OITO CIDADES ALEMÃS E UM BRASIL

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Ser um escritor brasileiro em viagem por outro país é uma saia justa que exige muita compenetração.
Perguntaram se eu teria mesmo energia. Eu disse que sim, não acreditaram muito, insinuando que eu não conseguiria. Vocês não sabem o que é um gaúcho da fronteira, pensei, e quando ameaço fraquejar me vem sempre na mente a voz de minha mãe, também gaúcha da fronteira, repetindo “imagina se eu vou me entregar”. Oito cidades depois, missão cumprida, em frente à janela aberta sobre os telhados de Colônia, no apartamento de meu tradutor Gerd Hilger, suspiro aliviado e cheio de auto-estima: consegui. Imagina se euvoume entregar...
Foram oito cidades fazendo leituras, debates, respondendo perguntas sobre o Brasil. Enumero, consultando o bloquinho da Hauss der Kulturen der Welt: Frankfurt, Hamburgo, Berlim, Bad Berleburg, Dortmund, Colônia, Aschen e Bonn. Sem contar aquelas pelas quais apenas passei, pensando bobagens (Hagen, terá algo a ver com Nina?), com vontade de parar (Kassel, a Documenta!) e com flash-backs na memória (Altona, O Seqüestrado de..., não era uma peça de Sartre?). Não há tempo. Os trens jamais atrasam, implacáveis horários. Ser eficiente, milimétrico: 15 minutos para o banho, 20 para o breakfast, 1o para um telefonema, 20 para arrumar a mala, 1o para acertar as contas no hotel, mais 10 para chegar à estação com meia hora livre para o que chamo de “espaço de bobeira”.
Fumando sem pressa agora, enquanto Gerd ouve Caetano Veloso em espanhol, sinto um espanto aliviado: Deus, consegui. Ou conseguimos, suponho que todos os escritores brasileiros envolvidos nesse projeto conseguiram também. Pelo menos boto a mão no fogo pelos dois com quem dividi leituras em algumas cidades. Sérgio Sant’Anna e Ignácio de Loyola Brandão. E ser escritor brasileiro em outro país é uma saia-justa que exige muita compenetração. Afinal, ele não é apenas ele mesmo, mas a encarnação de toda a literatura e do próprio Brasil. Que, acreditem, os alemães amam e querem compreender.
Mas como compreender um país maior que a Europa inteira, com tantos contrastes e contradições? Eles perguntam, tentamos responder. O que vai acontecer com o Brasil de Fernando Henrique Cardoso? Não tenho bola de cristal, diz Ignácio de Loyola. Só esperança, como qualquer brasileiro. É possível a “arte pela arte” numa nação de analfabetos? Se for boa, eu digo, é possível até em Ruanda. Literatura não tem a obrigação de servir para nada, às vezes é inútil e bela como os poemas de Konstantin Kaváfis no Cairo miserável — e isso basta. Sérgio Sant’Anna conta que precisa fechar as janelas do apartamento em Laranjeiras para poder escrever sem ser perturbado pelos tiroteios nas favelas. Há um fascínio horrorizado no ar, mas então falamos também do nosso humor, e da fé irracional que habita o brasileiro, essa mistura de catolicismo, candomblé, kardecismo, orientalismo, naturalismo e o que mais pintar. O horror diminui, aumenta o fascínio. Como explicar o Brasil a quem nunca esteve lá? Os escritores tentam. Gosto deles — gosto de nós e de mim mesmo — nesse suave esforço de revelação.
Eterno rejeitado, o Brasil nem suspeita do interesse e do carinho que desperta. Todos querem que o Brasil dê certo, nessas noitadas de fragmentos solidários pelas cidades alemãs, todos queremos que tudo dê certo para todos nós, terráqueos. Ruanda, Haiti, Iugoslávia. E é pensando nisso que subitamente, na cozinha branca de Colônia, desisto de seguir viagem para Aix-en-Provence e Aries — mais encontros, mais escritores, mais perguntas sobre o Brasil. Quero voltar já: as respostas para o Brasil estão pelas esquinas do próprio Brasil.
O céu tão azul sobre Colônia, eu ficaria uma vida contemplando as gradações douradas nas árvores de outono. Mas eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui. Prepara o mate que estou voltando, tchê.

Zero Hora, 22/10/19 94

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