou-se. Apertou os olhos, descerrou os maxilares e viu que Bruno chorava silenciosamente. As lagrimas escorriam, o livro tremia nas mãos quase tão brancas quanto o lençol. Subitamente, teve vontade de fazer o amigo encostar a cabeça em seu peito, enxugar-lhe as lágrimas. — Bruno, Bruno, o que é que tu tens? Eu não entendo o que está acontecendo contigo.
— Ninguém entende.
— Não gosto de te ver assim. Fico triste também.
A ternura inexperiente não conseguia expressar-se em palavras ou gestos. Mas seu olhar estava repleto de doçura, suas mãos pesadas de amizade, sua garganta quase estalava com as palavras avolumadas e presas, sem encontrar a saída. Como uma câmara de cinema, seu olhar deslizava pelas paredes, perseguindo imagens. Os livros encadernados na estante giravam lentos por trás das cortinas que o vento soprava. Sobre a escrivaninha, o globo terrestre igual ao da aula de geografia parecia também girar lentamente — terras distantes, palmeiras, camelos, dançarinas tibetanas, serpentes mortais, pirâmides, altos edifícios, despenhadeiros, paisagens de cartão-postal, picos cobertos de neve, tudo contido numa esfera, o mundo que girava e girava no canto do quarto.
— Por que é tudo tão sujo? — A voz de Bruno vinha de longe. — Por que é tudo tão imundo e tão difícil, Maurício?
Num gesto não planejado, ele estendeu a mão e começou a passá-la nos cabelos do outro.
— Não sei, não posso te dizer. Se eu soubesse, acho que não estaria aqui a essa hora. Estaria no céu, seria santo. Ou no inferno, sei lá. Em qualquer lugar, menos aqui.
De repente sentia uma espécie de segurança, o que ia dizendo parecia ter uma experiência que não conhecia em si próprio. Como se fosse anos e anos mais velho que Bruno, como se um pai falasse com o filho.
— É preciso que seja assim, Bruno.
— Mas por quê? Só quero que você me diga por quê.
— Porque sempre foi assim, entende? Sempre.
Mas o que tinha sido e seria sempre assim? As idéias, não as palavras, atropelavam-se em seu cérebro. Havia tantas coisas que ele gostaria de explicar. Apesar das muitas conversas, pouca coisa fora dita. O essencial sempre ficara no fundo, esmagado pela superficialidade. Havia os silêncios longos, quando se olhavam, um no outro, no fundo dos olhos, havia a enorme diferença entre eles e os demais. Havia uma vontade estranha e carinhosa de tocar entre os dois, sem nome. Por isso calava e, devagar, passava a mão pelos cabelos do amigo.
Ficaram muito tempo quietos assim. Nem voz nem gesto expressariam o que sentiam. Finalmente, com esforço, Maurício falou:
— Sabe, quando a gente está com medo de entrar num quarto escuro, a melhor coisa a fazer é entrar de repente, sem pensar. Não adianta nada ficar do lado de fora, vendo fantasmas, imaginando coisas que não existem. Melhor entrar de uma vez, Bruno.
O silêncio voltou. Bruno olhava pela janela. Maurício apertava a mão dele sem dizer nada. Os raios de sol encolhiam aos poucos no tapete. Os objetos iam perdendo seus contornos naturais para ganhar outros, sugeridos pela imaginação. “Eu tenho medo, Maurício, eu tenho muito medo”, Bruno parecia dizer em silêncio. E era como se ele mesmo também dissesse, mudo: “Eu tenho medo, Bruno, eu tenho muito medo.” Na penumbra, os olhos do amigo brilhavam. Lá fora, na calçada, crianças brincavam de roda: “Da laranja quero um gomo, do limão quero um pedaço, da tua boca quero um beijo, dos teus braços um abraço.” De dentro da casa vinha um rumor de pratos, copos, talheres. A mão de Bruno estava fria e por vezes, num susto, Maurício prestava atenção na respiração dele.
Então, de repente, a porta abriu. Acenderam a luz. Dona Cristina entrou, de braço dado com o marido. E o pai de Bruno, Maurício viu outra vez, era também um pai completamente diferente do seu. De terno e gravata, cabelos bem cortados e um vago perfume de água de colônia.
— Ué, vocês estão no escuro?
Bruscamente, Maurício retirou a mão. Como se fosse proibido. Levantou-se, falou apressado:
— Eu já ia andando.
O pai de Bruno sorriu para ele. Não usava bigode, a cara raspada e lisa parecia muito jovem. Convidou:
— Não quer ficar para jantar conosco?
— Não posso, não avisei em casa.
— É só telefonar.
— A gente não tem telefone — disse com dificuldade. — Muito obrigado. Dona Cristina avançou para o filho. Sentou na beira da cama e
começou a acariciá-lo, falando em voz baixa, como se fosse um bebê. Perturbado, Maurício desviou os olhos.
— Eu já ia andando mesmo — repetiu. Caminhou até Bruno e apertou-lhe a mão. — Até logo. Espero que tu melhores.
— Apareça sempre — disse o pai. — E traga alguma coisa sua pra gente ler. Bruno disse que você escreve muito bem.
A empregada acompanhou-o até a porta. Com alívio e as orelhas ardendo, saiu. Começou a caminhar. De repente lembrou da primeira vez que tinham se encontrado, ele e Bruno. A noite estava caindo também, e também tinham acontecido aqueles mesmos vácuos de silêncio. Desviou-se das meninas que brincavam de roda. Vistas de perto eram feias, magras, desafinadas, sem graça. “Por que é tudo tão imundo e tão difícil, Maurício? Hein, Mauricio, me diz, por quê?” Sacudiu os ombros como para livrar-se da resposta. Mas havia os silêncios. E as vontades estranhas, carinhosas, sem nome, proibidas.
Maurício parou na beira da calçada, olhou para a janela de onde vinha uma luz baça, filtrada pelas cortinas. Atrás delas, deitado numa cama, um rapazinho de cabelos louros e olhos azuis assustados repetia aquela frase que encontrava eco dentro dele: “Eu tenho medo, Maurício, eu tenho muito medo.”
Ficou parado no cais enquanto o navio se afastava, lento.
Quando não conseguia mais enxergar a figura de Bruno, perdida entre as dos outros passageiros, começou a andar em direção ao centro da cidade. No meio do caminho, voltou-se. Acenou outra vez, como se ainda pudesse ser visto. Riu do próprio gesto, passou a mão na face, no lugar onde dona Cristina o beijara. Vergonha e orgulho, misturados com rubor. Caminhava tão devagar que as pessoas esbarravam nele sem se desculparem, como se tivessem acumulado muita energia durante o embarque dos parentes e precisassem agora descarregá-la. Voltou-se outra vez para olhar o navio. Era difícil imaginar que Bruno estivesse lá dentro, confinado naquele limite branco e estreito que cada vez se diluía mais no horizonte, entre as ilhas do Guaíba.
Mas não estava triste. Era como se de repente tivesse percebido que vivia, e que aquilo nada mais era do que um capítulo, uma etapa. Enfiou as mãos nos bolsos, teve vontade de cantar. Uma canção qualquer, mas calou. A voz sairia fina ou grossa? Talvez aquela ridícula mistura dos tons, com súbitas quebras. “Como sou ridículo, como sou ridículo”, pensou, com nítida consciência de seu rosto cheio de espinhas, das mãos grandes demais, do buço cerrando, os gestos desajeitados como os de uma marionete de cordões arrebentados. Um homem empurrando um carrinho de pipocas passou por ele. Pensou em chamá-lo, desejo súbito fazendo cócegas na boca. A voz o deteve: como sairia? Na hora de responder à chamada, na escola, era horrível. Nos últimos tempos Bruno respondia por ele. Agora Bruno se fora, não era amigo de mais ninguém e todos os outros ririam dele. Como sou mesquinho, pensou: é só por isso que lembro de Bruno? Sacudiu os ombros, perdoando- se. Dia a dia ia se acostumando com suas pequenas mesquinharias.
Começou a descer as escadas. Embaixo, voltou-se para ver a mulher que vinha atrás. Assim, de baixo para cima, podia ver as coxas roliças reveladas pelos passos largos. Um desejo súbito atravessou seu corpo. Fechou os olhos, apertou os punhos, cerrou os dentes. Era a essa espécie de sujeira que Bruno se referia? Os sentidos desenfreados que galopavam pela cabeça, à noite, as ardências, o sexo duro apertado contra os lençóis que amanheciam molhados. Lembrou dos desenhos nos livros de anatomia, examinados na biblioteca do colégio, das palavras desconhecidas nos dicionários, os livrinhos pornográficos passados de mão em mão nas aulas monótonas. Lembrou das horas em que se trancava no banheiro ou no próprio quarto, sem resistir àquela onda morna que inchava, lembrou e mordeu os lábios, tentando olhar para fora.
O crepúsculo vítreo da primavera não ajudava. Havia cheiros no ar, vento morno espalhando pólen. A cabeça estalava, as espinhas ardiam — e no entanto dona Cristina as beijara sem repugnância. “Será que ainda tenho salvação?”, perguntou-se, estacando à frente da estátua no meio da praça. A figura de pedra erguia no ar a espada, triunfante. Maurício riu: “É fácil erguer uma espada com tanta convicção quando se é de pedra, assim.”
Sentou num banco. Os canteiros estavam cheios de flores, havia roxuras intensas na copa dos ipês. Dava uma moleza no corpo e aquela vontade de fazer — fazer o quê? Não sabia, então recostava o corpo no banco, à espera de uma resposta. Que não vinha. Espalmou as mãos sobre as coxas, observou os vagos contornos das veias se ramificando sob a pele. E havia os pêlos, recentes, leves, começando a adensar-se. Crispou as mãos com ódio: impossível esquecer do próprio corpo, que a cada dia se impunha com mais violência. A cada dia exigia mais atenções, expandia-se feito gota de tinta sobre uma folha de jornal. Não conseguia esquecer, por um minuto, da existência do corpo.
E aquele ódio surdo, contra tudo e todos. Aquele ódio às vezes recolhido por dentro, como um animal selvagem, trancado no quarto o dia inteiro, sem fazer nada, sem pensar nada, concentrado em odiar um ódio puro, que se acumulava sem encontrar um objeto onde pudesse descarregar-se. Apertou a perna por cima do tecido das calças, até as unhas ferirem a pele. Ah, e aquela vontade de magoar a si mesmo, ele, que magoava tanto os outros. A vontade de destruir-se para provar que se pertencia, que aquela caixa com dois braços e duas pernas era o seu corpo e
poderia fazer dele o que bem entendesse. Mas prova a quem, e para quê? Ah, era o desejo de chorar baixinho e de ri feito louco, e por trás de tudo isso era o desejo nem de um nem de outro, apenas o desejo. Era o desejo. Levantou do banco.
“Não virá”, pensou sem querer. E surpreendeu-se, não esperava ninguém. Ninguém viria. Talvez um dia, quem sabe. Alguém, algum dia. “Não virá”, repetiu. Depois pensou em Bruno, que se afastava, levado pelo navio. Parecia que tudo aquilo tinha acontecido há muito tempo, que não houvera solução nem resposta para nada. Ninguém, nada, nunca. As palavras presentes em todas as frases, com uma fatalidade um tanto cômica. Então, de repente, sem pretender, respirou fundo e pensou que era bom viver. Mesmo que as partidas doessem, e que a cada dia fosse necessário adotar uma nova maneira de agir e de pensar, descobrindo-a inútil no dia seguinte — mesmo assim era bom viver. Não era fácil, nem agradável. Mas ainda assim era bom. Tinha quase certeza.

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