A Hilda Hilst

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Porto Alegre, 11 de janeiro de 1973.

Hilda querida, foi uma grande felicidade receber o seu cartão. Um dia antes,
eu havia falado muito mal de você para minha mãe, que você era ingrata,
desamorosa, que não escrevia há mais de um ano. Andei mesmo muito magoado
por causa disso. Escrevi dezenas de cartas para os mais diversos endereços,
inclusive para Lygia Fagundes Telles e para Hermengarda, na praia. Sabia de você,
ocasionalmente, pelos meninos Paulo e Moacyr, e por Maria Zali, e as notícias eram
sempre preocupantes: que você estava com problemas financeiros muito sérios e,
ainda por cima, que aquele baixo-astral (na minha opinião) do Geraldo estava
morando aí. Eu ficava baratinado, imaginando estorinhas negras, e não havia jeito
de saber nada de concreto. Fico feliz que você tenha escrito, muito embora seja
apenas um cartãozinho: tenho uma grande dívida de afeto e força para com você,
além de enorme gostar, você sabe disso.
Estou muito bem, graças a Deus. O ano de 72 foi bastante terrível, até
outubro, novembro. Precisei fazer análise para me situar um pouco, estava
completamente desorientado, com idéias fixas em suicídio, achando que nunca
mais conseguiria escrever, com medo das pessoas, sem falar o dia inteiro,
completamente sozinho. Aos poucos as coisas começaram a engrenar novamente e,
agora, tenho certeza de estar numa das melhores fases da minha vida, no começo
da vida adulta, seguro, nítido. Ganhei o 1º prêmio de um concurso de contos do
Instituto Estadual do Livro, no valor de Cr$ 5.000, com um conto chamado Visita.
Foi sensacional: toda a intelectualidade local estava concorrendo, e a comissão
atribuiu o prêmio apenas a mim, por achar que nenhum dos outros tinha nível. Foi
o grande escândalo literário do ano, por aqui. Para mim, afora a satisfaçãozinha
vaidosa (natural e perdoável, não?), foi um grande estímulo. Eu andava
Extremamente inseguro das minhas coisas, me achando um lixo, depois do prêmio
tive uma nova visão do que não sei se posso chamar de “minha obra”, mas é isso
aí.
Estou empenhado numa grande aventura, um grande sonho: planejei ir para
a Europa, em julho ou agosto, e vou. Guardei o dinheiro do prêmio e aceitei um
trabalho de copydesk num jornal daqui, a Zero Hora. São apenas 5 horas de
trabalho, com um salário de mil cruzeiros. Até julho, portanto, devo ter mais de mil
dólares em “caixa”. Quero matar essa vontade de ver o outro lado do Atlântico.
Talvez estude por lá (ando fascinado por Cibernética), talvez apenas olhe, não sei,
não se pode prever: sei apenas que enquanto eu não pisar na Europa não vou
conseguir descansar.
Tenho um outro livro de contos pronto, chama-se O ovo apunhalado. Está em
Brasília, concorrendo ao Prêmio Nacional de Ficção. Mas, mesmo que não ganhe,
já tenho um editor: o Instituto Estadual do Livro está disposto a financiá-lo. Meu
trabalho está bem diferente do que você conhecia, para melhor, já liberto de todas
aquelas influências de Clarice Lispector. E bem mais objetivo, bem mais maduro
que o Inventário, aproveitei bem minhas incursões pela loucura, é um livro místico,
violento, louco e lírico. Alguns dos contos que você conhece foram escritos aí na
fazenda, como aquele do anjo que mora num guarda-roupa. Continuo produzindo,
estranhamente, cada vez com mais dificuldade (no sentido de mais respeito para
com a “coisa literária”) e também com mais prazer. Há uma peça infantil quase
pronta, um romance interrompido por falta de vivência e uma novela ainda na
cuca.
Uma outra noticelha literária, que muito me alegrou: aquele maravilhoso
Suplemento de Minas Gerais selecionou os que eles consideram os 32 melhores
contistas brasileiros (entre outros, Lygia, Clarice, Trevisan, Rubem Fonseca, Nélida,
Rawet, Roberto Drummond, J. Veiga) para publicar uma antologia. Serão editados
35.000 exemplares, para serem distribuídos a universidades do Brasil e do exterior.
Fui convidado (com Moacyr Scliar e Tania Faillace, aqui do Sul) e mandei o que
considero meu melhor trabalho, Ascensão e queda de Robhéa, manequim e robô, a
piradíssima estória de uma epidemia tecnológica, em que as pessoas se
transformam em robôs, com toda uma crítica ao consumo e ao poder.
Quanto a mim, pessoa-espírito, mil maravilhas. Tudo que passei (e que talvez
um dia te conte pessoalmente), as escuridões do outro lado da mente, me conduziu
para muito perto de Deus e da magia. Associei-me aos Rosacruzes, já fiz uma das
iniciações, estou no Iº grau, e por fora tenho estudado astrologia, numerologia,
taromancia. Estou com um poder mental muito grande, e que se desenvolve a cada
dia. Descobri que posso me tornar um grande mago branco, e estou me
encaminhando para lá. As experiências mágicas que tenho feito infelizmente não
podem ser contadas por carta, mas são desbundantes. Posso te dizer que estou
perto de Deus, e que estou feliz, gostando de viver (é maravilhoso poder dizer isso) e
conseguindo transmitir um monte de coisas boas às pessoas que me cercam. Devo
também começar a fazer ioga, e estou arrumando os dentes para começar também
uma dieta macrobiótica. Estou estudando inglês e francês, para a viagem, e talvez
aprenda também violão. Meu relacionamento com a família e com as pessoas em
geral nunca esteve tão bom: há uns três meses desaprendi o que é
incomunicabilidade, solidão, angústia. E sei que estou apenas no início de um largo
caminho de amor, Maciel (lembra dele?) está aqui desde novembro, veio fazer uma
exposição. Pergunta sempre por você, e manda um grande abraço.
[...]

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