A Gerd Hilger

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SP 03.02.94

Querido,
espero que esta te alcance antes do Carnaval, já que o principal motivo é
enviar esta foto (em anexo) com a fantasia que usarei naquele baile em Veneza.
Como, você sabe, temos almas gêmeas, achei muito possível que você tivesse
exatamente a mesma idéia. E para evitar o constrangimento, aí vai a foto. Não
copie, sua naja! Sorry pelo silêncio. É o verão, fico imprestável. Passei dezembro
em Porto Alegre chez Jocasta, e foi ótimo. Arrumei uma velha bicicleta e me
dediquei a longos passeios num parque lindo perto de casa, na beira do rio. Sempre
de tardezinha, à hora em que os rapazes fazem exercícios pesados (ai, os pêlos, os
peitos... lembrava tanto você) e o sol se põe demorado nas bandas da Argentina.
Fiquei santíssima mas, uma tarde, não resisti e fui a um bordel gay recomendado por
um Pai de Santo jacira meu amigo (o Brasil consegue ser maravilhoso às vezes).
Acredite se quiser em Porto Alegre (também conhecida como Gay Port) existem
TRÊS bordéis gays. Tenho que te contar pessoalmente, senão escreveria um livro.
Foi hilário, patético, sórdido, gostoso — tudo ao mesmo tempo. Quem recebe (the
manager) é uma bicha negra, alta, com lentes de contato azul-Liz-Taylor falsíssimas,
e cara de naja. Uma salinha cheia de oferendas para Exu com dois sofás e algumas
cadeiras, tudo meio despencado, com uns 10 rapazes. Todos meio à vontade —
fazia um calor do cão — camisetas, bermudas, havaianas e vendo futebol na TV.
Além de mim como cliente, só havia uma tia sessentona, de camisa havaiana
floridérrima. O preço era cerca de cinco dólares. Eu morria de vontade de rir, mas
resolvi ir em frente. Comecei a conversar com um garoto fortinho, de olhos verdes
e ar aterrorizado. Acabamos no quarto. Bom, o quarto era sublocado de um travesti
que mora ao lado. Para chegar lá, era necessário atravessar um labirinto de
corredores e “puxados” com telhado de zinco e algumas crianças — pura Rondânia.
Colcha de chenile, ventilador capenga. Comecei a conversar com o garoto:
era o primeiro dia dele. Aquelas histórias clássicas — michê é igualzinho a puta —,
mãe entrevada, pai cafajeste. Acabei me comovendo e a possível excitação foi pras
picas. Nus na cama, desabou um temporal que — no dia seguinte soube — foi o
maior dos últimos 30 anos na cidade. Voltei a pé para o lar paterno — não havia
táxis nem ônibus — por dentro de rios urbanos de água da chuva, com uma
sensação de amor desesperado pelo Brasil.
De volta a São Paulo me aguardava uma gripe enorme que durou três
semanas (positiva!), conhecida como CPI, que derrubou meio país, depois uma
crise de otite (velha!), depois um surto depressivo (neurótica!).
Depois emergi muito (não muito) linda, fui à feira, comprei caquis, uvas,
maçãs, pêras, quiabo, ameixas, flores deslumbrantes, roxas e brancas (a negrona me
disse que se chamam “lisodendro”, mas duvido), acendi uma vela pra Oxóssi e
sentei pra te escrever. Sérias decisões: vou voltar à análise. Acabei de ligar para o
meu ex- terapeuta (Ronaldo, militante gay, maravilhoso) para ver hora & preço &
tudo. Vou conversar com ele e, como ando duríssimo e também já fiz 13 anos e
também acho que as coisas não estão assim tão-tão medonhas, talvez faça um
grupo. Veio uma vontade funda há dois dias, inadiável. E ontem um sonho tão
revelador (junguiana!) que, bem, não dá pra adiar.
Não se pode ser infeliz, não se pode morrer em vida, não se pode desistir de
amar, de criar. Não se pode: é pecado, é proibido — verbotten, não é assim em
German? Não é possível adiar a vida. Há um mês recortei uma frase, não sei de
quem, do jornal, e colei em frente à minha escrivaninha: “Se o homem não vem ao
encontro do destino, será soterrado por ele”. Et voilá!
Mas tenho tantas notícias objetivas também. A mais inacreditável vai no fim,
não pula nada até lá!
Chegou da França o Marienbad: uma edição linda. Reli, e acredita que gostei?
Ainda vou dar umas mexidinhas no texto, claro (perfeita!), mas me agrada essa
procura-de-alguém-que-não-está-lá-e-que-também-procura-por-quem-é procurado.
Há tropeços de tradução de Claire, mas nada grave.
Chegou também a capa french de Dulcê Veigá (atenção na pronúncia, meu
bem) — bela também, uma loura tipo 50’s com cigarrão, você vai gostar — é muito
nós.
Esse povo de França me convoca para ir em março lançar (suponho que
subirei na Torre Eiffel — ou no Arco do Triunfo? — ou na Pont Neuf — ou no
alto do Café de Flore? — e jogarei livros em todas as direções). Arrumaram um
programa de TV no dia 20, na France 2, dizem que é o the best. Claaaaaaro que eu
vou — mas laikamente, as usual, fico à espera de passagem-hospedagem e alguns
biscoitos para cães.
Pensei em ir e não voltar, ficar naquela casa dos militantes gays amigos de
Heibert-a-naja-de-Berlim. Segundo Ray-Güde, parece que a casa não estará
disponível. Então volto. Deixo um pouco nas mãos do destino (a propósito —
saco, como estou dispersivo — você conhece City of night, de John Rechy, onde tem
uma bicha chamada Miss Destiny?). A verdade é que voltar à terapia me tranqüiliza
(ou, ao contrário, me excita) e penso não, não adianta fugir. Tenho fantasmas
terríveis dentro de mim, preciso encará-los (dramática!).
Enfim: estou com a vida meio suspensa.
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Pausa para comer um caqui. Maduríssimo, dourado, meio explodindo de
dentro para fora. Telefone, Bivar, com quem não falava há muito tempo, e anda
lendo São Francisco de Assis.
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Adorei tuas notícias profissionais, principalmente porque você poderia vir ao
Brasil. Venha, venha antes que acabe!
Achei estranho o amigo-do-teu-amigo dizer que só ando “com as pessoas
mais chiques de São Paulo” Gerd, eu não ando! Quer dizer — caminho muito, mas
não vou a lugares, não freqüento, não sou mais colunável. Virei uma mulher
misteriosa, reclusa, raramente vista, something bewteen Garbo e Jackie O. Ou
talvez as pessoas mais chiques de São Paulo é que só andem comigo? Na verdade,
quem tenho visto mais é Lygia Fagundes — meu bem, meu bem! — Telles, mas
sempre tête a tête. Ela deve estar voltando hoje da França — para onde partiu há
duas semanas, um seminírio da Sorbonne, meu bem, sobre minha obra tão
desvalorizada por aqui, meu bem.
O dia está tão claro que dá pra ver a Serra da Cantareira, muito além dos
edifícios.
Estou preparando uma surpresa literária para você. Prepare-se. Não posso
adiantar muito porque tira a graça. Voltei a escrever, a ter idéias, a anotar sonhos (a
sonhar!). Se tiver que viajar vai atrapalhar um pouco o surto, mas até lá quero
aprontar algumas coisas. Uma delas é um conto para a antologia de Ray-Schygulla-
Güde, chama-se Há chuva sobre Berlim.
Há: penso sempre em Karin e me preparo para escrever. Depois a vida
dispara e falta tempo. Quando falar com ela, mande beijos.
E agora, já no final, a história. Começa assim:
Sabe DE QUEM recebi uma carta?
De C.P.!
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Aquele moreno-pônei-cearense-da-boate-gay-em-Köln, remember?
Imagine, a carta foi escrita em novembro, em Copenhague, enviada para
Amsterdam, endereço de Sapê, e de lá enviada para o Sapê aqui, que me entregou.
Bom, é uma carta espantosamente BEM escrita. Uma frase, que gosto muito “... e
viver só por viver consome, mas é o que sei fazer melhor”. Acho tão Scott
Fitzgerald. Ele viajou e viajou. Alemanha, Escandinávia, Grécia, Ceilão (!) — mas
manda um endereço de um amigo em Fortaleza, onde deveria estar a partir de
janeiro. Mandei um cartão ontem, te mantenho informado. A vida não é fantástica?
Ele diz que sentiu e sente comigo uma “intimidade mística”. Óbvio que eu preferia
outro tipo de intimidade, bem menos abstrata, mas anyway não houve tempo. E
sempre penso que foi a última vez que beijei na boca, de língua, com gosto — God!
— tá fazendo um ano...
Sexo, a propósito, nada. Só mental, e o tempo todo. No verão fica ainda
mais difícil, you know, dá aquela moleza. E tem as camisas abertas pelas ruas, os
cheiros. Deus não devia ter inventado o sexo.
Dei para reler toda a Patrícia Highsmith, você acha grave? Definitivamente é
uma grande escritora. Por mim, devorava uma por dia. O último que li — Found in
the street — é uma história de sapataria chic em NY deliciosa.
Deixei um grão-de-bico de molho desde ontem. Vou cozinhar. Com quiabo.
Converso muito com você, mentalmente. Quem sabe, se eu realmente for a Paris,
em março, consigo dar uma esticadinha até Köln? Ou o contrário? Espero que o
inverno não esteja sendo demasiado infernal. Cuidei muito pela TV e pelos jornais
as enchentes alemãs. Kiln coberta de água, tentando ver você com as saias
arregaçadas entrando em algum barco. Acho que vi, mas muito en passant. Conta,
no dia daquela chuva braba, você estava mesmo todo de verde? Então era.
Serenize Ray-Güde em relação a mim. Acho que ela está com um pouco de
medo que eu resolva me meter em Berlim, entre em surto depressivo e acabe
apelando para a velha e boa Tia Ray. Afinal, já aprendi a segurar o turbante e a
sentir o ritmo... E tudo por aqui, na verdade, vai bem. Pulo os poços, quando
pintam — e como pintam! Mas não vou abrir mão de um pouco de alegria.
Lembre-se da recomendação sobre a fantasia, aproveite o Carnaval, não
abuse de drogas estupefacientes use camisinha, pense na Mangueira dê um beijo no
Valdir, cantarole mamãe-eu-quero lembrando de mim, seja discreto nos balagandãs,
atenção ao movimento dos quadris e ao ritmo do reco-reco, e receba um beijo
sabor lança-perfume.
Always yours,
Caio F.

P5 — Será que a Dulce alemã sai antes da Feira de Frankfurt? Como anda
esse trancetê?

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