A Hilda Hilst

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Porto Alegre, 27 de março de 1973.

Hilda querida, talvez esta seja uma carta de despedida. Mas não se assuste, é
que aconteceram alguns imprevistos e resolvi embarcar para a Europa em seguida,
fim de abril ou começo de maio. Vou com Augusto, um amigo antigo — o mais
antigo que tenho —, ainda dos tempos de adolescência, em Santiago, uma pessoa
ótima. Creio que vamos por um avião de Aerolineas Argentinas, o mais barato da
temporada, também porque não temos muito dinheiro e temos que ir logo para a
Suécia, pegar a temporada de trabalho, que começa em maio — provavelmente dia
28 de abril. Ainda tem toda a encheção de saco com papéis e mil transinhas,
portanto não marcamos nada. Mas vamos de qualquer maneira. Meus planos são
fazer uns 1.000 dólares na Suécia para depois viajar um pouco e, em setembro,
fazer algum curso, talvez em Paris, onde tenho dois amigos lecionando na
Sorbonne. Eu estou tranqüilo e sinto que tudo vai sair bem, porque é exatamente a
minha hora — mas de vez em quando tenho umas dorzinhas de barriga, você sabe.
Estou um pouco chateado com você. Há muito tempo, uns dois meses,
mandei para você um recorte de jornal, com uma matéria minha sobre o Lúcio
Cardoso, onde eu falava em você. Sei lá se chegou ou não, mas de qualquer maneira
acho que você poderia ter escrito. E uma coisa que me dói muito, esses seus
silêncios. Sei — claro — que você deve ter problemas bastante sérios, mas uma
carta de vez em quando não custa nada e, às vezes — quem sabe? — talvez até a
gente pudesse ajudar. Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre
foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada — apenas me ferem
muito esses teus silêncios. A sensação que tenho é que você simplesmente não está
a fim de transar muito — e cada vez que tomo a iniciativa de escrever, é sempre
meio tolhido, sem naturalidade, com medo de incomodar, de ser indesejável. Não é
uma coisa agradável. Seja como for, continuo gostando muito de você — da
mesma forma —, você está quase sempre perto de mim, quase sempre presente em
memórias, lembranças, estórias que conto às vezes, saudade. E se é verdade que o
tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem. Eu
não gostaria de acreditar nisso.
Aconteceram coisas bastante duras nos últimos tempos (muitas coisas boas,
também). Não vale a pena contá-las, mas a conclusão, amarga, é que não há lugar
para gente como nós aqui neste país, pelo menos enquanto se vive dentro de uma
grande cidade. As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas,
coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A
gente vai ficando acuado, medroso, paranóico: eu não quero ficar assim, eu não vou
ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. Não tenho grandes ilusões,
também não acredito muito que por lá seja o paraíso — mas sei que a barra é bem
mais tranqüila e, enfim, vamos ver. Acho que o mundo está aí pra ser visto e
curtido, antes que acabe. Vou de consciência tranqüila, sabendo que dentro de todo
o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto.
Por uma carta tua, suponho que teu livro deva ter saído. Se fosse possível, eu
gostaria que me mandasses uns três ou quatro: pretendo transar algumas editoras
por lá, e podia encaminhar o teu livro a alguma, você é que sabe. Tenho alguns
amigos escritores por lá, que devem estar mais ou menos por dentro das transas
editoriais.
Quanto ao meu, ainda não soube o resultado do concurso de Brasília, que
deve sair por esses dias. Em todo caso, mesmo que não ganhe nada, será publicado
pelo Instituto Estadual do Livro, quero deixar tudo bem encaminhado. Achei uma
epígrafe ótima, duma letra do Gilberto Gil para uma música chamada Zooilógíco,
assim: “Eu sou o menino que abriu a porta das feras/no dia em que todas as
famílias visitavam o zôo”. Não é uma glória? E o livro é exatamente isso: a
violência e a loucura soltas para grilar os bempensantes. No momento, acredito
muito no grilo como arte, não sei se você entende.
Outra coisa, sobre teu livro: desta vez podias fazer uma boa divulgação.
Além dos críticos de SP e Rio, acho que devias mandar para o pessoal do Suplemento
de Minas, que é muito bom: Sérgio Sant’Anna, Jaime Prado Gouvêa, Angelo
Oswaldo de Araújo Santos, Duílio Gomes e, principalmente, Luiz Gonzaga Vieira,
que é um ótimo crítico. Aqui em Porto Alegre também há alguns críticos
interessantes, se você tiver interesse, eu posso mandar nomes e endereços.
Falar em endereços, lembrei de duas pessoas conhecidas tuas que moram na
Europa: uma é aquela moça, filha duma mulher fantástica, não me lembro o nome
(Cléo?), que mora na frente do edifício Itália — acho que o nome da moça é
Sapinho (apelido); o outro é aquele rapaz compositor, parece que José Antonio de
Almeida Prado. Caso você lembrar de mais alguém, eu gostaria de procurá-los por lá.
Hildinha, acho que é só. Ainda tenho que ir ao centro fazer potes de coisas.
Por favor, me escreve antes que eu me vá. Nem que seja um bilhetinho. Gostaria
muitíssimo de levar, sei lá, a tua bênção, ou uma força qualquer — boas vibrações.
Dá, por mim, um grande abraço em Dante, quando o vires, em la Soininem (diz a
ela que vou à Finlândia, em sua homenagem) e em Zé Luis (o avião que vou fica
em Madri). Um beijo do sempre seu
Caio

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