A Zaél e Nair Abreu

0

Paris, 12 de maio de 1973.

Queridos pai e mãe:
Há dias eu queria escrever contando tudo — mas não havia condições:
sempre as transas apressadas de hotéis e coisas. Hoje estou mais descansado e
melhor acomodado, num hotelzinho na Rua du Cardinal-Lémoine, no Quartier
Latin. Chegamos hoje de Barcelona, pelo ônibus, de manhã. Agora são 20.30 da
noite e o sol acabou de se pôr.
Bem, PARIS É UMA GLÓRIA! Naturalmente ainda não deu para olhar
tudo, nem a metade, apenas umas voltinhas. Mas estou impressionado com a
liberdade: pelas ruas se vê todo tipo de pessoas jovens e velhos, uns de cabelo
curto, terno e gravata outros com as roupas mais loucas que se possa imaginar — e
todos convivendo na maior harmonia. Mulheres de cabelos pintados de verde ou
roxo, homens maquiados africanos com trajes típicos penteados os mais
extravagantes — uma babilônia. E nada de agressões ou risinhos pelas ruas.
O hotel onde estamos fica perto da margem direita do Sena (RIVE
DROÍTE) e da Catedral de Notre-Dame, que fica numa ilha. Há jardins fontes e
escadinhas para se descer até o rio. As pessoas ficam sentadas por lá, comendo suas
baguetes (um pão de mais de um metro de comprimento) e tomando vinho. As
águas do Sena são dum verde escuro, profundo.
A coisa mais louca que vi na rua foi um grupo de HARE KRISHNA. São
jovens ocidentais vestidos com aqueles mantos amarelos e azuis de monges
budistas, as cabeças raspadas. Andam em grupos de uns dez, tocando pandeirinhos
e guizos pulando e cantando músicas orientais. São incríveis — e ninguém dá a
mínima. Algumas pessoas param e sorriem, no máximo.
Isto é Paris — por enquanto — e eu tinha vontade de morar aqui. Estive
também no Falleico, perto daqui, em frente à Sorbonne — estava curioso para
saber a respeito do prêmio. Mas ele foi passar o fim de semana na Alemanha, só
volta segunda — hoje é sábado. A Espanha — confesso — foi um pouco
decepcionante. As cidades são lindíssimas — não tanto quanto Paris —, mas as
pessoas são chatas, formais, fechadas. Usam ainda aquelas calças de pegar pinto,
com a boca colada nos tornozelos. Barcelona é suja, escura, poluída. Há em todas
as ruas um cheiro insuportável das frituras das comidas — que são um lixo. Eu
passava a TORTILLA, que é uma espécie de omelete, iogurte e chocolate. A
ditadura parece ser terrível por lá. O velhinho do hotel em Barcelona (na esquina
tinha uma casa onde morou Picasso, em 1925) contou coisas terríveis,
fuzilamentos, prisões e coisas assim. O que havia de bonito era o BAIRRO
GÓTICO, com casas de 1200, por aí, e a Catedral, de 1058. E um país religioso até
a loucura, extremamente moralista, sério, carrancudo, cinzento. As pessoas são
meio bagaceiras, embora gentis.
Na França, a gente nota um peso de cultura muito maior. E mais refinado,
mais europeu — na Espanha, as vezes, eu tinha a sensação de estar em Buenos Aires
ou Montevidéu. As espanholas são medonhas, baixinhas e cafonas. As francesas
são maravilhosas, elegantíssimas.
Quanto a mim, pessoalmente, estava até agora um pouco desanimado. Nada
tinha me surpreendido verdadeiramente. Paris me desbundou! E uma espécie de
paraíso dos jovens, das cores, da alegria de viver — e dizem que Londres e
Amsterdam são ainda mais maravilhosas. Mas tudo isso vai ficar para depois da
temporada sueca — embarcamos para lá na 4ª feira próxima, dia 16. Depois, sim,
quero ver tudo isso — e voltar a Paris.Vou me informar das possibilidades de
estudar aqui — e, dependendo de como for, talvez fique.
De saúde, estou bem. Faz frio aqui — a temperatura é mais ou menos como
a do inverno daí, por volta de 10 graus — mas não me resfriei nem nada. Comprei
em Madri, numa feira, um casaco marroquino maravilhoso, por uns 80 mil, em
cruzeiros, e uma blusa de lã que saiu por menos de 30 cruzeiros. A língua também
não deu problema: meu espanhol era muito bom e, de francês, sei o essencial para
não ficar baratinado.
Augusto, Ana e eu temos nos dado bastante bem. Augusto é um pouco
agitado demais e às vezes chega a encher o saco, Mas nada de grilos sérios.
Estou na maior aflição para saber do tal prêmio. Fico enlouquecido com as roupas
e os sapatos daqui (coloridos e de saltos altíssimos), e morrendo de vontade de
comprar. Deus ajude que tenha saído.
Concluindo: não há mistério nenhum na tal de Europa. As coisas só parecem
difíceis e complicadas à distância — chegando aqui tudo é muito cotidiano, por
assim dizer, e até mesmo fácil. Não me arrependo em nenhum momento de ter
vindo — só ter caminhado por Paris foi uma das maiores sensações da vida. Pisar
nas ruas francesas é como pisar no coração do mundo. Realmente não me importa
ter que, um dia, começar tudo de novo. Estou me complementando aqui, eu acho,
e depois não sei. Acho que a gente deve procurar viver o presente.
Espero que vocês dois, Gringo, Felipe, Márcia e Cláudia — estejam todos
bem. Um abraço muito grande para cada um. Beijos do seu filho
Caio.

PS — Logo que tiver endereço certo, mando.
PS — Um dos maiores sucessos musicais por aqui — INCRÍVEL — é Fio
Maravilha, cantado por uma italiana chamada Nicolerta.
PS — O cartão é para Felipe.


Estocolmo, 30 de maio de 1973.

Queridos pais:
Há dois dias fez exatamente um mês que saí do Brasil — e já parece muito
tempo. Recém agora começo a tomar consciência da distância e do estar no
estrangeiro: é uma sensação gozada; nem boa nem má, apenas com um gosto de
aventura, do desconhecido. Mas estou bem. Andei meio assustado a semana
passada. Augusto e eu caminhávamos quilômetros pedindo emprego, sem
conseguir nada. A minha cuca não parava de imaginar coisas horríveis. Até que
ontem pintou. Augusto está numa fábrica, longe da cidade — e eu consegui um
lugar de lavador de pratos num bar, no centro de Estocolmo. Comecei ontem, hoje
foi meu segundo dia de trabalho. E uma experiência maravilhosa. Fico umas 8 horas
em pé, com umas luvas de borracha até o cotovelo, lavando TONELADAS de
pratos, bandeja, copos, panelas. O pagamento é de nove coroas e meia por hora —
mais de 15 cruzeiros. Falam sueco o tempo todo, e não entendo praticamente nada
— quem me quebra o galho é um boliviano chamado David. Junto comigo há dois
japoneses, mais um africano engraçadíssimo. Eu sei lá, mas acho que estou vivendo
uma baita experiência: o orgulho e a vaidade que eu pudesse ter têm escorrido pelo
ralo da pia, junto com a água e o detergente das panelas. No mínimo, é um
tremendo exercício de humildade — e eu me sinto mais forte, mais humano.
Graça mandou-me um recorte com o resultado do prêmio, a semana
passada. Claro, fiquei meio decepcionado — mais pelo dinheiro, já que em termos
profissionais a Menção Honrosa é ótima. Segundo li no recorte, o INL vai
publicar o livro, em convênio com uma editora do Rio. Acho isso muito bom.
Escrevi à diretora do Instituto, no Rio, Maria Alice Barroso, para saber detalhes
sobre isso — estou esperando resposta. Dei o endereço aí de casa pra ela e falei na
procuração — portanto, qualquer negócio de assinar contrato e tal será feito através da sra. Por favor, mandem me contar coisas sobre o prêmio — se saiu algo
nos jornais daí, se veio correspondência oficial comunicando.
Como li no recorte que o livro seria publicado até o fim do ano, estou
pensando em voltar mais ou menos em setembro, para o lançamento. Antes,
dependendo de quanto levantar em dinheiro por aqui, tinha vontade de ir até a
Grécia ou Ibiza, uma ilha espanhola muito badalada. Queria lançar bem esse livro
— acho que é a minha oportunidade de ganhar dinheiro com literatura.
O tempo aqui é uma loucura: o sol se põe quase às 10 da noite e não chega a
escurecer completamente — o ar fica da cor da madrugada até as 2, quando o sol
sai outra vez, já esquentou bastante e é possível até sair de manga curta. Domingo
passado fizemos um piquenique, num bosque perto dum fiorde, onde está o castelo
de verão do rei Gustavo Adolfo. É uma maravilha, parece coisa de história de fada,
cheia de jardins com amores-perfeitos imensos e tulipas, que não existem no Brasil.
Vi um esquilo bem de pertinho, eles andam soltos, junto com ovelhas e cervos.
Uma glória.
Por favor, mandem notícias LOGO. Amanhã nos mandamos para [ilegível],
estou mandando o endereço novo e dificílimo — até + ou - 15 de agosto, no verso
do envelope.
Beijos para todos. Seu
Caio


Londres, 4 de setembro de 1973.

Queridos pai e mãe: enfim, estou aqui, depois de um pequeno passeio pela
Holanda e Bélgica. Tá tudo bem, estou com Augusto e Marisa, parando na casa de
um rapaz aí de PA, que está aqui faz uns três anos, Ronaldo. Eu estou muito
melhor: a Suécia foi uma experiência bastante dura, é um país completamente
diferente de tudo que eu tinha visto, tudo muito arrumado, as pessoas
fechadíssimas. Eu cheguei a pensar que toda a Europa era assim. Mais bastaram
alguns dias fora de lá para ver que não era nada disso. Não penso mais em voltar,
pelo menos tão logo. Amanhã mesmo vamos nos matricular num curso de Inglês, e
estamos procurando um pequeno apartamento para morar os três.
Londres é fascinante. Uma cidade imensa, mas incrivelmente tranqüila — a
gente anda nas ruas como se estivesse em um bairro de Porto Alegre. Já vimos
alguns lugares famosos, como Carnaby Street, a rua das butiques, o Hyde Park, que
tem gramados lindos, e a feira de Portobello Road, onde tem tudo que se possa
imaginar, por preços incrivelmente baixos. Os ingleses são gentis — ao contrário
dos suecos — e por toda parte se vê uma descontração muito grande. Amsterdam é
outra cidade legal, com as casinhas todas tortas e cheia de gente maluca pela rua. Se
vê de tudo: cabelos e unhas verdes e roxos, roupas louquíssimas. Em Londres, a
última moda são roupas dos anos 30 — casacos com ombreiras, calças largas,
boquinhas de coração. A gente encontra de tudo pelas ruas, e ninguém olha,
ninguém faz comentários — tudo é encarado com a maior naturalidade.
Eu acho que aqui vou poder fazer as coisas que quero — estudar, ler muito,
escrever. Sinto um grande alívio por ter saído de Estocolmo. Trouxe algum
dinheiro para sobreviver durante os primeiros tempos, mas dentro de algumas
semanas terei que voltar a trabalhar — o que não me assusta, a gente aprende a se
defender e a lutar pelas coisas que quer. Mandei de Estocolmo mais algum dinheiro
para o pagamento da passagem — calculei uns seis meses — em abril do outro ano
mandarei o restante. Uma coisa: a Planeta tinha ficado de publicar o meu conto em
julho, não sei se publicou ou não. Talvez o pagamento, no caso de ter sido mesmo
publicado, seja suficiente para a passagem. Mande me dizer alguma coisa sobre isso.
É isso aí. Esta carta é mais para tranqüilizá-los a meu respeito. Tanta coisa
para contar, mas impossível de ser contada numa carta só. Espero que esteja tudo
bem, com todos. A droga é não ter endereço ainda. Podia mandar o do Ronaldo.
Mais ele vai mudar daqui em seguida, a carta podia se perder. Sinto muita saudade
— mas tem uma coisa dentro de mim me dizendo que o meu caminho é
exatamente este, e que não posso nem devo tentar modificálo. Tem sido duro para
encontrar um apartamento, logo que a gente achar vai o endereço — certo? Beijos
para todos. Um grande abraço do seu filho
Caio

Ler mais »

0 comentários: