A João Silvério Trevisan

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Porto, 20. 11. 77 — domingo de sol

João Silvério, meu querido amigo:
recebi tua carta na semana passada. Eu fiquei contente/triste: contente
porque a sua insegurança a respeito do meu querer-bem por você prova que o seu
querer-bem por mim é verdadeiro; triste porque, nas entrelinhas, parece que você
me supõe uma pessoa metida até os cabelos em badalações sociais e literárias.
Respondi imediatamente. Só que não enviei a carta, como de outras vezes. Aliás, já
te escrevi inúmeras vezes — mas nunca enviei. Faço isso muitas vezes (ninguém
tem tantas cartas não-enviadas na gaveta como eu) —, às vezes por autocrítica
exagerada, insegurança, falta de tempo, sei lá. O problema é que você nem chega a
saber disso, então fica imaginando coisas.
Eu andei muito complicado nos últimos tempos, desde que voltei do meu
bem-aventurado tempo de férias. Ao chegar, tinha MONTANHAS de trabalho no
jornal; logo em seguida, me mandaram pro interior, fazer a cobertura de um festival
de teatro (e bota 10 dias nisso); logo depois, o Projeto-Cultur, aqui em PA, com
palestras duas vezes por dia — em seguida, o lançamento de meu livro. Some a isso
um estado emocional dos mais péssimos, e vai entender o meu silêncio.
Agora tô me reorganizando. Pintou uma coisa boa: no jornal, passei a
escrever duas páginas por semana (vai aí o recorte da primeira, falando rapidamente
sobre o seu trabalho), que posso fazer em casa, sem necessidade de ir àquela
redação odiosa. (Esta máquina está péssima, dispara — quando voltei de férias —
outro grilo — a minha máquina velha tinha sido ROUBADA — e eu sou um lixo
pra escrever à mão.) Bem, então atualmente tem me sobrado mais tempo, e passo
praticamente o dia inteiro lendo e escrevendo. Ô João, ando meio fatigado de
procuras inúteis e sedes afetivas insaciáveis, e a minha saída (uma saída gostosa)
tem sido essa: a literatura. Claro que me dá um puta medo de estar me
transformando numa criatura intoxicada de palavras escritas — tenho visões
futuras onde me vejo fechado num lugar com as parede cobertas de livros, quem
sabe gatos, um som e mais nada. Meu coração tá ferido de amar errado, você me
entende?
Eu te quero muito bem. Você diz que eu te chamei de “ressentido”, talvez eu
tenha usado a palavra errada. O que eu queria dizer é que, muitas vezes, você me
disse que várias pessoas, por mil razões, não gostavam de você. Daí senti uma falta
de autoconfiança. Ô João, você é um GRANDE ESCRITOR, fique sabendo disso.
Até hoje, você foi o único cara neste país mísero a dar uma perspectiva séria,
política, conseqüente à questão homossexual. E isso eu respeito muito. O meu
Testamento de Jônatas já rodou por meia Porto Alegre, está um trapo, a capa meio
rasgada, surrado das muitas mãos que o leram (continua sem ter nas livrarias daqui).
Além disso: a sua pessoa nunca me desagradou. Me comove e encanta a sua
fragilidade e a verdade com que você fala com a gente. Só que o nosso grande
papo, por circunstâncias externas, nunca pôde pintar. Primeiro, naquela entrevista
neurótica no Rio; segundo, naquela vernissage badaladérrima, onde não havia clima;
terceiro, naquele desprezível encontro de escritores, onde eu procurava disfarçar a
minha inadequação atrás de sorrisos forçados e frases falsas. Eu comigo mesmo e
num lugar legal não sou nunca assim como você me viu nessas três ocasiões. Mas a
sua sensibilidade captou o mais do mundo de mim. E o nosso grande papo fica na
roda, à espera desse momento imponderável onde a gente vai — tenho certeza —
se encontrar de novo.
Eu tô com vontade de sair de Porto Alegre, uma vontade desesperada.
Preciso correr risco, correr perigo, ser desafiado. Aqui, as coisas amornam a cada
dia. Não estou vendo possibilidade real. Como você, também já levei porradas
demais. Fomes, problemas materiais, não ter onde dormir, pobreza mesmo. Com
29 anos, já não tenho a energia que tinha aos 20 pra enfrentar essas barras. Então,
não sei. Deixo o tempo rolar, arrasto uma psicoterapia, cuido da horta, do jardim,
evito ir ao centro da cidade — na espera meio boba de que pingue a última gota
que me faça arrumar as malas e ir embora pra qualquer lugar mais pro norte. Não
sei quando. Tento arrumar um esquema-de-segurança. Mas a minha desesperança, e
o meu cansaço, boicotam a cada dia esses planos. Sei lá.
Mas, por favor, não ponha em dúvida a nossa amizade, a nossa identificação
que — para mim, pelo menos — é muito forte.
Queria muito te mandar um exemplar do meu Pedras de Calcutá, embora eu
não esteja contente com ele. Mas o editor me deu só dez exemplares, que já se
foram (era o contrato.., ai, os contratos!).
Obrigado pelo recorte da Folha. Vamos trocar coisas, conversar, transar —
se você quiser. Mas queria que você entendesse os meus poços escuros, os meus
becos — que me fazem mergulhar em silêncios às vezes longos. Me conta de ti.
Não devemos-nos perder, somos tão poucos, meu amigo. Cuide de você, não sofra
sem necessidade, Me queira bem. Te quero bem.
Um beijo grande do seu
Caio

PS — Estou fascinado com um poeta mexicano — Efraín Huerta, você conhece?
É incrível!

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