O MERGULHO DO PRÍNCIPE BAILARINO

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Era uma vez um Príncipe. Alto, louro, bonito. Como devem ser os príncipes. Não posso afirmar se tinha cavalo branco. Talvez não, porque o que ele gostava mesmo era de dançar e de ensinar os outros a dançar também. Com as mãos, com os pés, com cada parte do corpo, até com o pensamento. Aliás, vinha de uma família de bailarinos. Então, o rei e a rainha, pais dele, achavam ótimo que dançasse tanto, em vez de ficar perdendo tempo com guerras idiotas, como a maioria dos príncipes chinfrins de hoje em dia.
Se era um Príncipe Encantado? Não posso garantir. Primeiro que existem vários tipos de encantamento. Sei é que havia alguma coisa nele que o tornava, na verdade, um Príncipe DesEncantado. Não que fosse triste, mas é que olhava tudo com tanta atenção que começou a observar o movimento do vento, das árvores, das nuvens, da superfície dos lagos, das ondas do mar, de tudo que existe na natureza. Bom, daí ele começou a sonhar em ensinar: não só gente, mas também as coisas a dançar, compreende? E talvez fosse isso que desse o tal desencanto nele, pode ser. A alma dos príncipes bailarinos é tão misteriosa...
Sempre que podia, ele ia olhar o mar. Sentava na areia e ficava olhando as ondas, pensando ah, se aquela ondinha que vem vindo ali virasse um pouco mais para a esquerda ia ficar muito mais bonito. Ou: ah, se aquela outra que vem vindo mais atrás explodisse bem mais alto que todas as outras, jogando espuma em direção ao céu, tão alto que acabasse se misturando com as nuvens. Coisas assim, o Príncipe ficava pensando na praia. Não era loucura não. É que, além de príncipe, era artista. E um artista sempre acha que as coisas podem ser ainda mais bonitas ou melhores do que são. Pelo menos os artistas príncipes, que são poucos, insatisfeitos. Como príncipe e artista, aquele queria sempre o mais belo. De tudo: pessoas e pedras e plantas e águas e estrelas e bichos. Até coreografar o salto dos sapos andou tentando uma época, mas não deu certo porque eram bichos muito mal-educados. Bom, certo dia luminoso de sol e azul o Príncipe foi até a praia e decidiu: vou lá já-já falar com lemanjá e com Netuno, que mandam em tudo no mar. Tirou a roupa, molhou os pés na água verde tão clarinha que dava pra ver a areia do fundo. Foi entrando. Cada vez mais fundo. Já não dava pé, ele começou a nadar. Aí lembrou que nem sabia direito onde moravam Iemanj á e Netuno. Como são deuses, pensou, devem estar em toda a parte, os peixes vão avisar que quero falar com eles. E continuou nadando, nadando. Mar adentro, mar afora, mar a fundo.
O que aconteceu depois ninguém sabe direito. No dia seguinte, o corpo dele foi encontrado morto na areia da praia. Parece triste. Mas eu, que o conhecia, fiquei desconfiado que lemanjá e Netuno adoraram a sua idéia e imediatamente chamaram um bando de ondinas — as ninfas que moram nas ondas — para começar as aulas. Só havia um problema: para as aulas, tinham que ficar com ele em tempo integral. Devem ter perguntado se queria mesmo ficar. Acho que ele disse sim. E ficou. Quer dizer, a parte dele que dançava separou-se do corpo e ficou por lá no fundo do mar, coreografando as ondas. Questão de, daqui a algum tempo, a gente observar como anda o movimento delas. Vai saber, não? Pois conheci esse príncipe. Era real. Chamava-se Rainer Vianna. Tive até a sorte de tomar umas cervejas com ele algumas vezes no Viena ali do Conjunto Nacional ou na Oficina Oswald de Andrade, onde a gente dava aulas. Há uma semana, Rainer foi encontrado morto, afogado, na praia de São Conrado, no Rio de Janeiro. Tinha 37 anos e muito ainda para fazer. Quem sabe não aqui, mas lá do Outro Lado?
Boa viagem, Rainer, que seja leve teu passo no espaço sobre nós.

O Estado de S. Paulo, 3/9/1995

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1 comentários:

  1. Anónimo says:

    Estou imensamente emocionada. Fui movida. Não quero parar mais!