AS PRIMEIRAS AZALÉIAS

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Na tarde cinza de maio, acontecem cenas por trás do vidro fechado da janela.
Sentado à escrivaninha, de frente para a janela, estou vendo uma cena. Dia cinza. Atrás do vidro da janela, estou vendo uma cena. Há um casal parado na calçada em frente. São muito jovens. Ele deve ter no máximo 25 anos, ela pouco menos. Estão bem vestidos, devem pertencer a alguma boa família dos Jardins. Não expio nada. Estou apenas sentado aqui, onde coturno sentar para escrever. A cena acontece no meu campo de visão, só poderia evitá-la saindo daqui. Mas quero ver.
Sobem devagar a ladeira. De repente param na frente da lojinha de surf. Ele encosta no muro. Usa óculos, tem as mãos nos bolsos. Ela fica andando pela calçada em frente à casinha azul, sob o letreiro “Waimea”, com arabescos que tanto podem lembrar ondas quanto gaivotas. Começo a prestar atenção no momento em que percebo: a garota está chorando. Ela chora e fala e gesticula muito enquanto chora.
São três e meia da tarde de domingo. Há uma garota chorando na calçada em frente ao meu apartamento. Faz frio. Um grupo de senhoras muito elegantes em suas peles e lãs sai do edifício ao lado. Mas não olham para o casal. Não sei se por essa educação paulistana, meio londrina, onde a aparente frieza disfarça cumplicidade e respeito — ou mera indiferença, pode ser. Afinal que importância tem uma garota chorando e um rapaz de óculos às três e quarenta e cinco da tarde de um domingo?
O rapaz agora caminha até um carro estacionado no meio- fio. Está de costas para mim. Tira as mãos do bolso. A garota tira o casaco — um casaco de jeans, forrado de pêlo de carneiro. Chega mais perto dele. Às vezes, ele ergue o rosto para o céu cinza. Há muita dor no rosto que ela ergue para o céu cinza. Ela tem o cabelo liso, comprido, castanho-claro, uma mecha mais loura do lado esquerdo. Ele tem o cabelo preto, bem curto. Ela chega mais perto dele. Ele tira os óculos, começa a limpar as lentes na barra do suéter.
Às vezes ficam parados. Quando ficam parados assim enquadrados pela moldura da minha janela, parecem uma fotografia. À esquerda esse edifício construído de perfil, com a pequena alameda que leva do portão de ferro até a portaria, muitas árvores e uma meia dúzia de azaléias bordô (das primeiras desta temporada). À esquerda, a lojinha de surf, toda azul, com um grafite ao lado da porta: o rosto que Alex Vallauri tinha. No centro, o carro onde está encostado o rapaz vestido em tons de cinza e a garota vestida em tons de azul. Quase quatro da tarde, só há cor nas azaléias e na fachada da lojinha de artigos de surf.
Ela ronda em volta dele, falando sem parar, chegando cada vez mais perto. Eu acendo um cigarro. Ela o abraça. Ele não se move, nem descruza os braços. Ele não se move enquanto ela o abraça cada vez mais forte. Ela começa a beijá-lo. Ele não recusa, apenas vira delicadamente o rosto para o lado onde a rua desce. Assim, ela só consegue beijá-lo no pescoço e na face. Na boca, não. Ela só pára de beijá-lo para afastar os cabelos do rosto e, de vez em quando, olhar o céu cinza.
Agora, ela afasta o rosto e fica abraçada nele. Da minha janela posso ver os braços dela cruzados às costas dele. Ele voltou a colocar as mãos nos bolsos. De repente, ela o toma pelo braço e começa a puxá-lo para cima, para onde a ladeira sobe. Ele caminha olhando para o chão. Ela joga o casaco nas costas, afasta os cabelos, levanta o rosto. Parece decidida. Eles começam a subir a ladeira. Até sumirem do quadrado da janela. Certamente, da minha vida também.
São quatro horas e cinco minutos. Não acontece mais cena alguma do lado de fora da minha janela. Talvez tome mais um café, fume outro cigarro, qualquer coisa assim. Foi exatamente há um ano, na lua cheia de maio. Depois, nunca mais. Por onde você tem andado, baby?

O Estado de S. Paulo, 13/5/1987

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