OS ANJOS DA FEBRE E A MÃO DE DEUS

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Não sei se é só comigo que acontece. Já andei perguntando a outras pessoas e ninguém confirma. Mas são como visões? Perguntam, e eu digo sim, só que o extraordinário não é isso. Tento explicar: são seres pequenos, minúsculos que vivem dentro (ou junto, ou ao lado) das visões, e que me conduzem a elas para me mostrar as visões. Como anjos, duendes, menores ainda, do tamanho de uma unha, menores até. Não posso afirmar porque tudo acontece sempre e apenas naquele estado febril de corpo molhado, boca seca, lábios partidos.
Seres noturnos habitam o País ardente da febre. Há mais de ano e praticamente toda a noite, jamais durante o dia, quem sabe não gostam da luz. Liliputianos, me ocorre agora, isso é o que são. A cama às vezes fica coberta deles, o quarto apinhado. Não são do Mal, nada têm a ver com pesadelos. E que coisas mostram? Bem, esqueço sempre na manhã seguinte. Na verdade esqueço já no primeiro gole d’água, quando finalmente consigo tomar um. Dão muita sede, meus pequenos amigos noturnos. E se exacerbados, racham os lábios da gente, dão calafrios, o que mostram, você quer saber? Vagamente, porque da febre na manhã seguinte resta apenas o Corpo cada vez mais devastado, lembro de inconfundíveis delicadezas orientais. Fragmentos de mandalas, intrincados labirintos, estamparias de tecidos, objetos. Houve, suspenso no espaço, um vaso de opala azul (embora eu não lembre ao certo como é uma opala, e muito menos se pode ser azul) que tentei pegar a noite toda. E jurei que me movia em direção a ele, enquanto diziam “a opala azul, pega a opala azul”, até que acordei encharcado de suor, bebi aquele gole d’água e o vaso de opala azul desapareceu. Para sempre. É impossível tocar as coisas que eles trazem, e essas coisas jamais voltam. Se tocá-las alguma um dia, me pergunto, talvez também eu não volte mais? Não sei responder. Quem sabe esta será a passagem para o lado encantado dos mágicos crepitantes (salamandras?). Não tenho medo. Seria uma bela forma de partir e, desde que belas, as formas nunca me assustam.
Mas outro dia, outro dia eles passaram a noite me mostrando as mãos de Deus. Em fragmentos de razão uma parte de meu cérebro argumentava mas, meninos, a gente nem sabe se Deus existe e, se existir, muito menos se terá corpo, que dirá mãos. Insistiram. As mãos de Deus vezenquando eram fortes, calosas, unhas grossas, quebradas como as de um camponês, um lenhador: outras, com longas, recurvas, repugnantes feito as de Zé do Caixão; e também revi, tão dolorosas, mãos iguais às de Clarice Lispector após o incêndio — calcinadas, tocos de dedos, cicatrizes. Havia luvas medievais de ferro com pregos engastados nas palmas, prestes a se abater sobre a testa dos ímpios, outras com magros dedos brancos de pianista, nervosas como as de Jane Fonda no filme Julia, e garras, deformidades, patas também, translúcidas como ilustrações de livros sobre devas. Mãos de todo jeito, as de Deus, até não humanas, monstruosas, aterradoras. Ninguém respondeu quando perguntei se seriam várias, e todas de Deus (um polvo, uma deusa Shiva?). Não tentei tocá-las. Seria definitivo demais. Também porque, antes disso, eu já sabia que algumas delas são mestras em cravar-se fundo em nosso coração, garras de águia.
Não, não tomei nenhuma liberdade com as mãos de Deus, nenhuma ousadia. Fiquei a noite toda com sede, transpirando e olhando e pensando, mas quais, quais afinal serão verdadeiras? Provavelmente todas. Agora é de manhã, vou trocar os lençóis como faço todo dia, e como todo dia procurar pelos seres da febre em alguma fímbria, em alguma dobra. Não estarão lá, nem haverá vestígio algum. Mas sei que voltam. E até sorrio, carregando uma espécie de saudade enquanto a noite não chega outra vez.

O Estado de S. Paulo, 26/11/995

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