SEGUNDA CARTA PARA ALÉM DOS MUROS

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No caminho do inferno encontrei tantos anjos. Bandos, revoadas, falanges. Gordos querubins barrocos com as bundinhas de fora; serafins agudos de rosto pálido e asas de cetim; arcanjos severos, a espada em riste para enfrentar o mal. Que no caminho do inferno encontrei, naturalmente, também demônios. E a hierarquia inteira dos servidores celestes armada contra eles. Armas do bem, armas da luz: nopasarán!
Nem tão celestiais assim, esses anjos. Os da manhã usam uniforme branco, máscaras, toucas, luvas contra infecções, e há também os que carregam vassouras, baldes com desinfetantes. Recolhem as asas e esfregam o chão, trocam lençóis, servem café, enquanto outros medem pressão, temperatura, auscultam peito e ventre. Já os anjos debochados do meio da tarde vestem jeans, couro negro, descobriram os cabelos, trazem doces, jornais, meias limpas, fitas de Renato Russo celebrando a vitória de Stonewall, notícias da noite (onde todos os anjos são pardos), recados de outros anjos que não puderam vir por rebordosa, preguiça ou desnecessidade amorosa de evidenciar amor.
E quando sozinho, depois, tentando ver os púrpuras do crepúsculo além dos ciprestes do cemitério atrás dos muros — mas o ângulo não favorece, e contemplo então a fúria dos viadutos e de qualquer maneira, feio ou belo, tudo se equivale em vida e movimento — abro janelas para os anjos eletrônicos da noite. Chegam através de antenas, fones, pilhas, fios. Parecem-se às vezes com Cláudia Abreu (as duas, minha brava irmã e a atriz de Gilberto Braga), mas podem ter a voz caidaça de Billie Holiday perdida numa FM ou os vincos cada vez mais fundos ao lado da boca amarga de José Mayer. Homens, mulheres, você sabe, anjos nunca tiveram sexo. E alguns trabalham na TV, cantam no rádio. Noite alta, meio farto de asas ruflando, liras, rendas e clarins, despenco no sono plástico dos tubos enfiados em meu peito. E ainda assim eles insistem, chegados desse Outro Lado de Todas as Coisas. Reconheço um por um. Contra o fundo blue de Derek Jarman, ao som de uma canção de Freddy Mercury, coreografados por Nureiev, identifico os passos bailarinos-nô de Paulo Yutaka. Com Galizia, Alex Vailauri espia rindo atrás da Rainha do Frango Assado e ah como quero abraçar Vicente Pereira, e outro Santo Daime com Strazzer e mais uma viagem ao Rio com Nélson Pujol Yamamoto. Wagner Serra pedala bicicleta ao lado de Cyrill Collard, enquanto Wilson Barros esbraveja contra Peter Greenaway, apoiado por Nélson Perlongher. Ao som de Lóri Finokiaro, Hervé Guibert continua sua interminável carta para o amigo que não lhe salvou a vida. Reinaldo Arenas passa a mão devagar em seus cabelos claros. Tantos, meu Deus, os que se foram. Acordo com a voz safada de Cazuza repetindo em minha orelha fria: «Quem tem um sonho não dança, meu amor”.
Eu desperto, e digo sim. E tudo recomeça.
Às vezes penso que todos eles parecem vindos das margens do rio Narmada, por onde andaram o menino cego cantor, a mulher mais feia da Índia e o monge endinheirado de Gita Mehta. Às vezes penso que todos são cachorros com crachás nos dentes, patas dianteiras furadas por brasas de cigarro para dançar melhor, feito o conto ’ que Lygia Fagundes Telles mandou. E penso junto, sem relação aparente com o que vou dizendo: sempre que vejo ou leio Lygia, fico estarrecido de beleza.
Pois repito, aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia, guarda seu fio de luz. Nesse fio estreito, esticado feito corda bamba, nos equilibramos todos. Sombrinha erguida bem alto, pé ante pé, bailarinos destemidos do fim deste milênio pairando sobre o abismo.
Lá embaixo, uma rede de asas ampara nossa queda.

O Estado de S. Paulo, 4/9/1994

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