PARA LEMBRAR TIA FLORA

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Eu me lembro: mal apontava novembro, antigamente, eu e meus irmãos ficávamos exaltados feito as pitangueiras que dão frutos nessa época. Era quase hora de o Pai pegar o carro e partirmos em férias para Itaqui, para a casa de Vovó. Isso depois que houve carro na família (o mais famoso foi o “Morcegão”, gigantesco Chevrolet anos o, tipo filme de gângster). Antes íamos de trem, baldeação em São Borja e vezenquando pouso na casa de Tio Marciano (Ciano), leitor e pescador inveterado, de claros olhos azuis, que morreu cedo demais. Mas isso é outra história.
Nas madrugadas de estrelas tão pálidas que, se você piscasse os olhos, de repente não estavam mais lá, saíamos cedinho de Santiago. A viagem: gauderiada brabavia Alegrete, atoleiros na chuva, na seca a desértica travessia do Silvestre, muros de pedras com áridos lagartos. Pampa, budismo límpido de 360 graus de horizonte, raros capões no meio do campo, avestruzes, perdizes, preás, quero-queros, casas de joão-de-barro nos fios, alvas garças pelos açudes. Na soalheira, fazíamos piquenique à sombra de algum mato, à beira de claras sangas, toalha xadrez na grama, pão feito em casa, frango, uvas, não sei mais quê. Éramos sete: Pai, Mãe, cinco irmãos — eu, Gringo, Felipe, Márcia e Cláudia, uma escadinha. Todos loucos pelo que estava chegando.
E o que estava chegando era Maçambará, onde viviam Tia Florinha e Tio Altivo, ou mais tarde a fazenda do Espinilho, da Swift, onde Tio Altivo trabalhava. Pousávamos ou mateávamos e seguíamos para Itaqui, e logo ao chegar Vovô Aparício pegava no colo o mais novo dos irmãos e fazia o clássico batizado da família, cantando: “A casaca da mulata foi comprada à prestação/ com dinheiro do meu bolso, dado de bom coração...” O taquareiro, o poço com o ano de 1886 gravado a prego na pedra, travessias de chalana com Vovó para as compras em Alvear, cidade fantasma, cadeiras na calçada ao anoitecer, a fresca vinda do rio. E o céu imenso, tão estrelado que bastava fixar olho num ponto negro e zás! lá vinha estrela também onde parecia puro negro vazio.
Mais tarde Tia Florinha mudou-se para Itaqui. Trabalhadeira, andava sempre com um pano de prato no ombro, outro de limpeza na mão calejada de lavar, passar, cozinhar, costurar, bordar, arear. Numa época muito pobre chegou a morar em rancho de chão de terra batida. Comentavam com admiração: “O chão da Florinha chega a brilhar de tanto que elavarre!” Fronhas brancas imaculadas, lençóis cheirando a ervas, o terno de linho de meu primo Sérgio, o Dedé, engomado e passado para o Carnaval num ritual de pelo menos uma semana. Bela, a Tia Flora, nariz fino, aristocrático, olhos sabidos, sempre rindo. Mas brava, uma famosa veia no longo pescoço (dizem que “das Loureiro do Iguariaçá”, estirpe tirana das mulheres da família de minha mãe) que quando latejava... Impunha respeito, até o marido só a tratava por “Dona Flora”. Quis estudar, não pôde. Não usava maquiagem, nunca pintou os cabelos. Vaidade alguma, além do sabonete Maderas do Oriente. Fé e fibra, guerreira, ficou anos na cama depois de vários derrames, sem se entregar. Além do Dedé e Joir, grande amigo de minha adolescência, tinha a Nara Claudina, que cuidou dela com amor até o fim.
Pois Tia Florinha, Ana Flora Loureiro Nunes, morreu em Itaqui na madrugada desta segunda de Carnaval, aos 74 anos.
Não vai virar nome de rua nem praça. Valorosa, pertencia àquela raça da Bibiana Cambará do Érico. Por acaso ou escolha, coube a mim receber a notícia. Comecei a chorar, mas logo fui arrumar a cama, fazer café, limpar o jardim, varrer a calçada. Como ela faria. Na branca madrugada, a Oriente vi uma estrela enorme brilhando. Pisquei: já não estava mais lá. Devia ser Cronos Saturno, o Tempo implacável ascendendo em Peixes, signo dela. Ou a própria Tia Flora, quem pode provar que não?

Zero Hora, 4/3/199

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