O DESEJO MERGULHA NA LUZ

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Chamava-se Desiderio, mas desconfio que não gostava muito desse nome. Que nem é feio — em italiano, pelo menos, quer dizer desejo. Eu só soube por acaso que era também Desiderio, um dia que pedi a meu irmão para levar uns livros a ele no hospital. A moça da portaria procurou “Fernando”, não havia nenhum. Procurou então “Severino”, e lá estava: Desiderio. Não cheguei a perguntar a ele se não gostava mesmo do nome tão sonoro. Não soube também se chegou a ler O apanhador no campo de centeio, que eu mandara naquela tarde. Eu não soube, não perguntei nem disse uma porção de coisas. Não comemos os camarões do Tirol com o doutor Eduardo. Não houve tempo. E a gente não sabia disso.
Só o encontrei há poucos meses, no fim da primavera do ano passado, por intermédio de Marcos Breda, que só conhece pessoas do bem, e com quem ele fazia Bailei na curva. Nos vimos poucas vezes depois. Certa tarde eu o arrastei para assistirmos a Paciente zero, um filme canadense grosso e feio, na Casa de Cultura Mário Quintana. Fez mal a nós dois. Saí tossindo, ele com febre. Foi nessa mesma tarde que, atravessando as ruas do centro, ele me contou de seus planos de ir a Nova York em fevereiro último. Contei dos meus de ir até as ilhas gregas neste junho que já se foi, e eu não fui (quem sabe em setembro?). Ele também não foi. Não havia tempo, a gente quase nunca sabe disso.
Foi nessa mesma tarde que percebi o quanto ele estava frágil, embora aparentemente normal e bonito como sempre. Mas parecia vacilar às vezes — só parecia, qualquer coisa nos olhos, no passo —, como se fosse cair. Não caía. Por trás da fragilidade física escondia-se uma extraordinária força. Nos meses seguintes, entrando e saindo de hospitais, lutava consigo mesmo como um tigre. E no dia de cumprir a obrigação que ele adorava — fazer mais uma vez Bailei na curva —, era o mais animado de todos, Breda contava com admiração.
Nos últimos tempos, falamos muito pouco diretamente. Eu mandava recados, pedia notícias a um, a outro. As notícias eram cada vez piores, e aprendi por experiência própria que muitas vezes a gente prefere ser deixado a sós com o enigma do próprio corpo, quando ele ameaça nos devorar feroz, incompreensível. Lutar em segredo, fechado no quarto, sem que ninguém saiba. Para os outros, mostrar só o melhor de si, a face mais luminosa: Desiderio era assim. Por isso, talvez, sempre era tão leve estar perto dele.
Soube de sua partida numa manhã gelada de inverno. Eu acabara de voltar de um dos morros aqui perto de casa, para colocar balas ao pé daquela árvore-Oxóssi poderosíssima. Pedira por nós, por todos, principalmente por ele, passando por coisas tão duras que nem quero falar delas aqui. Que fique o bom, o belo. Então, quando me contaram, suspirei assim “que alívio, meu Deus, que alívio”. Depois conversei com ele pedindo que fizesse boa viagem e não se preocupasse, que nós vamos tentar continuar cuidando de nós mesmos, que não olhasse para trás e mergulhasse na luz assim como quem se joga do alto do trampolim numa imensa piscina azul dentro de uma manhã alucinada de verão.
Fui cuidar da minha vida. Peguei a tradução da novela de Susan Sontag e, como se fosse por acaso, lá estava este trecho: “Bem, todo mundo está preocupado com todo mundo agora, disse Betsy, parece ser esse o jeito que vivemos, o jeito como nós vivemos agora”. Publicada em 1986 no New Yorker, way we live now’ foi das primeiras ficções escritas sobre a aids. Quase o anos mais tarde, continua a ser esse o jeito que nós vivemos agora. Até quando? Sei que não haverá postais, mas outra vez desejo boa viagem a Desiderio Fernando Fernandes Severino com seu sonoro nome de Espanha no centro, Itália no início e morte e vida no fim. Fim? Ora...

Zero Hora, 1/7/1995

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