A CIDADE DOS ENTRETONS

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Porto Alegre é um lugar de inverno. As chuvas e verões amazônicas. Mas a primavera com pena.
“Quer dizer então que você está mesmo apaixonado por Porto Alegre?”, me perguntam longe daqui e aqui mesmo, entre espanto, ironia e inveja. Fico quieto. Primeiro que paixão deve ser coisa discreta, calada, centrada. Se você começa a espalhar aos sete ventos, crau, dá errado. Isso porque ao contar a gente tem a tendência a, digamos, “embonitar” a coisa, e portanto distanciar-se dela, apaixonando-se mais pelo supor-se apaixonado do que pelo objeto da paixão propriamente dito. Sei que é complicado, mas contar falsifica, é isso que quero dizer — e pensando mais longe, por isso mesmo literatura é sempre fraude. Quanto mais não-dita, melhor a paixão. Melhor, claro, em certo sentido que signifícatambém o pior: as mais nobres paixões são também as mais cadelas, como aquelas que enlouqueceram Adele H., levaram Oscar Wilde para a prisão ou fizeram a divina Vera Fischer ser queimada feito Joana d’Arc por não ser uma funcionária pública exemplar.
Mas como eu ia tentando dizer para esclarecer de uma vez por todas, e duramente: não é verdade que eu esteja apaixonado por Porto Alegre. Somos apenas bons amigos. Aliás, nem moro em Porto Alegre. Moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta. Além disso tenho sérias críticas à cidade, e você deve saber que quando se está apaixonado fica-se cego. Pois Port0 Alegre não me causa nem mesmo certa miopia metafórica, além da minha progressiva, nenhum poético astigmatismo, além do real das minhas, como diria Drummond, retinas fatigadas. Vejo de óculos todos os seus defeitos.
Primeiro que não é uma cidade de verão. E muito menos de inverno. No verão as árvores parecem baixas demais, sobe um vapor mefítico do Guaíba e a gente se sente como dentro de uma panela depressão, O verde fica viscoso, amazônico, as noites molhadas de suor pálido, os lençóis amanhecem encharcados de sais minerais mortos. No inverno, existem as frinchas. Por todo canto parecem existir frestas (a palavra é boa, mas “frincha” é muito mais dramático, concorda?) por onde se infiltram gélidos minuanos. E agosto, quando as paredes mofam e tudo vira uma cenografia das charnecas de Emily Bronté? Há lajotas insensatas pelas casas, não lareiras. No verão, tapetes absurdos e não tábuas no chão. No verão, Manaus; no inverno, Moscou. Pode, uma cidade assim? Pode, pois no outono e primavera ela se esmera em tons dourados, brisas tépidas, verdes suaves, céus-de-taça-de-porcelana invertida, como diria Érico Veríssimo. É preciso saber amar Porto Alegre nesses entretons, nos outros dar o fora. O próprio Érico parecia saber muito bem disso, vivia dando o fora. E voltando, claro. Pois melhor do que morar aqui, é voltar para cá. Melhor ainda do que voltar para cá, é partir daqui e assim por diante, numa relação que não se resolve nunca. Vide por exemplo a Déa Martins e o Marcos Breda.
Também é rnachista demais, e isso eu não suporto. Minha vingança involuntária e terrível é que, literalmente traduzido para o inglês, Porto Alegre vira Gay Port. Rárárá, como diria o Zé Simão. Em cartas para o exterior, só uso Gay Port — ficam pensando que vivo assim numa espécie de Jacira’s Town, something between São Francisco da Califórnia e Amsterdam. Rárárá again. Imaginem se soubessem desses festivais de canções nativa e de certas coisas — sou chique, não vou citar nomes — que se lê nos jornais e ouve no rádio e vê na tevê.
Sei, hoje estou dispersivo e até um pouco arrogante. É que estou viajando para São Paulo — a Nova Delhi e não a Nova York da América do Sul, como querem os paulistanos. Véspera de viagem me deixa sempre meio assim, antipático com o que fica. Logo passa. E torno ao Menino Deus como um beduíno que desistisse de enfrentar o deserto para voltar ao oásis de onde saiu. Morto de sede, e com a faca da nostalgia do longe cravada fundo no peito. Às vezes dói, mas logo passa também.

Zero Hora, 8/2/199

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1 comentários:

  1. A frase correta é "Mas a primavera compensa."