O CICLO SECO ATACA OUTRA VEZ

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O ciclo seco voltou. Desta vez nem tão seco assim, já que acompanhado por febres, suores abundantes, terror generalizado e, se não generalizado, tão particularizado que num segundo parágrafo não restariam leitores. Uma das inutilidades que ciclo seco mais gosta (“gostar” sendo aqui mera maneira de dizer: ciclo seco não gosta nem desgosta de nada, só acha árido, até beijo em ciclo seco tem gosto de areia) é contestar essas expressões populares tidas como “sábias”. Pois sim...
Da vez passada, eu perguntava para ninguém da utilidade de dar nome aos bois. Para o dono dos bois ou para os próprios bois que, Minotauro ou Mimoso, continuam bois e, o que é mais grave, absolutamente indiferentes ao fato de que foram batizados. Há expressões piores. Vejam por exemplo esta, muito aplicável a filhos alheios: “Quem pariu Mateus que o embale”. Para começar, por que, raios, essa arbitrariedade de, exatamente, Mateus? E se o parido foi João, então não deve ser embalado? Além disso, esse “parir” é terrivelmente machista, pois que eu saiba é coisa exclusiva de mãe: pais não parem, a não ser Schwarzenegger naquele filme idiota. Quem tem que embalar Mateus (ou João, ou Luís) deve ser então apenas a pobre mãe, jamais o pai?
A não ser que, vá lá, Mateus seja filho de mãe solteira, que nem saiba direito quem é o pai, isso sem levar em consideração que o pai talvez nem seja um cafajeste, mas apenas tenha morrido.
A morte é outro problema — e se a mãe tiver morrido de parto, quem há de embalar Mateus? O espírito dela? Mais grave ainda: se Mateus for filho adotivo, a outra mãe não deve embalá-lo, posto que não o pariu? Se vocês acham tudo isso suficiente para desmontar essa expressão, considerem finalmente o seguinte: por que esta maldita obrigação de embalar o chato do Mateus? Por que não deixá-lo berrar à vontade? Talvez seja o que ele queira. Ou o que merece, quem mandou ter nascido?
Pense agora em “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”, tão irritante que, fosse conhecido o autor, eu seria o primeiro a processá-lo por danos morais e imunológicos. Vamos por partes: por que vale? Coisa mais capitalista, por que um pássaro deve valer alguma coisa? Certo, se for rouxinol ou curió, vá lá, pode-se, suponho, vendê-lo a algum imperador chinês ou compositor de chorinhos, e eu pelo menos não conheço nenhum. Mas se for um reles pardal, e os outros tais voando, sempre supondo, forem um condor e uma garça? O que é que se faz com um pássaro na mão, anão ser, se você não tiver mesmo nenhum caráter, prendê-lo numa gaiola? Já com os dois voando, mesmo que sejam dois pardais nem um pouco magníficos como a garça e o condor, você pode fazer a única coisa que se deve fazer em relação aos pássaros: vê-los voar. Quanto mais longe de sua mão, melhor. Para eles, claro.
Mas uma das mais reacionárias e repressivas que conheço é “não se deve colocar o carro na frente dos bois”. 0K, mas e se eu quero fazer justamente isso, quem me impede? Se eu quiser dar ré no carro, tem outro jeito? Fazer os bois andarem de costas, talvez, não sou muito bom nessas coisas. E se eu não estiver querendo andar, e sim fazer arte? Afinal, ano passado na Bienal de Veneza vi um bezerro partido ao meio. E se eu decidir tentar fazer com que os bois empurrem o carro com os chifres? E se, antes de qualquer reflexão, eu achar uma pouca-vergonha forçar esses pobres bois a empurrarem aquele carro pesadíssimo e mandar um fax com fotos denunciando tudo à Brigitte Bardot e chamar rádio, TV e jornais para armar um p... escândalo?
Ciclo seco é chato, sim. E implicante. Isso que por falta de espaço, hoje nem entrei nos méritos do tal “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Reflitam no absurdo. Se não molhar um pouco este meu ciclo seco, para desgosto geral volto ao tema. Mas há de chover. Em abril.

O Estado de S. Paulo, 2/4/1995

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