PARA UMA COMPANHEIRA INSEPARÁVEL

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Em Gramado, o Festival de Cinema; em Passo Fundo, a Jornada de Literatura: uma semana de festas no Rio Grande do Sul. Não para mim, que não fui convidado para nenhuma das duas (talvez pensem que já morri?), e mesmo que fosse, quase certamente não poderia ir. É que embora still alive, arrumei uma inimiga poderosa. A Tosse, eu a chamo, assim mesmo, com maiúsculas merecidas, pois já dura uns quatro meses e não tem nada, absolutamente nada que a cure.
Começou, que eu lembre — e essas coisas a gente nunca lembra bem, começam discretas, quase imperceptíveis —, lá por maio. Foi logo depois de uma gripe e tão generalizada que tinha também um pouco de sinusite, rinite, otite e se outros ites existem no aparelho respiratório, essa gripe certamente também tinha. Tudo foi passando aos poucos. Ela, a Tosse, não.
Xaropes dos mais modernos àqueles mais clássicos, tipo mel-guaco-agrião, a outros feitos em casa, como uma indescritível mistura de abacaxi com alho e limão, foram perfeitamente inúteis, gotas jurássicas (Binelli) não adiantaram nada. Gargarejos, diminuir radicalmente e até, em certos dias, cortar cigarros; dormir em posições exóticas, meio sentado; exercícios respiratórios — tudo, tudo inútil. E chapas no pulmão — meu Deus, uma tuberculose, uma pneumonia: nada. Impávida, a Tosse continua.
Traiçoeira, inadequada, vem principalmente à noite. Tarde da noite, como entidade do mal que é, lá pelas quatro, cinco da manhã, quando faz tanto frio que seria suicídio sair da cama. E não passa. Procuro compreendê-la — de onde brota — para, quem sabe, com algum tipo de postura conseguir impedi-la. Mas é incompreensível, vem sem lógica, seca, constante, às vezes parece que do lado esquerdo da garganta, e a qualquer hora do dia, caminhando, sentado, lendo, comendo. Já não posso ir ao cinema, tenho pena de quem senta perto (ou mesmo longe, ela é poderosa), muito menos ao teatro (já pensou, um acesso desses durante uma pantomima?). Show de hardrock, talvez, mas a idéia não me atrai, e também não tem havido nenhum interessante. Às vezes, não consigo sequer falar ao telefone. O remédio é ficar subindo, descendo as escadas de casa. E tossindo, tossindo.
Há também a dor, o esforço muscular para expulsar algo que não existe (é seca, já disse, não há mucos, catarros, gosmas assim); faz doer a barriga, as costas, os ombros. Portanto, mesmo quando ela, a Tosse, não está, a lembrança dela continua estando lá. E se de repente percebo, felicíssimo e espantado, meu Deus, há uns dez minutos não tusso, ela imediatamente volta. Claro que já considerei a possibilidade de ser psicológico. Digamos que seja. E daí? Continuo tossindo.
Meu médico diz que a causa é uma só — chama-se Porto Alegre, talvez uma das cidades com um dos piores climas do país. Principalmente em agosto, quando as paredes vertem água de tanta umidade, não há sol, o mofo se infiltra e as casas geladas transformam-se numa espécie de Disneyworld de ácaros. Trata-se portanto de atravessar agosto. Falta pouco. Prometo ser forte.
Prometo mesmo? Não garanto, a verdade é que nas últimas semanas não tenho conseguido. Vejam só, por exemplo, o assunto que arrumei para a crônica de hoje. Mas é que se não falasse disso não conseguiria falar de mais nada. Nem mesmo do mal que ACM está fazendo ao que resta de prestígio (resta algum?) a FHC. É que nada mais me interessa além da tosse. E se você acha que estou insuportavelmente chato, imaginem eu mesmo, o que não tenho achado...

O Estado de S. Paulo, 20/8/1995

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