A Cida Moreira

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Gay Port, 28 de novembro de 1994.

Querida La Moreira,
Foi ótimo voltar da Alemanha e encontrar tua carta. Gracias, tchê. Desde
então tenho me programado pra responder, mas desde que instalei este microsoft
(chama-se Robocop, é um pônei laptop) mergulhei num labirinto de windows,
deletes, bits & informatizações do gênero. Agora que já tenho the Little Rob sob
controle* , posso escrever.
E te escrevo ao som de Marina “acho que vou resistir” (eu também!), nem
dez de uma manhã meio chinfrim, embora primaveril, nada de sol hoje. Tenho
acordado por volta de seis, seis e meia, fico cuidando do jardim — plantei muito, e
tudo brota, anêmonas, dálias, amarílis, lírios, margaridas, mas arrumei um inimigo
mortal: caramujos canibais, do mal, que adoram comer brotinhos tenros —, depois
sento em Rob para trabalhar, com a ajuda de Barbarella, a impressora. Desconfio
que um é a identidade secreta do outro, compreende? Reviso Morangos mofados para
uma nova edição pela Cia. das Letras, jurei que entregava before Christmas, mas
muy virginiano tenho ganas de mexer em tudo, preparo também A volta das frangas.
Neste, uma das protagonistas deve ser Cesária, a Enfrentativa que, não sei se
você lembra, foi a senhora mesmo que me trouxe de São Luís do Maranhão.
Cesária é morena, naturalmente, com um bom jubão crespo, óbvio, e um ar
antipaticíssimo — separatista, acha que o Maranhão é puro Caribe. De perfil,
lembra um pouco Sílvia Pfeiffer. No fundo é boa gente apenas orgulhosa quando
ouve um reggae larga tudo e deixa baixar um Bob Marley de frente. O problema é
que ela dança reggae com se fosse lambada, pode? Moreira, honey, ando muito
feliz. Não é insensato? E Marina canta, “e eu? Sigo latindo”. Eternamente Laika, mas sabe que todo esse bode me forçou a tomar decisões que adiava há anos, como
se fosse imortal. Adoro Porto Alegre; sempre quis voltar para cá, mais exatamente
para o Menino Deus, esta ilha verde separada do resto pela ponte da Ipiranga; @
sempre quis ter um jardim, sempre quis escrever o dia inteiro, sempre quis — bem
tia — acompanhar o crescimento de meus sobrinhos (três gremlins: Rodrigo, um
Virgo-copio de 11 anos, very enfrentative e informático; Laurinha, um sex symbol
de quatro anos, que fala corretissimamente com todos os esses e erres, desenha
muito bem e adora Frida Kahlo (“Tio Caio deixa eu ver de novo aquela mulher de
bigode?”); e last but not least, Felipinho, de ano e meio, com uma carinha
inacreditavelmente feliz e louco por frangas*, mal vê uma e começa a gritar
gangá-gangá!).
Criança, descobri, é mais curativo que AZT. Então estou assim, muy tia, e
daquelas tias solteironas carentes exploradas pelos sobrinhos, a quem cobre de
presentes e estraga completamente a a educação dos pais. Daquelas tias que ficam
na memória, tipo a Clotilde de Éramos Seis (que bela atriz Jussara Freire, hein?).
Mas como eu ia dizendo, agora que a saia-justa-de-couro-cru-sem-fen da-em-nesga
pintou, é hora de fazer tudo que sempre quis. E é maravilhoso ver que Tudo Que
Sempre Quis é simples, belo, acessível, fácil, do bem. E precioso exatamente
porque pode ser fugaz. Comecei a aprender isso no hospital, continuo aprendendo.
E tô bem, fisicamente. Arrumei um médico ótimo aqui, é o guru das
positivas — tratou de Lori Finokiaro, a mais demente (eu adorava ela, era a
verdadeira Laurinha), trata de Alziro Azevedo, o cenógrafo favorito de Luiz Arthur
Nunes, do namoradinho de A., e muitos mais (Gay Port, boa Scorpio que é, é
também muito positiva...).
Ontem levei um exame de sangue: aleluia, a anemia foi-se! Recuperei peso, as
cicatrizes desapareceram a golpes de própolis e lama de Araxá, Cecilia Niesenblatt
me trata com florais alucinantes, remexer na terra me dá a energia que falta. Et voilá:
cuidado comigo que ainda encherei a cara no réveilion do 2000, axé!
Quando leio ou vejo Sampa/Rio pelos jornais e TV, me dá um enorme alívio
de não estar mais aí. SP virou duas, no mínimo — uma Haiti, outra Miami. A
porção Haiti está nas ruas, basta sair e você esbarra nela; a porção Miami nos
segundos cadernos dos jornais. Oh Deus. E agora com Mano Covas vai ficar ainda
mais fake... O Rio, no comments. Ontem me deu vontade de chorar quando vi os
tanques pela cidade. E aquele número de telefone que você pode dedar bandidos?
Alemanha nazista perde. Rezar adianta? E o que se pode fazer, yo creo,
como diria Caetano Iglesias (ou Julio Veloso?).
Mas é isto. A Alemanha foi sweet, com direito a bosques dourados de
outono, Dulce Veiga com boas críticas e já entrando em segunda edição, Ray-Güde,
a fada madrinha, perguntando por vosmicê, muitas vaidades literárias e também
gente do bem em volta (Sérgio Santana, Ignácio de Loyola, Lygia, Ivan Angelo,
Zuenir Ventura). Fiquei inseguro com a saúde — o frio começando, aquele entra-esai
de ambientes superaquecidos —, melhor voltar. E agora com Robocop, que
também tem fax e modem (ainda não instalados), mais a TV a cabo chegando, ah
não quero mais sair do Menino Deus, Hoje deveria estar em Viena, mandei um
vídeo. E o admirável mundo novo, baby...
Nossa Betty Boop particular sei que está linda — e certamente enfrentativa:
te prepara para a adolescência, meu bem, e todos aqueles rapazes ciscando em
volta... Dá um beijo nela, que não deve lembrar de mim, e a quem perguntar por
mim diga que estou assim um tanto camponesa, calos nas mãos por causa da
enxada no jardim, mas sempre umas gotinhas de Paloma Picasso no banho de
descarrego. Please, send me a letter, fique feliz e — catso! — me um cassete de
você cantando Xico B., tá prometido há anos, o Natal vem chegando.
Tenho acordado cada dia com uma cantora, andei apaixonado por Zizi Possi
cantando Bom dia, hoje foi Marina, vezenquando Cássia Eller (com restrições) —
mas deixei todos os teus discos em SP (Gil tá mandando um carreto).
O mais são beijos neste negrito, porque apertei alguma teda errada, oh doido
deus das máquinas! Te quero feliz, cheia de vida, alegria, energia, amor.
Bacio caldo
Caio F.

PS — Se encontrares o velho e bom Herton Roittman (nunca soube quantos tês e
enes tem o nome dele), dê lembranças minhas, OK?
PS2_[...]
PS 3 — Vês que informático chinfrim me saí? Preciso tocar o papel com as mãos!

* Será genético?
* Ledo engano!

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