A Vera e Henrique Antoun

0

Abril de 1973

Vera/Henrique, meus queridos:
vamos nos ver muito breve, se vocês quiserem. É o seguinte: depois de uma
série de desantenações, resolvi mesmo viajar para a Europa, o quanto antes. Saí do
jornal e comprei uma passagem para o dia 28 de abril, num avião das Aerolineas
Argentinas, que sai de Buenos Aires, passa por aqui, pára no Rio e vai até Madri.
Ainda não me informei bem sobre isso, mas sei que ficaremos quase uma tarde
inteira no Rio (digo ficaremos porque vou com Augusto, um amigo, irmão daquela
outra Vera que esteve aí procurando a mesma). Então eu queria, se possível, que
vocês me (nos) esperassem no aeroporto, dia 28, sábado, Seria ótimo passar uma
tarde com vocês, antes de me ir.
Estou com planos bem definidos sobre a viagem, e um roteiro já elaborado
na cuca. Ficarei em Madri umas duas semanas, tempo suficiente para tirar uma
carteira internacional de estudante e curtir Bosch no Museu do Prado (talvez vá
também a Paris e a Genève, Suíça, onde mora um grande amigo). Depois vou para
Estocolmo, trabalhar uns três meses para ganhar um bom dinheiro — e aí não sei
mais. Acho que viajarei um pouco e catarei informações sobre cursos, já que meu
objetivo principal é estudar literatura e esoterismo (talvez até culinária, se pintar). E
a volta pode ser dentro de um mês, um ano, dez anos ou nunca — simplesmente
não sei. Quem sabe se não encontrarei uma princesa ou mesmo um príncipe
encantado por lá?
Não está sendo fácil lidar com papéis e filas hediondas para passaporte e
coisas assim. Ando cansado dessas transações e, à noite, só tenho vontade de
dormir. Estou pra ver aquele filme do Bodganovich com a Barbra Streisand há
umas duas semanas, e não consigo encontrar um descansaço físico pra fazer isso.
Mas a cuca tá legal, os parafusinhos no lugar, trabalhando muito bem e sem
nenhum curto-circuito. Sabe o que é? Tenho certeza que chegou a minha hora —
exatamente esta. Acho que dentro disso as coisas todas só podem sair bem. Porque
estou aberto, antenado, ligado e sabendo muito bem quem sou e o que pretendo —
sem ilusões enlouquecidas, a não ser as necessárias pra se curtir uma boa. Mas
estou acho que muito consciente, os pés bem plantados no meu elemento terra e a
mente fluindo como a água que habita a minha emoção escorpiana. Coragem tenho
de sobra.
E é isso aí. Consegui roubar uns minutinhos desse outono sem muita cara de
outono pra escrever a vocês, meio grilado com o que li no jornal há pouco, sobre a
prisão da Pink Wainer em São Paulo, num apartamento com potes de fumo e coca.
Por favor, é muito importante pra mim rever vocês dois antes de ir embora. Vera,
por favor não vá para Petrópolis ou Teresópolis nem mande desculpinhas
esfarrapadas que eu não aceitarei, a não ser que você esteja de cama, com uma febre
de no mínimo 50 graus. Henrique, em você confio. Sábado, dia 28 de abril, não sei
a hora, mas vocês podem telefonar pro aeroporto se informando. Caso pintar
desencontros, fiquem em casa que eu pinto aí, se der.
Um beijo em cada uma das quatro faces de vocês dois — quatro beijos do
seu argonauta Caio.


28 de abril de 73

Verinha/Henrique muito amados:
estou escrevendo no avião, depois do jantar. Foi demais lindo vocês irem até
o Galeão, eu confesso que não esperava. Quando me chamaram e disseram que
havia um rapaz com uns discos para mim, podia imaginar todo mundo menos
vocês. Foi tri. Até mesmo aquela situação absurda com aquele vidro HEDIONDO
nos separando. Mais os presentes. Aninha já devorou a Môníca — e estamos
guardando a cuca para o almoço em Madri.
Verinha, você está LINDA, com seus olhinhos de vaca jérsei. Vamos nos
casar na Finlândia (ou mesmo no Líbano, na Costa Rica, ou aqui mesmo)? Teremos
sete filhinhos com olhos de vaca jérsei e cabelos pretos-escorridos-de-índio. Ocê
topa? (A coisa + linda da partida foi ver vocês no Rio).
Henrique, quandoolhastebem-nos-olhos-meus tive o pressentimento que
você tem o QI de gênio. Foi tão forte a impressão que eu virei pra Ana e falei: “Tá
vendo o Henrique? Pois ele tem um QI de gênio”. Aí me lembrei que nunca tinha
visto o teu QI, mas tenho certeza.
O avião é um BARATO. Mil transinhas, no teto, por exemplo, teve uma
espécie de miniplanetário com as Três Marias e a Ursa Maior. Estou do lado da
janela, Augusto e Ana dormem do meu lado, envoltos em mantas argentinas. A
despedida em P.A. é que foi uma baita mão-de-obra. Nunca beijei tanto na minha
vida — cheguei a ficar com a boca seca. Tinha acho que umas 50 wonderfulpeople.
Pais e mães bodiados, é claro, conselhos e tal, aquelas coisas.
Parei um pouco pra olhar pela janela. São 11 horas. Dá pra ver a costa
atlântica lá embaixo, cheia de luzinhas, o mar — É LINDO — deve ser Recife ou
Salvador.
As pessoas que viajam — 160, conosco — são bem impessoais. Só tem um
homem má-ravilhoso, com pinta de mocinho de banguebangue italiano, mais um
moço com nariz arrebitado paquerando a Ana. Tudo falando espanhol. Adoro essa
língua.
Tentei ler um pouco Matadouro Cinco, Kurt Vonnegut Jr. (não percam o
filme) — mas não consegui. A minha cuca tá cheia da presença de vocês lá no Rio.
O vidro nem teve importância. O que eu queria mesmo era ver vocês ao vivo — e
isso eu vi. Crianças, vocês não podem imaginar quanto eu adoro vocês. E uma
coisa viva, forte, tranqüila. Um dia eu volto, ou vocês vão, então ninguém-podesaber-
o-que-vai-ser-até-o-sol-raiar. De todo mundo que conheci no Rio, só vocês
dois ficaram, e com muita força, muita. Sabe, sinto que começo a ser um cidadão
do mundo e que muito vou andar (tenho um Oxóssi viajador na cabeça) — mas em
qualquer lugar vocês estarão comigo, plantados em mim. GRRRR: vontade de
comer vocês dois com molho de chocolate.
Em homenagem a vocês acendi um incenso de sândalo — presente de Zali,
minha amiga gurú.
Bom, de Madri acho que escrevo mais. Beijos do seu
Caio

Em Madri: é uma cidade LINDÍSSIMA. Foi amor à primeira vista.

Ler mais »

0 comentários: