A Vera Antoun

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Portinho, 18 de um janeiro insuportavelmente quente do ano da graça de 73

Verinha:
minha doce e triste namorada/minha amada idolatrada salve, salve o nosso
amor; lembra? Li reli tresli milli tua carta. Sabe a vontade que eu tive? De tomar um
avião (ou mesmo as minhas asas) mandar tudo pros quintos e chegar de novo aí no
Leme subir os degraus da porta de entrada entrar no elevador apertar a campainha
te ver de novo e depois não sei. Mas não dá. Não dá mesmo. Eu também preciso te
ver senão vou morrer de amor insatisfeito de desencontro de saudade com sede
insaciada. Pra você ter uma idéia de como está minha vidoca: além de trabalhar à
tarde copidescando as reportagens infectas dos repórteres meio débeis mentais
daqui, estou como uma espécie de correspondente do Suplemento Literário de Minas
Gerais, entrevistando literatos daqui pra eles, mais uns free-lancers para a revista de
domingo da Zero Hora, mais escrevendo contos & contos e uma novelinha
escatológica ainda sem título e um romance parado Os girassóis do reino mais uma
pecinha infantil A comunidade do arco-íris onde tem uma boneca de pano que é você.
Além disso uma transa sensacional, não sei se você já ouviu falar em Ernesto Bono,
é um antipsiquiatra daqui, diretor-presidente da Macrobiótica e editor de uma
revista de contracultura chamada Orion, bom, ele está numa muito ruim, quase
falido, editando a revista com grana do próprio bolso e tá a fim de reunir um grupo
pra transar uma reformulação da revista, inclusive vai pro Rio amanhã ver se traz o
Maciel pra formar aqui uma espécie de centro de irradiação da contracultura pra
todo o Brasil (Bahia já era): e eu tô dando a maior força e vou descolar um tempo
pra entrar nessa, seja o que Deus quiser, mesmo que tenha que abdicar da minha
viagem pro outro lado do Atlântico. Mas a vontade é te convidar pra sair por aí
sem compromisso brincar de tobogã no arco-íris qualquer coisa assim: você topa?
Como é que tá a outra Vera Libra que te mandei? O Augusto irmão dela está
esperando que ela volte piradíssima (o apelido dela é Shell): ela é legal mas meio
careta, você deve ter sacado isso. Eu pediria que você fosse o mais legal possível
com ela, vê se dá um rolê na cuca dela, que tem condições pra agüentar qualquer
barra. O irmão dela é uma glória absoluta, a outra irmã, Marta, também. Uma coisa
meio louca que me ocorreu agora: como é totalmente impossível eu ir, quem sabe
você vinha com a Vera? Pensa nisso. Seria maravilhoso.
Amo, amo você todo esse tempo que a gente ficou perdido eu aqui no Sul
você aí no Centro eu não esqueci nunca: cansei de falar de você pra todo mundo
mas só a magra Jane te conheceu — lembra dela? Os outros que não te conhecem
não podem entender bem o porquê da minha ligação toda.
Fico contente com o piano, é uma das minhas frustrações não saber, vê se
entra logo nos barrocos ou pelo menos alguns noturnos de Chopin, eu só dou
força. Não funda a sua cuca, não pense demais (essa é a essência do pensamento do
Bono: não pensar, matar o ego, deixar vir à tona o ser). Entendo a tua análise, é
legal até certo ponto: a psicanálise tradicional apenas reforça o ego, que é a fonte de
todas as nossas angústias e temores, você com o tempo se torna terrivelmente
ególatra e não é nada disso: quero fluir: as coisas passando eu quero é passar com
elas: é mais do que isso aí. Por enquanto estou nessa batalha de abrir as cucas
alheias porque é impossível a minha fluir sozinha cercada de caretice. Consegui
coisas incríveis na minha própria casa. Minha mãe está maravilhosa, sacando mil
coisas, precisas ver os papos dela sobre poluição.
Seguinte: impossível mandar outro Inventário no momento: ele está esgotado:
existem apenas uns três volumes na livraria do Globo e eu não tenho $$$ para
comprar: mas devo receber no dia 10 então mando: ele talvez seja reeditado, pois
foi considerado leitura obrigatória para alunos de II ciclo. Vi Siboney ontem no
carnaval do Chacrinha. Ah: um livro ótimo sobre astrologia: A astroloia espacial e os
mistérios do futuro, de Joseph Goodavage, editora Pensamento.
Outra coisa: li nos jornais que Cortázar chega por esses dias no Rio. Daí
quem sabe você entrega a carta pessoalmente. Eu ando louco pra ler as Histórias de
cronópios e famas, o último dele, mas a dureza é total. Não dá nem pro fumo.
Acho que é só. Saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade
saudade. Amor amor amor amor amor amor amor amor amor amor. Todos os
beijos já existentes e não existentes todos os beijos os beijos dados mais os que
estão por dar. Não se perca. Não se esqueça. Viver bem é a melhor vingança.
Abrações pro Henrique. Lembranças pra tua mãe. Até.
Caio

Se você tiver interesse: a Civilização publicou um livro do Bono chamado É
a ciência uma nova religião?. E ótimo, muito aprofundado. Problema é que custa
uma nota. Vê se você consegue. Talvez algum conhecido tenha. Foi a partir
dele que eu comecei a ver sentir as coisas dum outro jeito.
Não sei desenhar, mas mando uma tentativa para a sua parede.

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