A Myriam Campello

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Porto Alegre, 7 de abril de 1970

Myriam querida, deveria ter respondido à tua “gentil epístola” há mais tempo
— mas houve uma série de problemas, inclusive mudança de apartamento, e só
agora posso dispor de uns minutos. Gostei de saber que estás bem e trabalhando,
apesar da portaria Leila Diniz. Sabe, no começo eu fiquei muito baratinado com a
coisa, não pensava que a repressão chegasse a tais extremos. Assumi então uma
posição bem radical, achando que submeter originais à censura seria compactuar
com o regime — depois, sei lá, comecei a achar que, já que a gente está aqui, o mais
acertado seria procurar fazer coisas, mesmo dentro de toda essa limitação. Afinal, o
evidente propósito do governo é obrigar todo mundo a meter a viola no saco. E
como ninguém está a fim de dar uma de herói, creio que a gente ainda pode tocar
alguma coisa com apenas a metade da viola dentro do saco. Ou pelo menos tentar.
Realmente, vou sair do “limbo dos inéditos” muito em breve. Meu livro (o
Inventário do irremediável) já está na gráfica, para sair em fim de maio ou começo de
junho. Antes disso, saio também numa antologia do novíssimo conto gaúcho, a ser
lançada até o fim deste mês. Você vê: tudo está engrenando aos poucos. Mas o
estranho é o que está acontecendo: sabe, eu pensava que ganhando um prêmio,
com livros a saírem ou já saídos, ia me dar uma fúria criativa (ou criadora) e eu ia
começar a escrever sem parar. Pois o que acontece é justamente o contrário: há
coisa de um mês, mais ou menos, não consigo escrever picas. Sei lá, parece que
toda essa responsabilidade pesa, bloqueia. reprime. Estou em plena crise, com um
outro livro de contos estacionado na metade, Idéias vagas para um romance e
aqueles tradicionais medos: ai, não vou guir escrever nunca mais; ai, tenho medo do
papel em branco; ai, não tenho mais nada a dizer; ai, ai, ai. Vamos ver até quando
vai isso.
Enquanto a crise não passa, ou “enquanto seu lobo não vem” — como diria
o Caetano — vou freqüentando a faculdade e levando como posso o meu
claudicante curso de Letras. Dia 15 devo prestar exames no Centro de Arte
Dramática, para o curso de Diretor de Teatro. Vou ficar com Letras pela manhã e o
outro curso à noite. Sempre tive vontade de fazer teatro, agora me decidi. Afora
isso, estou trabalhando com um amigo no texto de um show musical para uma
excelente cantora local; e com outro amigo no roteiro de um curta-metragem, onde
farei também um dos papéis. Como vês, estou bastante ocupado: o resto é ler, ir ao
cinema de vez em quando, bater muitos papos (a maioria furados, graças a Deus) e
dar uma que outra trepadinha.
Eu tinha vontade de dar um chego no Rio, em julho, mas não sei se vai dar
pé. A razão é óbvia: $$$ ou falta de. Precisava te ver de novo, e Nélida, e Ninita, e
Jacqueline — aqueles dias que passei aí foram tão bons.
Ah, outra coisa que eu queria te falar: semana passada estiveram aqui dois
caras do Rio, Luiz Antônio Barreto, da Simões Editora, e Flávio Moreira da Costa
(talvez conheças, diretor do suplemento jovem de O Jornal), ambos a fim de
encontrar gente nova para publicar. Fizeram vários contatos por aqui, inclusive
comigo, e achei o negócio muito bacana: eles querem publicar única e
exclusivamente autores brasileiros jovens — coisa raríssima e até meio
desconfiável, como vês. De qualquer maneira, me lembrei logo de ti. Por que não
tentas? Pelo que conversei com eles, a tua literatura é exatamente o tipo de coisa
que eles estão buscando. Eu estou pensando em dar o meu romance a eles, já que a
Carmem da Silva parece não ter conseguido mesmo editor. Fica a sugestão e o
endereço: é Luiz Antônio Barreto, rua Evaristo da Veiga, 41, sobreloja 203, Rio. O
telefone: 232-6629. Por favor, te compenetra e vai procurá-los. Eu fico uma fera
quando penso nas centenas de medíocres publicados e me lembro de ti, excelente e
inédita.
Estou mandando esta ainda para o endereço de Nélida porque não consegui
decifrar o endereço de Ninita, que hieroglifaste no envelope.
Morro de saudade de ti, do Rio, de tudo. Imaginando que estejas com
saudade de mim, mando esta photo: donti forgeti mai feice. Um beijo. Teu,
Caio

PS — Abraços e beijos para Ninita, Jacqueline e Nélida. Diz a ela que continuo
sem ler Fundador por falta de $ — e já estou cansado de insinuar que ela me mande
um exemplar autografado.

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