AUTÓGRAFOS, MANIAS, MEDOS E ENFERMARIAS

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Tem gente que não faz mesmo. Rubem Fonseca, por exemplo, que eu saiba nunca sentou em livraria para autografar. E não dá entrevistas nem se deixa fotografar. Lembro de certa tarde em Erlangen, interior da Alemanha, pleno verão de durante a Interlit, encontro internacional de escritores, em que se deixou filmar pela TV. Mas de longe, e sem dizer palavra. Caminhava no parque ao lado de sua tradutora Karin von Schweder-Schreiner, uma das mulheres mais bonitas que conheço. Rubem acha, com razão, que a cara do escritor e o que ele tem a dizer fora do livro não interessam. Interessa o livro, está tudo lá.
Dalton Trevisan também é assim, Greta Garbo perde. Já Lygia Fagundes Telles autografa, sim, mas passa o dia da noite de autógrafos nervosíssima, com uma fantasia obsessiva: ficar sentada sozinha ao fundo de uma livraria deserta, sem que apareça ninguém. Sempre aparece, claro: no caso de Lygia, multidões. Mas no próximo lançamento, a fantasia volta. Moacyr Scliar simplesmente esquece o nome da pessoa para quem vai autografar, algumas muito íntimas. Isso é freqüente com escritores, daí a moda de, na hora em que o livro é vendido, colocar um papelzinho dentro com o nome do leitor. Mas muitos, por distração ou por se acharem inesquecíveis, jogam fora o tal papelzinho. Constrangimentos indizíveis — como responde com um seco não a sorridente pergunta “e então, não lembra de mim?”.
Clarice Lispector apenas assinava seu nome. Nada de “para fulano, com simpatia”, coisas assim. E não dizia nada. Quando lançou o seu injustamente esquecido Tczntofaznum fliperama da Rua Augusta, Reinaldo Moraes mandou fazer um carimbo com seu nome. Érico Veríssimo autografava, mas dizia sentir-se constrangido como “um camelô de si mesmo”. Há autores que, de nervosos e emocionados, bebem demais no lançamento. Outros chegam atrasados. Outros (já aconteceu) vão, mas o livro não fica pronto. Nenhum, que eu saiba, deu uma de João Gilberto (o cantor, não o escritor NoIl) e simplesmente não apareceu no show.
A verdade é que noite (ou tarde, ou manhã, madrugada talvez não) de autógrafos é chata. Que graça tem ficar às vezes horas numa fila, estender um livro e receber de volta um “para fulano, cordialmente”? Claro que, se passarem décadas e o escritor ganhar o Nobel, vai ter valido a pena. Claro que os netos ou bisnetos de Machado de Assis (ele os teve?) devem achar ótimo ter herdado autógrafos valiosíssimos. Mas em geral não tem graça. Ou tem pelos reencontros, pelo coquetel, pelo auê, não pela coisa em si. Que em vernissage a gente olha os quadros, em pré-estréia teatral ou cinematográfica a gente vê a peça, o filme. Livro não, livro a gente lê depois, em casa. E às vezes nem gosta.
Para o escritor autografante, a coisa é confusa. Lançamento mistura enfermarias afetivas que de outra forma não se misturariam jamais — imagine reunir numa noite mãe, tias, psicanalista, colegas de trabalho, dentista, antigos professores, amantes ex ou não, vizinhos de apartamento, amigos de infância desaparecidos há 30 anos, etc. O liqüidificador emocional é intensíssimo. E há a solidão indivisível: em noite de autógrafos, emoções à parte, quem menos se diverte é o próprio escritor. Além dos turbilhões íntimos, precisa maquinar dedicatórias estonteantes, ser simpaticíssimo e lutar contra o impulso de sair correndo e gritando “me tira daqui!”.
Tudo isso para dizer — et voilà!que amanhã à noite vou estar na Livraria Cultura, ali no Conjunto Nacional, Paulista com Augusta, coração de Sampa, autografando as minhas Ovelhas negras. Será certamente menos chato que de costume, não por mim, sempre feliz de voltar a Sampa e rever os melhores amigos do mundo, mas porque vai ter também Cida Moreira cantando divinamente como só ela. Aparece lá. Tenho medo, pânico, como Lygia, da Livraria deserta e eu perdido feito pastor no meio de um rebanho de ovelhas desgarradas...

O Estado de S. Paulo, 23/7/1995

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