A Vera e Henrique Antoun

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Porto Alegre, 23 de dezembro [de 1971].

Vera e Henrique,
meus queridos: imaginem um mundo de coisas limpas e bonitas, onde a
gente não seja obrigado a fugir, fingir ou mentir, onde a gente não tenha medo nem
se sinta confuso (não haverá a palavra nem a coisa confusão, porque tudo será
nítido e claro), onde as pessoas não se machuquem umas às outras, onde o que a
gente é apareça nos olhos, na expressão do rosto, em todos os movimentos —
acrescentem a esse mundo os detalhes que vocês quiserem (eu me satisfaço com
um rio, macieiras carregadas, alguns plátanos e uma colina — ou coxilha, como se
diz aqui no Sul — no horizonte), depois convidem pessoas azuis para se darem as
mãos e fazerem uma grande concentração para concretizar esse mundo — e, então,
quando ele estiver pronto, novo e reluzente como se tivesse sido envernizado,
então nós nos encontraremos lá e eu não precisarei explicar nada, nem contar
nenhuma estória escura, porque estórias claras estarão acontecendo à nossa volta e
nós estaremos sendo aquilo que somos, sem nenhuma dureza, e o que fomos ficou
dependurado em algum armário embutido, junto com sapatos (quem precisará
deles para pisar na grama limpa dessa terra?), roupas e enfeites (quem precisará de
panos, contas ou cores na terra onde o ar será colorido e enfeitará nossos corpos?)
— lá, eu digo, nós nos encontraremos entre centauros, sereias, unicórnios e
duendes, e sem dizer nada, com um olhar verde (uma das minhas grandes
frustrações sempre foi não ter olho verde — mas lá eu terei) eu direi o quanto
gosto de vocês, e voaremos de tanta boniteza — combinado?
Corte rápido e traumatizante. Um cigarro queimando num pilão de
jacarandá. Ruídos de televisão na sala. “Mas-agora-nós-seremos-felizes-parasempre-
eu-comprei-o-refrigerador-não-sei-o-quê”; “Compre no Natal e pague no
carnaval”. Uma voz (a doce e repressiva voz materna): “Venham jantar, venham
jantar”. Vou. O resto da carta talvez saia com gosto de feijão. Desculpas
antecipadas. Stop.
Bem, agora vamos aos fatos (meu-Deus, eles existem!). Há cerca de dois
meses precisei “fugir precipitadamente” (chique, não?) do Rio: a polícia havia
batido no apartamento onde eu morava, em Sta. Teresa, FORJARAM um flagrante
de fumo, fui preso, me bateram, no fim a Bloch Editores em peso foi envolvida,
acabei sendo demitido, e estava tão apavorado que precisei voltar. É difícil contar a
vocês tudo isso, e tudo que aconteceu depois — além de ser complicado, é
desagradável e triste. Mas, enfim, estou aqui em Porto Alegre, na minha casa, sem
fazer coisa nenhuma, a não ser ler, comer, dormir e ver filmes antigos e cafonas na
televisão. A travessia está sendo difícil. Estou perturbado, confuso e sozinho.
Depois de um ano de ausência (o tempo que fiquei fora), tudo muda muito, as
pessoas e a gente mesmo, principalmente, e é dificii conversar quando a maioria das
conversas é na base do “tente passar o que eu estou passando”. Sei lá. De muitos
pontos de vista (talvez todos), eu já era. Eliminei a palavra oral, e quase não falo,
um pouco porque estou cercado de habitantes de outro planeta ou, no mínimo,
outra concepção de vida, outra escala de valores, outros processos. Porto Alegre é
muito bonita, mas essas coisas não têm importância quando a gente está todo
esfarrapado por dentro. De repente eu me vi adulto e de mãos vazias, sem sequer
um eletrodoméstico para satisfazer essas pessoas que nos exigem realizações o
tempo todo.
Não sei como vai ser. Do tempo passado no Rio sobraram certezas duras e
vários assassinatos; das pessoas, sobraram só vocês dois. Crianças, eu amo muito
vocês. Esta pseudocarta é só pra dizer isso. Vou passar janeiro na praia, com the
family — mas me escrevam, eu escreverei quando voltar. E estou precisando muito
que vocês me contem coisas. Lembranças para a mãe de vocês, que é muito bonita.
Beijões do seu
Caio

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