A Hilda Hilst

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Rio, 10 de novembro [de 1969].

Querida Hilda, hoje é segunda-feira de chuva, sábado te passei um telegrama
comunicando que eu havia ganho o prêmio Fernando Chinaglia. Soube através de
um telegrama que a mãe mandou de P. Alegre. Fiquei felicíssimo. Hoje fui na
União Brasileira de Escritores: tirei realmente o primeiro lugar, ganharei um milhão,
a serem entregues no começo de dezembro, numa solenidade, o livro será
publicado o ano que vem, mais ou menos em março. Parece que ganhei por causa
da “força, violência e atualidade dos contos” — pelo menos foi o que disse o
presidente da UBE, Peregrino Júnior.
Ganhei também um segundo ou terceiro lugar, ainda não sei bem, naquele
prêmio Henry Miller, da Editora Record. O prêmio é em livros, mas parece que
eles vão publicar uma antologia com os premiados. O meu conto é O ovo.
Soube também que aquela antologia de P. Alegre sai em dezembro. Como
você vê, estou entrando na engrenagem.
Quanto a empregos, tenho me virado, estou inscrito na agência de empregos
do amigo do Papini, o cara me arrumou um negócio de relações públicas, eu estava
a fim de topar, mas o Papini ficou indignado e não permitiu. Disse que é um
negócio horrendo. Entrei em contato com uma amiga de PA, Adela, que trabalha
numa agência de publicidade (aqui no Rio) — está quase certo que ficarei lá,
fazendo redação.
Não sei se você chegou a ler a carta da Zama: ela fala da capa de O triângulo.
Ficou comovida com o seu pedido, e está dispostíssima a fazer a capa sem
remuneração nenhuma. Tem idéias ótimas, já me mostrou os esboços excelentes,
mas como é muito prudente quer primeiro ler as novelas para fazer uma capa bem exata. Pede que você mande os originais. O endereço e o nome dela são: Dilze
Soares, Rua Antônio Basilio, 439, ap. 201 — Tijuca — Rio.
Falei com Nélida só pelo telefone, ela anda muito ocupada. Está
simpaticíssima como sempre, saudosa de você. Com Lelena também só falei pelo
telefone, está muito bem, vai para a Europa em abril. Sábado estive na casa de
Isabel Câmara, ela está na fossa, porque acabaram aquela seção do Cruzeiro, ela
ficou dura, sem emprego, está fazendo cinema como assistente de direção. Mostrase
decepcionada com a direção de Vanneau para As moças. Claire não estava em
casa. Estava lá Fauzi Arap, um amor de pessoa.
Francisco e Papini muito bem, mandando abraços e beijos. Ambos adoraram
os teus desenhos, vão mandar emoldurar e colocar na parede. Eles são uns amores
comigo. Papini está de carro, tem suadores enormes dirigindo. Francisco fazendo
caras e bocas engraçadíssimas .
Fez um calor horrível de 38 graus. Como resultado apanhei uma gripe
daquelas. Estou muito bem, me sentindo tranqüilo, feliz, sei lá. Adoro o Rio. A voz
está ótima. Não tenho problemas de comunicação ou de qualquer outra espécie.
Acho que é só. Ah, por favor, você mande se possível os seguintes livros: Cem anos
de solidão (Francisco está frenético para ler e não tem $$$), La Sinrazón e outro que
ficou no meu quarto, Nome de Guerra, de um português, é uma edição que não existe
no Brasil — ambos são do Francisco e ele os quer. Os outros pode deixar, não
estou precisando no momento.
qFui ver Macunaíma, um filme excelente, talvez o melhor filme brasileiro. Vi
também Faraó, do Kawalerowikz, ótimo, todo sobre .a opressão e as sacanagens
religiosas no Egito.
Dê por mim um abraço no Dante, outro em Edina. Se o José ainda estiver aí,
um para ele também. Muitos beijos para você. Seu,
Caio
Desculpe o jeito apressado, daqui a pouco preciso sair para ir na agência, no centro,
mas não queria deixar passar mais tempo sem escrever.
1. A Celestina do Martin Gonçalves é um fracasso enorme. Ficou 10 dias em cartaz e
saiu, tirada a tapas pela crítica. No teatro, a grande coisa são Na selva da cidade e Chá
e simpatia (esta dirigida pelo Amir Haddad).
2. Ainda não tive tempo de falar com Rosa Chacel.

Rio — Sábado.

Hilda querida, acabo de receber a carta que você manda pelo Vicente.
Respondo rapidamente para não perder a oportunidade. Está tudo bem. Segundafeira
farei um teste na Enciclopédia Britânica, para um cargo que ainda não sei qual
será. Mas estou em dúvida entre trabalhar mesmo ou levar uma vida hippie. Aqui,
em Ipanema, existe uma praça onde eles se reúnem, entrei em contato com um,
Fernando, que se dispôs a me ensinar artesanato, segundo ele pode-se viver muito
bem vendendo cintos, colares, anéis, bolsas.
Ficamos felicíssimos com o seu prêmio. Que vitória, que ótimo. É o
começo da glória, o reconhecimento que há tanto tempo você espera e merece.
Hoje à noite vamos a uma festa na casa de Ninita, comunicarei a ela, a Nélida,
Myriam, Jacqueline. Telefonei para Carmem da Silva, o meu romance está na
Civilização Brasileira para sair não sei quando. Dei uma entrevista ontem muito
agressiva, para a Ultima Hora, não sei se sairá.
Mando um recorte do mesmo jornal, onde saiu uma nota sobre o seu
prêmio. Obrigado pelos livros. Achei interessantíssima a idéia da novela — entre Koyo e Caio não vai muita diferença, não? Ai, o subconsciente. Mais tarde
escreverei uma carta para o Dante, eu entendo sim o que você quer dizer, apenas
para uma carta dessas é preciso uma certa disposição de espírito, você compreende,
não é? A visita saiu todo cortado no Estado. Cortaram a palavra “esperma”, além
dos trechos onde eu falava discretamente que os filhos da Valentina tinham
relações com os homens e com os animais. O meu prêmio foi noticiado
amplamente em todos os jornais do Rio.
Estou sem dinheiro nenhum, Nenhum mesmo. Francisco já me emprestou
vinte contos. O dinheiro do prêmio só virá no fim do mês. Você é que é uma
felizarda de ganhar os 7 milhões do Anchieta.
Bem, é só, minha querida. O moço está esperando. Mais tarde escrevo com
bastante calma uma carta bem grande contando tudo o que tem acontecido.
Escrevi mais um conto bastante grande, sobre um hippie da praça. É das melhores
coisas que já fiz.
O Rio de Janeiro continua lindo. Abraços para todos. Um grande beijo do
seu,
“Koio”.

PS — Francisco diz que amanhã te escreverá uma carta. Ele e Papini mandam
abraços.


P. Alegre, 13 de dezembro. [1969]

Querida Hilda, sei que vais ficar surpreendida ao ver o “Porto Alegre”. Pois
é, voltei. Minha vida ficou muito complicada, de repente, não consegui emprego no
Rio, estava atrapalhando um pouco o Francisco e o Papini (verdadeiros santos, no
sentido positivo), apartamento pequeno, eu sem dinheiro — enfim, tudo o que
previ. De repente resolvi voltar, até não sei quando, até ter dinheiro de novo, ou até
não suportar mais. Decidi aceitar meu ser nômade, até segunda ordem. Estou bem,
queria te escrever há várias semanas, mas no Rio não havia mesmo tempo; depois
cheguei aqui e, em seguida, aboletaram-se entre nós uns parentes do interior, com
crianças. Ficamos em 15 pessoas na casa, um verdadeiro inferno. Eu saía a
caminhar à toa, depois voltava e me trancava no quarto. Não havia saúde para
escrever. Somente ontem eles foram embora e eu posso fazer o que quero. UFA!
É dificil te escrever depois do que aconteceu. Acho que a gente não pode
fingir que não aconteceu nada. Seria besteira. Precisávamos falar lentamente a
respeito de tudo o que aconteceu, por carta é muito dificil, e eu não voltarei mais à
fazenda — portanto fica quase impossível dizer tudo como eu queria dizer. Depois
das nossas brigas, compreendi uma porção de coisas. Compreendi, por exemplo,
que eu estava mitificando e mistificando você; que estava também me anulando
perto de você; que estava aceitando tudo o que vinha de você somente por achar
você bacana. Longe de você, pensei por mim, analisei por mim, concluí por mim.
Nós não estávamos nos comunicando mais. Um pouco por culpa minha, é certo,
mas só um pouco. Tu não estavas me respeitando, humanamente. Não é agressão,
Hildinha, é verdade. Tu não estavas me vendo como aquilo que sou, mas como
aquilo que querias que eu fosse. Ora, a versão idealizada do Caio vezenquando se
rompia e deixava escapar coisas que eram do Caio mesmo, o Caio-gente, o Caioconfuso,
o Caio-angustiado que sempre fui e que continuarei sendo até não sei
quando. E não aceitavas essa segunda face (que na verdade era a primeira, a única).
Daí os choques.
Tu sabes, creio, que eu sempre tive o pressentimento de que um dia tu e o
Dante iriam me considerar um segundo José Luiz Archanjo. Talvez isso já tenha
acontecido, talvez esteja acontecendo, talvez aconteça principalmente depois desta
carta. Mas não é verdade, Hilda, não é verdade que as pessoas se repitam. O que se
repetem são as situações, inúmeras vezes — e você sabe que qualquer situação que
nos acontece é por nossa culpa. Principalmente quando ela se repete muitas vezes.
Tudo o que acontece à gente é uma mera conseqüência daquilo que se fez.
Eu estou me confundindo e não-dizendo aquilo que queria dizer. O
importante, o irreversível, o definitivo, o claro nessa história toda é que eu gosto
muito de ti. Muito mesmo. Não adoro nem venero, mas gosto na medida sadia e
humana em que uma pessoa pode gostar de outra, O resto é detalhe. Ainda que tu
não me escrevas, eu continuarei gostando, sabes?
O que eu queria que entendesses é que sou uma pessoa. Com certa
inteligência, certa cultura, certa sensibilidade. E certas idéias (que não te agradam).
Mudei muito, e não preciso que acreditem na minha mudança para que eu tenha
mudado. Essa modificação vinha se processando sem que eu mesmo percebesse e,
com determinadas leituras e determinadas vivências, ela se consumou.
Depois de um paroxismo de compreensão, entre duas pessoas só pode
começar uma lenta incompreensão não é mesmo? Foi o que aconteceu conosco.
Regredimos em comunicabilidade, porque não era mais possível avançar. Quando a
gente se abre mais, o outro vê fundo. E o fundo é quase sempre escuro e assusta.
Gozado, pela primeira vez, sinto que estou escrevendo para uma amiga, uma
pessoa no mesmo plano que eu — e não um monstro sagrado. É bom. Para mim,
pelo menos.
Como estou falando claro, Hildinha, vou falar mais claro ainda: tu me
pediste que eu escrevesse uma carta muito terna para o Dante. Eu não posso fazer
isso. Não que sinta raiva dele, não que o despreze, absolutamente, não se trata
disso. Desculpo as coisas (horríveis) que ele me disse aquela noite, desculpo nele
entende? O que não desculpo é que, dizendo aquilo, o Dante de repente revelou-se
um puro exemplar de uma sociedade sórdida e intolerante, moralista e decadente.
Preste atenção: eu não estou chamando o Dante de sórdido, intolerante, moralista e
decadente. Estou chamando a sociedade disso. A sociedade em que eu fui criado,
em que tu foste criada, em que ele e todo mundo foi criado. Apenas, Hilda, eu (e tu
também) tive coragem, o peito, a raça (esse orgulho ninguém me tira) de romper
com essas podridões e aceitar em mim um tipo de amor, um tipo de necessidade e
de afeto, e mesmo de vida, contrários às normas usuais. Eu estou consciente dos
porquês disso, das responsabilidades disso, de tudo. Eu estou SOBRE a sociedade:
o Dante, dizendo aquilo, revelou-se DENTRO dessa coisa nojenta, dominado por
preconceitos, por tabus. Mas compreendo: ele não tem condições de libertar-se, ele
não sabe o que significa isso. Ele é simples, sem angústias, sem neuroses. Deve ser
bom ser como ele. Mas no momento em que ele me chamava de veado e de
doente, quem estava tentando me agredir não era ele, mas uma sociedade burguesa
e nauseante que não tem o direito de me fazer críticas porque sou superior a ela,
porque ela não tem condições de me julgar, nem condições nem direito, nem nada.
Foi uma violência absurda, grossa e grotesca, deplorável, ridícula, nojenta. Eu estou
contra isso. E não estou sozinho. Eu aceito e gosto imensamente do Dante como
ser humano; mas detesto como ser social — compreendes? Escrever para ele seria
curvar-me para essa coisa que eu e um punhado de gente estamos tentando
derrubar. Não esqueças que J. é homossexual, que A.K.[...] — que todas essas
pessoas que estão tentando fazer alguma coisa na merda desse país são
homossexuais. Não é apologia é a verdade.
A única pessoa a quem devo dar satisfações é a mim próprio e, dentro de
certas limitações, eu me sinto relativamente cumprido com o que fiz de mim
mesmo. Entenda isso. E me escreva, se achar que vale a pena. Entenda
principalmente o que o Dante não entenderia. Um abraço a ele. Teu,
Caio

PS — feliz 1970.


Porto Alegre, 4 de março [de 1970].

Hildinha, acabo de receber a tua carta. A demora não me surpreendeu: eu
sabia que devias estar muito abatida com a morte de Lupe. Eu próprio fiquei
muito chocado, não sabia que ela estava doente. Aliás, aconteceu uma coisa mais
ou menos estranha antes de eu saber que ela havia morrido: uma noite,
conversando com um amigo meu, sem motivo aparente, comecei a falar sobre ela,
que era muito amiga tua e de Lygia, boa poeta, muito bonita, etc. Fiquei horas
falando, quando voltava para casa comprei o jornal e lá estava a notícia. Senti como
nunca a precariedade da existência humana. Ela estava aí, escrevendo, ganhando
prêmios — e de repente já não está mais. Não consigo aceitar nem compreender
isso; não consigo sobretudo deixar de pensar que a mesma coisa pode acontecer
daqui a pouco comigo ou contigo.
As coisas realmente não andam boas. Parece que quando tudo começa a
degringolar não há o que segure. Primeiro no plano político: a portaria do
Ministério sobre censura de livros me deixou besta. Não pensei que chegássemos
a tanto, é a degradação completa, o medievalismo e a inquisição reinstaurados. A
seguir a perseguição dos hippies, como se fossem criminosos ou cães hidrófobos.
Cada dia, quando abro o jornal, tenho um novo choque e uma revolta que se
acumula e, logo após, uma terrível sensação de inutilidade. A.K. está preso em São
Paulo: invadiram o Gigetto e o levaram, por tráfico e consumo de LSD. O grotesco
da história é que nas chamadas “leis” não existe nada sobre LSD. Porto Alegre
sempre foi uma cidade nazista, cheia de grupos de defesa familiar e coisas no
gênero: tudo isso repercute aqui da maneira mais alvissareira (do ponto de vista
deles) possível. Os lugares onde eu costumo ir, bares onde se reúne gente de teatro e outros desgraçados, estão cheios de espiões — não se tem a menor segurança para
falar sobre qualquer assunto menos “familiar”.
Outras notícias igualmente más: logo depois que meu primo foi embora, o
pai adoeceu gravemente. Veio o médico e deu aquele susto em todo mundo:
tuberculose ou câncer no pulmão. A mãe ficou baratinadíssima, chorando pelos
cantos. Ele está em observação, parece que a hipótese do câncer está afastada —
resta a outra.
Eu também estou doente, desde sábado. Passei um dia inteiro com febre de
quase quarenta graus, delírios e coisas assim. O médico achou que fosse
pneumonias mas como os remédios que tomei fizeram efeito, acho que não passa
de uma gripe muito forte. A dor nas costas foi insuportável. Agora passou um
pouco, estou meio sobre o deprimidos sem vontade de nada, perdi dois quilos
nesses dias.
Quanto ao livro, não soube nada. Creio que vou ter mesmo que pagar a
edição — mas me revolta a idéia de ter que submeter os originais à censura,
obviamente grossa e sem condições para julgar sequer J.G. de Araujo Jorge. Para
aproveitar os dias de cama, tenho lido bastante. Comprei o livro de contos daquela
moça da Folha, Alcione T. Silva, Flashback dimensão de memória — um lixo total; o
que ela chama, muito máriodeandrademente, de contos não passa de um
amontoado de frases pseudo-intelectuais, tudo sem a menor unidade, sem sequer
dimensão ficcional. Li também Ninguém escreve ao coronel, do García Cem Anos de
Solidão Márquez, pareceu-me não ir além de um negócio de consumo, raso,
gostoso de ler. Mas só. Falta linguaem. Agora estou relendo Contos da Mansfield,
Felicidade (Bliss) — e descobrindo mais coisas. A mulher foi sem dúvida uma grande
contista, seu único defeito é um certo feminismo. Mas adoro. E me identifico tanto
com ela.
Sofri a morte da Preta. Mas tu podes estar certa que, no que depender da
minha lembrança, ela ficará para sempre naquele limbo gostoso para onde os animais vão. Deve ser bom para ela, lá. Mais do que aqui. Agora já não tenho filha,
estou de novo sozinho.
Recebi uma cartinha da Myriam Campello, escrita em Teresópolis, da casa da
Nélida. Estão ambas revoltadas com a censura, embora eu ache que a Nélida não
tem nada a temer. Pergunta por ti na carta, gosta muito de ti.
Acho que o casamento da Maria com o Apolinário foi um negócio acertado.
Tenho certeza que ela vai ficar menos neurótica, menos insegura. É muito provável
que já tenha descoberto que existem coisas mais sérias e mais problemáticas do que
lecionar História. O que me contas da Ana também é ótimo, esse negócio de viajar
vai-lhe proporcionar coisas maravilhosas. Fico feliz por ela, só espero que não
pretenda largar o teatro.
Obrigado por teres feito a minha propaganda para o Thomaz Souto Corrêa,
é ele quem manda e desmanda na Cláudia. Eu o conheci por intermédio da Carmem
da Silva, já tinha certos preconceitos contra o cujo por causa de certos contos
monstruosos que ele andou publicando, e pareceu-me um pouco sobre o maucaráter,
como todos os “por cima” da Abril.
Ainda não li o Fundador da Nélida, só olhei por cima na casa do Carlos Jorge
Appell, que estava irritadíssimo com o que chama de “falta de espaço” das coisas
de la Piñon. Segundo ele, as personagens dela parecem fantasmas se movimentando
num lugar todo branco e sem forma. Aliás, no prefácio do Tempo das frutas a Maria
Alice Barroso aponta isso como uma qualidade — mas todos nós sabemos que a
Maria Alice é uma boa besta, talvez por isso mesmo esteja na presidência do
Instituto Nacional do Livro. Gozado é que olhando o livro lembrei que a Nélida
havia se referido com desprezo às capas sem desenho, somente com letras, falando
também que prefácio não dava mais pé. Pois bem, o Fundador tem uma capa só de
letras e um prefácio enorme da Eliane Zagury, tradutora dos Cem anos.
Sabe, não quero te desanimar nem nada, mas acho que as tuas novelas não
passarão na censura — pelo menos o Osmo. Nas outras novelas, as coisas todas são
menos evidentes e a censura-teresinha não é inteligente ao ponto de descobrir essa
dimensão. No Osmo as intenções agressivas e desmistificadoras se expressam a
partir da própria linguagem, isto é, qualquer um percebe. Até a censura. Se isso que
estou prevendo acontecer, por favor, Hildinha, não te abaixa, não faz correções no
texto, não corta os palavrões. Espera que tudo mude, ainda que isso não aconteça
antes de 20 anos. Eu estou confuso, achando que submeter originais à censura é
compactuar com ela, Fico pensando se não seria melhor todo mundo desistir de
publicar coisas, guardar os seus calhamaçozinhos nas gavetas. Acho que qualquer
publicação “liberada pela censura” será, a priori, considerada como a favor do regime.
Horrível, não? Não seria esta a hora exata dos escritores se reunirem e tomarem
uma posição rígida e irreversível? O problema é que não existe classe mais
calhorda, mais desunida — desse ponto de vista, o pessoal do teatro é bem melhor,
talvez porque o próprio teatro seja coisa de equipe, não sei. A nossa antologia, que
sairia em março, não sei como está: será doloroso se for trancada, pois a gráfica está
quase concluindo o serviço; por outro lado, será igualmente horrendo se for
liberada — o que pressupõe que será inócua e não-pervertedora dos costumes e da
moral da tradicional família. Por aí tu vês como estou confuso, o meu consolo
(nem tanto) é que suponho que todo mundo deve estar na mesma.
Felizes são os que estão fora daqui: recebi do Maciel uma carta enorme
contando maravilhas da Europa. Ele está muito bem, com dois convites para
exposições, uma em Londres, outra em Paris, preparando trabalhos para a Bienal
de Veneza. Mas não quer mais nada com a Espanha, pensa em se mandar muito
brevemente para Londres, Paris ou Roma. Outra coisa interessante que ele conta é
a respeito dos convites de homossexuais ricos e velhos a turistas americanas
igualmente velhas e ricas para viver com os cujos. São vidrados nos latin-lovers. Os
nomes europeus que ele cita na carta, os lugares, as perspectivas — tudo isso mexe
com a minha imaginação, com o meu “ser nômade”. Morro de vontade de escapar
mas, pelo visto, isso jamais será possível. Não tenho e nunca terei dinheiro, bolsas
de estudo são coisas que acontecem somente aos outros, nunca a mim. Turistas
americanas não existem em Porto Alegre, no máximo umas uruguaias e argentinas
muito rastaqüeras. Mesmo a São Paulo ou ao Rio creio que não terei oportunidade
de ir durante muito tempo. Isso aqui é uma espécie de exílio.
Com essa maré toda contra, não tenho escrito absolutamente nada. É
terrível. Tu sabes como é, a gente fica pensando aquela porção de coisas
destrutivas, que nunca mais vai conseguir, que secou completamente, etc. Tenho
algumas idéias, várias anotações, tudo meio caótico e superdesorganizado — mas
acho tudo pálido, tudo insuficiente e inútil nesse momento que a gente está
vivendo. Ando me sentindo ex-escritor, ex-amigo de qualquer pessoa, ex- gente —
me lembro sempre de teus versos (teu livro está sempre na minha cabeceira,
sempre leio coisas antes de dormir, às vezes gravo, outro dia eu e um amigo
fizemos um recital inteiro dos teus poemas, a boneca terminou em prantos):
“Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito. Tenho me fatigado tanto todos os dias
vestindo, despindo e arrastando amor, infância, sóis e sombras”. A verdade é que
não me sinto capaz de nada. Não é fossa. Fossa dá idéia de uma coisa subjetiva e
narcisista. São motivos bem concretos, que inclusive transcendem o plano pessoal.
E tudo tão insolúvel que a gente só pode fugir, porque ficar não adianta nada. A
minha maneira de fugir, tu sabes, é dormindo. Andei dormindo até quinze horas
por dia, durante quase duas semanas. Nos contatos que tenho com gente da minha
geração, ou de outras, mas unidos pela mesma lucidez, percebo de maneira intensa
a mesma sensação de abandono e de inutilidade. Sobretudo de impotência. O
consumo de drogas como meio (ótimo) de alienação e como meio (falso) de
libertação é uma coisa incrível, assustadora mesmo. A maconha rola em Porto
Alegre, as “picadas” também, agora descobriram mescalina em Sta. Catarina e uns
conhecidos meus, pintores, estão fazendo tráfico e vendendo para toda a “classe
artística” de PA. E o mais assustador nessa estória de drogas é que são consumidas
justamente pela parte mais esclarecida da população, pelos que poderiam fazer
alguma coisa. Os outros, as camadas mais baixas, têm a televisão, as novelas, as
revistinhas de amor. Eu tenho o sono, talvez a fuga mais saudável, se bem que
igualmente desesperadora.
Sei que vais te preocupar com esta carta, mas eu não poderia escrevê-la de
outra maneira. Se essas coisas não são boas de serem lidas, não são também boas
de serem escritas. A verdade é que tudo está muito duro para todos nós. E a
verdade ainda mais insuportável é que somos justamente nós os culpados: a
situação não teria ficado assim se esse rebotalho humano oficialmente conhecido
como “povo brasileiro” não tivesse permitido desde o início. Sabes qual é a imagem
que me vem à mente quando penso nisso tudo? É assim: o Fascismo, um sujeito
enorme, peludão, gênero estivador, botando na bunda do Povo Brasileiro, um
sujeitão magro, pálido, subdesenvolvido e preguiçoso como Macunaíma. No
começo o Povo Brasileiro deixa, por preguiça, só um pouquinho não faz mal, por
medo de levar porrada e, mesmo, no começo não dói muito. Mas acontece que o
Fascismo tem um SENHOR pau, e não se contenta em botar um pouquinho, quer
empurrar tudo. E vai empurrando cada vez mais. O Povo Brasileiro começa a se
sentir incomodado, pensa vagamente em reclamar, mas conclui que, afinal,
homossexualismo é uma coisa válida e se tantos suportam (pensa rapidamente no
seu amigo Povo Espanhol, que virou bicha louca) ele pode também suportar. Aí, de
repente, o Fascismo empurrou tanto que não é mais possível tirar. Ficou entalado.
E goza trezentas e quarenta e cinco vezes seguidas enquanto o Povo Brasileiro
morre de hemorragia anal. The end.
É só, Hildinha, não sei quando mandarei a carta porque não posso sair de
casa. Carinhos mil para o Dante, para Edina e A casa, para todos os cachorrelhos,
Papéti, Maria Preta e demais dependentes. Todo o carinho do sempre teu
Caio.

PS — Escreve para o endereço da minha avó, ainda não nos mudamos: Bto.
Gonçalves, 315 casa 4. Vibrei com a estória do tradutor alemão. Li uma
matéria no JB sobre o cara, parece que é bom paca. Tomara que dê certo.
Logo que Zama devolver a cópia, manda. Quero demais ler. Vou
providenciar có— pia das minhas últimas coiselhas.
P5— Quando vires a Lygia, diz que mando um grande abraço. Gosto demais
dela.

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