A Nair Abreu

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Sampa, 11. 8. 78

Querida mãe, tô sem tempo pruma carta. Mas tá tudo bem. Comecei hoje a
fazer psicodrama, tô contente. Olhe, por favor, não se preocupe com o $$$.
Mesmo. Tá tudo bem. Tô feliz com os 30: acho que fiz tudo do jeito melhor, meio
torto, talvez, mas tenho tentado da maneira mais bonita que sei. Até uma carta, vai
outro poema daquela mineira, a Adélia Prado, que eu já tinha mandado um pra
senhora. Pense nele quando a senhora tiver muitos problemas. E se poupe.
ENSINAMENTO
Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
“Coitado, até essa hora no serviço pesado”.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
Terminei a peça teatral que eu vinha escrevendo há dois anos. Chama-se Zona
contaminada. Voltei a escrever! Não vou parar nunca, por mais inútil que seja (e
talvez não seja). Beijos pra todos. Seu filho e amigo
Caio

PS — Mudou o número do telefone daqui: 64-76-54


SP 17.10.78

Querida mãe,
Já faz tempo que não dou notícias, por absoluta falta de tempo. Hoje resolvi
ficar em casa, também porque terça é dia do psicodrama, e eu sempre tenho
vontade de voltar pra casa depois. Cheguei e encontrei tudo muito sujo. A senhora
sabe, tenho horror de sujeira. Mas resolvi não limpar nada, como tenho feito. Tô
muito cansado de fazer sempre o bonzinho e o simpático. Isso — a bagunça —
somado a uma porção de outras coisas, tem me feito pensar muito em mudar
daqui. Acho que vou pra um hotel. Não queria, tenho medo de ficar muito só. Mas
tá sendo dificil demais conviver. Tenho aprendido coisas nesse tempo. Às vezes
tenho até medo de estar ficando meio duro demais. Sei lá. Mas tudo bem, nada de
grave. Dentro de um mês, no máximo, resolvo esta situação. Andei saindo bastante,
à noite. Tenho trabalhado demais o dia inteiro, daí é preciso refrescar a cabeça.
Ontem encontrei um diretor de televisão que está adaptando um conto meu para
um Caso especial na TV Cultura daqui, que é muito boa. Muita cascata, mas talvez
saia. Mãe, tô muito triste com este país que vai permitir que o Figueiredo vire
presidente. Hoje fiquei chocado com uns outdoors, esses cartazes enormes de rua,
com a foto do canalha e uma frase mais ou menos assim: “São Paulo apóia o novo
presidente. Nós também temos pressa”. Eu tenho muita vontade de ir embora do
país outra vez. Não sei, às vezes fico muito desorientado. Não estou tendo tempo
nenhum de escrever, nem condições, e é só isso que me interessa. Aí fico me
perguntando se vale a pena. Eu realmente não sei. Deixe pra lá, são problemas
pequenos. Espero que a senhora tenha resolvido aquele problema financeiro. E que
todos estejam bem aí. Andei pensando em passar esses feriados do começo de
novembro aí, mas bastou pagar o aluguel para ver que não dava mesmo. Se Deus
quiser, fica pro Natal e Ano Novo, vamos ver. Cuide bem da senhora. Por favor,
sai mais, divirta-se. Daqui a pouco o Figueiredo sobe e vai ficar tudo um horror.
Pior ainda do que está. Sinto muita saudade de todos, Receba um beijo do seu filho
Caio


São Paulo, 12. 11. 78

Querida mãe,
escrevi essa outra carta na sexta e, parece mentira, não tive tempo de ir ao
correio colocá-la. Hoje é domingo, e aproveito para escrever mais um pouquinho.
Estou me sentindo muito bem. Ontem fiz compras para o meu quarto: uma cama
maior, lençóis novos, cortina, almofadas — essas coisas. Aí não resisti e fiz o
segundo crediário da minha vida. Sou contra, mas que se há de fazer? Está bonito
aqui. O toca-discos funcionando, ontem comprei também uma mudinha de pau
d’água, que é uma planta linda — um tronquinho de árvore que dá uma folha
muito verde. Encontrei uma loja que vende cacarecos e comprei um negócio que
queria há muito tempo: um globo terrestre. Só não é enorme como eu queria, é
pequeninho — ficou engraçado porque os caras colaram um papelzinho com o
preço, e eu fui tirar e rasgou exatamente a parte da Sibéria. Então é um globo sem
Sibéria, que não faz muita falta, não é?
Mãe, vou mesmo no fim do ano — antes do Natal vou estar aí para ficar uns
10 dias e matar a saudade.
Outra coisa, vou lhe pedir um favor: soube pelo Moacyr Scliar que a Globo
estava à minha procura para pagar direitos autorais. Bem, escrevi a eles, mas não
sabia o número aí da Getúlio. Talvez por isso não responderam, acho que a carta
não chegou. Então eu pediria à senhora que desse uma telefonada para eles (fale
com Maria da Glória Bordini) para pedir essa grana. Dê meu endereço aqui e tal.
Mas por favor, não vá se incomodar, não precisa ir lá — só telefone e dê o
endereço. A Glória é minha amiga, é também uma pessoa maravilhosa. Aproveite e
peça a ela que me escreva, quando puder.
Vou aproveitar e cobrar também a editora aqui de São Paulo. Como sempre,
os gastos foram maiores do que eu esperava.
Fiquei muito magoado com o Celso — aquele amigo com quem eu morava.
Ele não agiu bem, acabou me devendo uns nove mil cruzeiros. Fiquei triste, mas ao
mesmo tempo acho que essas coisas servem pra gente aprender a conhecer as
pessoas. E tudo bem. Ele precisa mais que eu. Não quero guardar rancores.
Dê uma dica para as gurias: ouçam o LP novo das Frenéticas, Caia na andaia.
Ganhei ele de presente e não consigo parar de ouvir. E ótimo, divertidíssimo. Mas
quem andou caindo na gandaia fui eu: dancei a noite inteira de sexta e sábado. Tem
discotecas incríveis aqui. A do Dancin Day’s tinha até umas fumaças (gelo seco)
que pintavam no meio das músicas, ficava um negócio estranhíssimo. Um dos
maiores sucessos — veja que incrível — é Babalu, com a Angela Maria (de quando
eu tinha uns três anos de idade!).
Sexta-feira leram a minha mão (Maria Adelaide, uma amiga portuguesa,
entendida nessas coisas) e diz que vou ser rico e famoso, com uma vida muito
movimentada, viagens e mil coisas. Será? Hoje li no jornal que o depósito cai
mesmo em janeiro, para seis mil — aí vou começar a pôr em prática o meu plano
de passar o réveillon de 1979 em Nova York.
Apesar de tudo, tenho achado ultimamente a vida muito boa de ser vivida.
Ah: pensei o seguinte. Rofran vai tirar férias em janeiro, vou ficar sozinho no
apartamento, que é muito grande. Aí pensei: será que as gurias, o Felipe, ou mesmo
a senhora e o pai não queriam passar uns dias em São Paulo? Seria ótimo. Vão
pensando nisso. Se desse certo eu ficaria muito contente. Estou aprendendo a amar
muito esta cidade louca.
Fico por aqui. Beijos para todos. Seu filho
Caio


São Paulo, 30.11.78

Querida mãe,
Recebi ontem sua carta com o livro. Obrigado. Semana passada, tinha
recebido uma carta da Maria da Glória (que gostou muitíssimo da senhora, faz altos
elogios à sua elegância e simpatia — a Josefina é sua fã de velhos carnavais, que eu
sei). Incrível, mas ainda não tive tempo de ir ao banco retirar o dinheiro. Acho que
amanhã não venho trabalhar de manhã, para ver isso.
Estou escrevendo de manhã, na redação. Ainda estou muito impressionado
com um sonho que tive esta noite. Era um sonho ruim com as gurias: elas eram
crianças, ainda, que nem naquele slide muito bonito onde tem a Márcia com um
coelhinho e a Cláudia com um vestido acho que rosa. No sonho, elas estavam
doentes, hospitalizadas. Era uma coisa confusa, não lembro bem. Acho que depois
de ler a sua carta fiquei pensando nas duas estudando para o Vestiba, e daí me deu
uma certa pena. Não sei bem o que foi. Enfim, sonhos.
Mãe, tenho trabalhado muito. Não só na POP, que tem horrores de trabalho,
mas também peguei um free-lancer da Nova e outro, para uma edição especial sobre
a vida do John Travolta (já posso até responder naqueles programas de televisão
que dão bilhões em prêmios). Somado tudo, dá uns 10.000 além do meu salário.
Outra boa notícia: como não sou contratado, não teria direito a décimo-terceiro,
mas incomodei tanto (e eles não querem me perder, claro, estão me explorando
bem) que acabou pintando. Deve dar mais uns 10.000. Enfim: acho que pintará
uma boa grana para comprar uma moto. Tenho sonhado com isso. Ou quem sabe
um carro, vamos ver.
Tenho que lhe contar umas histórias ótimas: semana passada fui à maior
festa da minha vida. Tenho uma colega de redação, Mônica, e grande amiga, que é
muito rica e filha de um casal muito famoso na sociedade paulista, Abelardo e
Laurinha Figueiredo. Bem, eles deram uma festa de aniversário de três dias para a
Mônica, na casa de campo em Águas de Lindóia. Piscinas e mil mordomias. Entre
os convidados estavam Stela Splendore (viúva do Denner), Rosemary (a cantora),
Marina Montini (aquela mulata lindíssima), Wilson Simonal (um bagaceira) e —
adivinhe quem chegou no domingo? — PELÉ. O próprio. Parecia Hollywood.
Tiraram uma foto minha com ele, mas a irmã da Mônica me roubou. Foi incrível,
mas às vezes um pouco deprimente. Gente rica é muito entediada e ruim da cabeça.
Amanhã vou para o Rio, um amigo do Rofran foi viajar e deixou
a chave do ap. com ele, é em Ipanema, de frente para o mar. Acho que vou matar a
segunda-feira. Mereço, ando trabalhando demais, e não sei se posso dizer o mesmo
dos meus caros colegas. Então, quero mais é me divertir um pouco também.
Ah, já falei com o patrão sobre a minha licencinha no fim do ano. Tudo
certo. Pedi do dia 20 ao dia 2, mas estou pensando mesmo é em sair daqui lá pelo
dia 15. Vamos ver. Passo o Natal aí. O Ano Novo, não sei, porque tenho um
amigo, José Márcio Penido, que quer me dar outra festa de três dias no hotel de uns
parentes dele em Cambuquira, uma estação de águas em Minas. Se pintar, eu volto
pra festa. Meu Deus, quanta festa! Acho ótimo, deixa pintar. Acho tão bom ter
acordado a tempo... Como deixei a vida passar, trancado no quarto, mastigando
loucuras. Acho que o psicodrama tá me fazendo muito bem. Outro dia fiz uma
sessão incrível, fiquei umas duas horas falando — imagine — da Ivone Dri e
daquele Aero-Willys branco, forrado de vermelho, que o pai me deixava dirigir.
Fiquei muito preocupado com o resultado das eleições. Foi um banho. Acho
que tá acontecendo uma coisa boa, a oposição tá tão forte que o Figueiredo não vai
conseguir apertar muito, não.
Outra coisa que me deixou contente foi a vinda do Augusto no fim do ano.
Acho que encontrarei com ele em Porto Alegre. Soube por um amigo da gente que
ele separou-se da Lorraine, parece que ela foi para a Índia. Segundo outros amigos
da gente, ela era um demônio, possessiva e mal-humorada. Sei lá, vai ser ótimo
revê-lo.
Quando eu for, vou levar trabalho, preciso traduzir duas peças do espanhol.
Não sei se vou conseguir, mas vou tentar. Uma será montada pelo Rofran
Fernandes, outra pelo Paulo Albuquerque aí de Porto Alegre (ele dirigiu Jogos na
hora da sesta). O Paulo tava voltando de Manaus e ficou uns dias em casa, ele leu a
minha peça e ficou muito impressionado e disse que é uma das coisas mais fortes
que leu nos últimos anos. Parece que tá a fim de montá-la, no próximo ano. Mas eu
não acredito muito, e deixo andar.
Vou ficando por aqui, ainda quero escrever pelo menos um bilhetinho para a
Dona Tuba, e tenho que aproveitar antes que me dêem trabalho.
Um grande abraço especial para o pai. Beijos para todos. Seu filho e amigo.
Caio


Sampa, 7. 2. 79

Querida mãe,
estou aproveitando a ida do Augusto para mandar esta carta, escrita na
redação mesmo, a senhora sabe, aquelas corridas de sempre. Ando sentindo falta de
notícias daí. Como tenho viajado muito, pensei até que a senhora poderia ter
telefonado sem eu estar em casa. Então, por favor, escreva ou telefone (a melhor
hora pra me encontrar é mesmo por volta das 9 da manhã).
Aqui tá tudo bem — hoje tá um dia de sol lindo, nem parece São Paulo.
Acordei às 7 e meia da manhã com a Dona Francisca chegando: é uma “peoa”
ótima que arrumei. Era empregada de um amigo meu, ele resolveu dispensá-la
enquanto procura uma que durma em casa, e passou-a pra mim. Tem ido duas
vezes por semana, pago 150 de cada vez e ela faz horrores — lava roupa, passa,
conseguiu desencruar a sujeira da cozinha, que tava um horror.
Estou sozinho em casa (hoje chega o Luiz Arthur, que vai ficar uns dias
aqui) — Rofran foi fazer um filme em Pirapora, no interior de Minas Gerais, e eu
estou até um pouco preocupado, porque Minas inteira está embaixo d’água, e
Pirapora é uma das cidades mais atingidas. Ele ficou de telefonar e não telefonou,
acho que a equipe de filmagem deve estar ilhada lá.
Fiquei muito contente com a aprovação das gurias no vestibular. Vai ser
ótimo para elas, só espero que a Cláudia agüente aqueles demônios do curso de
Letras, como a Rebeca ou o Bunse, professor de Lingüística.
Interrompi, tivemos uma reunião, agora já é de tarde. Tá uma bagunça isso
aqui. Saíram algumas pessoas da revista, acumulou trabalho, ficou meio baixo astral.
Durante a reunião tive uma discussão meio forte com a patroa. Ando meio
ofendido com certas coisas — como o diretor marcar uma reunião pras 9 da
manhã, eu e os outros chegamos antes das 9, e ele só pinta às 10 e meia, muito
apressado, falando que a revista tá péssima, coisas assim. Falou que tínhamos que
reduzir os textos, aumentar as fotos e o visual, que “o leitor não gosta de ler”. Eu
disse que tinha irmãs adolescentes que adoravam ler, e que achava que a gente não
devia colaborar com a alienação. Ele me chamou de obsoleto, eu fiquei puto e
repliquei que minha formação foi feita antes de 64, e que se ele achava que cultura e
leitura eram coisas obsoletas então íamos muito mal — e que se ele tava a fim de
colaborar com o processo de castração mental da juventude brasileira pós-64, eu
não estava. Por aí foi. Numa certa altura, até a senhora acabou entrando na briga.
Ele disse que meus títulos pareciam livro antigo de História. Eu falei “minha mãe é
professora de História, eu estudei muita História e se a juventude de hoje não sabe
nem quem foi Getúlio Vargas é porque não se estuda mais História”. Voou pena.
Suei, gritei. Todo mundo quieto em volta. Aí resolvi calar a boca. Afinal, como na
fábula do lobo e do cordeiro: contra a força não há argumentos.
Mas ando de saco muito cheio com essas coisas. De repente tô trabalhando
num lugar que me obriga a ir contra tudo que penso e sinto. Não sei como resolver
tudo isso. Mas tudo bem, tô calmo e ponderado, embora a vontade seja de agredir
todo mundo, dizer meia dúzia de verdades e sair pisando duro. Não vou fazer
nenhuma loucura.
Queria lhe pedir uma coisa: por favor, mande pelo Augusto os exemplares
de Pedras de Calcutá que ainda existirem por aí — acho que tem um ou dois pacotes
no meu quarto. Também: procure um livro de capa azul, chamado A negação da
morte, o autor chama-se Ernest Becker ou Fischer, eu não tenho certeza. Se a
senhora não achar, não tem importância.
É só. Tô escrevendo meio na corrida. Hoje à noite é a estréia da peça da
Suzana Saldanha, tô muito curioso pra ver.
Beijos para todos. Por favor, dê notícias logo.
Do seu filho
Caio

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