A Luiz Fernando Emediato

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Porto, 9. 5. 76

Luiz Fernando Emediato:
obrigado pelo interesse. Também estou sacando você há muito tempo,
contos e poemas publicados em jornais e suplementos. Boom ou bim, também não
sei, falso populismo, undergrounds que tomam Chivas Regal (como diz Roberto
Drummond). Como você; detesto discutir. Mas do seu trabalho fica sempre um
gosto de coisa quente, viva, jovem. E eu gosto.
Aí vai esse conto para a Inéditos. E das minhas últimas coisas. Ainda não vi a
revista por aqui, mas Lucienne Samôr — grande amiga, excelente escritora —
mandou um número. Capa de primeiríssima, James Scliar — um quixote no meio
do lixo tecnológico? Andei lendo alguma coisa, gostei do seu conto — seco, com
um final grilante; gostei de Cicatrizes, do Ratton, me deu vontade de dirigi-la; gostei
de Wander Piroli. O resto ainda não li.
Falar em Piroli, ele tinha mandado me pedir um conto pra Inéditos. Eu ia
mandar, tava só esperando uma folguinha, que me pintou hoje. Mando diretamente
pra você.
Andei mostrando a revista pra algumas pessoas daqui. Todo mundo gostou.
Vou tentar agitar o povo pra mandar colaborações. Já dei toques pra Jane Araújo,
Sérgio Caparelli, mais Valdir Zwetsch e Nei Duclós, que estão em São Paulo.
Gostaria de mandar um exemplar do Ovo pra você, mas esgotei há muito
minha quota de 50 exemplares e, na editora, me dizem que tá esgotado (não sei bem como, já que a distribuição foi uma merda). Segunda edição? Você sabe como
são essas coisas... Forças! Mas vou ver se encontro algum, me dê algum tempo,
ando meio ocupado demais. Não tenho — com a graça de Deus, nem terei —
mulher & filhos pra sustentar, mas um psicanalista que me sai tão caro quanto.
Uma estréia teatral marcada pro dia 13, potes de free-lancers, aulas & transações.
Ah: não conheço a Silêncio — será bem-vinda.
Até outra, um grande abraço do seu
Caio Fernando A breu


Porto, 6.10.76

Emediato, amigo:
cheguei em casa do jornal e tinha uma coincidência curiosa e agradável —
uma carta do Julio Cesar, outra do Pellegrini, outra sua. Julio Cesar tinha mandado
um telegrama sobre a transação com o Pasquim: eu não acreditei e continuo não
acreditando muito. Sou meio cético com essas coisas, talvez os deuses pasquinianos
tenham dito que sim, com a intenção de enrolar-enrolar ad infinitum, como de
costume. Mas como sou também paranóico e inseguro até as raias da demência
(gosto muito desta palavra), espero que seja verdade. Principalmente porque
merecemos, não é mesmo? Falando sério: seria muito bom (eu acho é que não estou querendo me entusiasmar muito, como tenho vontade, com medo de um
desmentido). Deixa andar. Forças!
Sobre minha peça — tudo bem. Ela recebeu um dos prêmios de leitura do
SNT de 1976; tem sete títulos: Pode ser que seja só o leiteiro lá fora; Vamos fazer uma festa
enquanto o dia nao chega?; Você tem certeza que são mesmo 10 para as sete? Uma visita ao fím
do mundo; The Squatters; Luxúria seminua ou Yo no creo, pero... Ainda não foi lida, deve
ser agora no fim do ano. Um grilo: eu pretendia encená-la o ano passado, já tinha
teatro, data de estréia, equipe etc.: foi proibida, no todo ou em partes, pela Censura
Federal. Para ser publicadas acho que tudo bem, não sei — mas para as leituras
creio que haverá problemas. Só não mando imediatamente porque não tenho
nenhuma cópia, questão de apanhar uma com um amigo, em seguida. Mando logo,
con mucho gusto.
Inéditos chegou aqui, sim, e está vendendo bem. Não sei os números ao certo,
mas outro dia fui na Coletânea para um lançamento e, entre duas cachaças,
perguntei como ia saindo: numa boa. A Paralelo deve ser lançada na próxima
semana, mando pra você. Outra coisa: mande material, dê o toque pras pessoas, a
gente tá a fim de gente de outros estados para não provincianizar muito.
Trabalho: hoje fiz — SOZINHO — DUAS páginas do jornal. Repórter,
redator, copydesk, editor — só faltou mesmo a diagramação e a fotografia. Fui pra
lá às 9 da matina, cheguei em casa quase 10 da noite. Ufa. Mas sabe que eu gosto?
Acho ambiente de redação deliciosamente neurótico. E, sei lá, o contato
obrigatório com a palavra, todo santo dia, tá me fazendo escrever muito: saio de lá
e venho pra casa escrever minhas próprias coisas. E tenho gostado dos resultados
— estava bloqueado há uns seis meses. Também pintam coisas ótimas, como hoje,
José Luiz Gomez, diretor de Mockinpott e Woyzeck, premiado no último festival de
Cannes, como melhor ator. Contou que Georg Büchner, o autor de Woyzeck,
escreveu um manifesto político, em linguagem bíblica, onde Deus criou os
camponeses no quinto dia e os nobres e aristocratas no sexto. Dai foi e disse a
estes: “Usai de todos os animais que cobrem a terra, inclusive os camponeses...”
Também fico cansado, vampirizado. Mas, talvez pela educação que recebi e
toda aquela estória de “o-trabalho-dignifica-o-homem” ter ficado cravada muito
fundo no meu subconsciente, no fundo da maior exaustão sempre descubro um
prazerzinho. Que pode ser também masoquismo puro e simples, ou o fato de ter
ficado sem trabalhar quase dois anos, e portanto estar desintoxicado e aproveitando
as batalhas de agora para baixar do vôo louco que dei. Sei lá. Mas pinta seguido,
uma fadiga um vermezinho roendo e fazendo perguntas como “pra-quê? pra-quê?”.
Meu irmão, a gente tem que descobrir maneiras — sejam quais forem — de ficarmos
fortes. Paranóias de lado, é como um complô para que a gente mergulhe num fazer
neurótico de coisas, ansiosamente, sem tempo para nós mesmos e as nossas
ficções. Para que a gente desista, todos os dias. Você sabe que não devemos, que
não podemos e, principalmente, que não queremos. Eu não sei se um dia as coisas
realmente mudarão, mas procuro em tudo que escrevo (que é o meu jeito de agir
sobre o mundo), colaborar de alguma maneira para que essa mudança venha. E
logo. Você sabe, estou saindo de um momento muito escuro, então tenho
procurado não deixar que as minhas dores pessoais — do meu ponto de vista:
enormes — interfiram no meu viver objetivo. As vezes afundo no trabalho e
esqueço que gostaria/ poderia estar agora mesmo em Marrakesh, por exemplo. Mas
prefiro pensar que vale a pena. Eu tenho que pensar que vale a pena.
Fiquei curioso com a sua autobiografia-reveladora-e-bandeirosa, amanhã mesmo
vou comprar. O título do conto é lindo. Tenho um pôster velhíssimo de Marilyn
Monroe aqui na porta do meu quarto, e agora mesmo olhei para a esquerda e vi os
lábios úmidos abertos num sorriso infantil, drogado e sensual. Uma coisa: dos
últimos contos que escrevi tem um que acho publicável — você sabe como ou
quem eu poderia transar na Status? Gilberto Mansur? Mandar na carinha, me
apresentando ou precisa pistolão, esses troços?
Minha intenção, também, era escrever um bilhete — foi saindo, saindo e veja
quanto blá-blá-blá. Tudo bem, melhor assim. Teve um tempo que escrever UMA
linha era uma barra.
Se nossa antologia sair mesmo provavelmente vai ter rebus no Rio, aí
certamente nos conheceremos. Vai ser bom. Dê notícias também, mando a peça
logo que apanhá-la e tirar uma boa cópia, revisada. Não se preocupe demais.
Relaxe. Navegue. Qualquer coisa, prende o grito, chê. Estamos por aqui.
Um abraço do seu
Caio.


Porto, 8.3.77

Emediato, companheiro:
Outro dia Julio Cesar ligou pro jornal e batemos um bom papo, fiquei
sabendo de todas as novas — desde o lançamento da antologia, programado para o
fim de abril, até a remessa das Edições Marginais, pelo Jeferson (que não chegou
mesmo, não entendo). Tudo bem, então, tudo andando.
Você me dá belas notícias — livros, editoras (Atica e Alfa-Omega são
ótimas) — com exceção do filme, não é? Creio que você já havia me escrito
qualquer coisa a respeito — Eduardo Escorel creio que foi o diretor de Lição de
amor — e semana passada li no Jornal da Tarde algo a respeito do filme e seu nome
não estava lá. Estranhei. Sacanagem ou irresponsabilidade, seja como for, uma
pena.
O livro que aprontei, em princípio, tem editora. Deve ser mesmo a Globo,
que tem uma distribuição péssima — mas eu tenho uma preguiça enorme de
batalhar outra. Durante o carnaval trabalhei bastante, houve um bom período de
folga — mas agora ficou duro de novo. Trabalho, trabalho, trabalho. Recomeçaram as estréias, o movimento teatral todo e, ainda mais, como agora, depois de quase
sete meses de trabalho, resolvi “endurecer” um pouco minhas críticas (que usavam
muitos “panos quentes”, em função da minha insegurança, principalmente) tenho
tido problemas e mais problemas. Desde crises de consciência (sempre me culpo
por possíveis injustiças) até situações desagradáveis com pessoas da “classe”.
Enfim, tudo isso me esgota muito e me dá uma vontade danada de ir embora. Para
qualquer lugar, desde que seja para longe do Estado. Completei um ano de terapia
e, com a loucura já mais ou menos sob controle, talvez até o fim deste ano me sinta
em condições de partir. Coisa que, objetivamente, fica cada vez mais dificil...
Forças!
Tô mandando procê o número 3 da Paralelo, que saiu hoje — o primeiro pós-
Censura Prévia. Não houve grandes problemas para este número, cortaram pouca
coisa. Mas a barra de grana da revista é que tá pesada. E pessoas desanimando,
caindo fora do barco. Sei lá, não acredito que vá além do número 5. Uma pena.
Parece que os nanicos entraram quase todos em crise. E agora olhei pro meu lado
direito e vi o recorte duma entrevista de Ernesto Sábato, com este trecho (sobre a
situação da Argentina) se aplicando tão bem ao Brasil: “Cuando un país está en
decadencia, como este; cuando un país está angustiado, como este (y le ruego que
coloque exactamente lo que digo); cuando un país está destruyéndose en todos los
sentidos, física y espiritualmente, como este; cuando un país há llegado al grado de
destructividad y auto destructividad, como este... Pois é.
Olhe, na cópia que você enviou do Manifesto Neo-Realista aconteceu um
engano: as duas folhas enviadas são cópias da mesma folha, entende? Isto é: as duas
são a segunda página do manifesto, pegando creio que o final do item cinco até o
oito. Portanto, não deu pra fazer uma idéia. Mas vou ser bem franco: eu realmente não sei. Sou cético, pessimista — acho que somos todos bons escritores, mas acho
também meio megalômano nos supormos a nata das natas, saca? Acho inclusive
uma atitude elitista. Somos bons, mas somos jovens e só o tempo é que pode dizer
se a gente vai conseguir, pelo menos, continuar escrevendo. E às vezes, confesso,
até mesmo isso me parece muito difícil. Então não sei, companheiro. Também
tenho uma dificuldade incrível para me definir. A primeira frase, “contra o
individualismo”, de cara já me grua. Eu não sei MESMO se eu sou contra o
individualismo. Em processo terapêutico, e com uma formação literária onde as
influências maiores creio que foram Lispector, Virginia Woolf, Proust, Drummond,
Pessoa, por aí — não sei se posso afirmar isso, me entende? Pelo menos agora, eu
não me sinto seguro. Por outro lado, há itens inteligentíssimos: “,.. literatura
nacional, mas não xenófoba, populista ou demagógica. Assimilar e deglutir de
forma crítica o que, não sendo nacional, for universalmente necessário” — por
exemplo, acho perfeito. Quem sabe uma reformulação, não sei — também
precisava ler a primeira parte, não é? Mande, por favor. Se vocês acharem que não é
possível reformular, vamos supor, e eu discorde de muitas outras coisas, vai sem o
meu nome, por mim tudo bem.
Em abril, irei até o Rio, seja como for. Eu tinha inclusive direito a uma
semana de férias que aproveitaria agora em fevereiro. Pintaram mil caronas para o
Rio e eu segurei, pensando justamente no lançamento, “economizando” as
feriazinhas. Julio Cesar já falou que posso ficar lá. Uma vontade INCRÍVEL de
conhecer vocês. Curioso o que você diz do Pellegrini, é de se conferir
pessoalmente. “Seguro e saudável” — acho que sobre mim você poderia dizer
“inseguro e doentio”... Mas tenho, também, meus bons momentos. Só não suporto
cara machão (também não suporto mulher fêmea demais), gente barulhenta, agitada
e neurótica. Um mínimo de silêncio, um pouco de ambigüidade (ai, a formação
européia...).
Tenho lido muito. Saí duma fase de ficção-científica para os contos
completos de Andersen (uma higiene mental de primeira ordem) e, pra reagir, caí
fundo nas Memórias do cárcere, de Graciliano. Tenho também escrito coisas novas,
depois de um longo tempo, retomando. Alguns contos, uma novela ainda em
planos e notas (se pudesse me dedicar por uns três meses só a ela...), uma peça
teatral. Farrapos, molambos. Tão dificil.
Olha, até o fim do mês talvez mude daqui. O meu companheiro vai morar
com outros amigos, numa casa, e eu estou em dúvida entre ficar com este ap. ou
batalhar, também, uma casa. O ap. é legal, mas pelas janelas você só vê paredões de
concreto (o prédio do INPS do lado faz com que eu vezenquando me sinta a
própria “rainha dos cárceres da Grécia”), cultivo plantinhas e tal — mas sinto
uma SEDE de pisar descalço na grama, barulhinho de grilo, sol, terra. Além disso o
ap. fica em pleno centro, vantajoso dentro dumas, pelos contatos, locomoção e tal,
mas ALTAMENTE neurotizante — decibéis altíssimos, sujeira, roubo, miséria.
Dói pra caralho. Mas o que eu ia dizer, e comecei a me queixar, é que seria mais
seguro, então, você mandar pro endereço dos meus pais. Certo? Vou lá no mínimo
uma vez por semana.
Acho que é isso aí. Diga pro Jeferson que estou escrevendo pra ele. Vai logo.
Um abraço do seu companheiro
Caio

PS — Recebi uma Edições Marginais (um exemplar). Não cheguei a ler todo e uma
amiga minha carregou, Mary, fascinada pelo seu conto — que eu nem tinha lido
ainda. Achei excelente o Raízes, do Domingos. Poesia, simplicidade síntese,
limpeza: lindo.

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