HAMBURGO, 11 DE OUTUBRO DE 1994

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Sei que é uma ousadia dirigir-me ao senhor assim, desta maneira meio estabanada. Aprendi na escola, há tantos anos que já esqueci, que deveria dirigir-me ao senhor como "Vossa Excelência" ou algo assim. Mas hoje, ao despertar muito cedo neste Hotel Schwanenwik, que parece saído de um filme dos anos 40, espiando pela janela as árvores começando a ficar douradas no parque em frente ao lago, me surpreendi pensando com força e fé no senhor e no Brasil.
Nos últimos dias, li nos jornais europeus que o senhor foi eleito sem necessidade de um segundo turno. Não votei no senhor. Aliás, não votei em ninguém. Estava em trânsito, em Porto Alegre, e embarquei para Frankfurt um dia após as eleições, quando a sua vitória já era dada como certa. E embora talvez o senhor não fosse meu candidato, fico feliz. Devo dizer que o senhor me parece muitíssimo mais, digamos, preparado, que todos os outros seus antecessores. Amigos europeus e desconhecidos que fazem perguntas nas leituras e debates que ando fazendo por aqui com outros escritores também parecem pensar o mesmo. Por favor, não nos decepcione.
É grande a nossa esperança, senhor presidente. E falo não como escritor ou jornalista, mas como brasileiro comum. Tão comum que nada tenho e, nos últimos anos, não fosse direitos autorais vindos do estrangeiro e a lealdade de muitos amigos, estria desempregado e passando dificuldades. Porque ando pelas ruas, porque entro nos bares e vejo as caras sofridas das pessoas pelas esquinas, posso dizer ao senhor com segurança: estamos cansados, senhor presidente. E é no senhor que confiamos, acima de tudo, para dar jeito nesse grande cansaço que já vem de anos.
Vem do golpe militar que cortou os sonhos de uma geração inteira; vem daquela morte misteriosa de Tancredo Neves; vem do desastre de José Sarney e principalmente da vergonhosa catástrofe que foi Fernando Collor.

Vem de muito antes disso, talvez desde que os colonizadores mataram nossos índios, dizimaram nossas matas, levaram nosso ouro. Há quase 500 anos, sempre fomos escravos, roubados, humilhados. Nos últimos tempos esse cansaço nosso aumentou, com a impunidade dos corruptos e o empreguismo fácil que se tornou a política. Os senhores ganham muito bem, senhor presidente, e a maioria de nós morre de fome.
O que quero pedir, quando penso no senhor, olhando pela janela aberta desta cidade estrangeira, não tem nada de extraordinário. Nós queremos comida, senhor presidente. Queremos trabalho, escolas. Queremos saúde e um mínimo de segurança para andarmos nas ruas sem o risco de sermos atingidos por alguma bala perdida. Queremos um mínimo de honestidade, e esperamos que o senhor reforce a nossa auto-estima como brasileiros, não através de um nacionalismo irracional e perigoso, mas apenas por termos satisfeitas as nossas necessidades humanas básicas.
Por favor, não gaste à toa o dinheiro dos nossos impostos. Por favor, preste atenção na infinidade de mendigos que apodrecem pelas ruas de nossas cidades. Não queremos ser o Haiti nem Ruanda, mas apenas um país decente. E temos medo enorme que logo após a sua posse, esse Plano Real que tanto ajudou a elegê-lo, desabe sobre nossas cabeças com uma inflação de 100% ao mês. Estamos tão cansados de mentiras, promessas, aparências, fraudes, ilusões. Nós queremos gostar do senhor, senhor presidente, queremos tanto confiar no senhor. Nós entregamos os nossos destinos nas suas mãos, com boa fé e boa vontade.
E é por tudo isso e muito mais que, daqui de muito longe, quase na Escandinávia, tenho a ousadia de concluir pedindo: pense bem, senhor presidente, no que vai fazer com as nossas vidas. Pode ser bom, isso a ser feito, pode ser nobre e grandioso. Depende um pouco de nós, que temos sido tão pacientes, mas depende principalmente do senhor. Seja justo, honesto, amoroso. Boa sorte.

O Estado de S. Paulo, 16/10/1994

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