REFLEXÕES DE UM FORA-DA-LEI DO ATROLHO

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Se você, como eu, também vive em São Paulo e vem sendo acometido de crises cada vez mais freqüentes de irritação, dor de cabeça, náuseas, palpitações, insônia, chiliques e achaques dos mais diversos, saiba que descobri o motivo. Não por ser gênio, mas por ser vítima. O mal que nos aflige a todos, revelo, chama-se Atrolho. A Cidade de São Paulo é cada vez mais movida e regida por essa entidade invisível, insuportável e onipresente: a Lei do Atrolho.
Essa lei, aprenda, dificulta, até mesmo impede todo e qualquer movimento. Telefones que nunca têm linhas (e você quer falar); caixas de supermercados lixando as unhas enquanto a fila aumenta (e você quer pagar); grupos de executivos e secretárias andando lado a lado na Paulista na hora do almoço (e você quer passar); bilheterias de cinema que jamais têm troco (e você quer sonhar), entendeu? Gente que pára para conversar justamente no trecho mais estreito da calçada; adolescentes com as gigantes mochilas jogando você longe; caixas (ai, caixas!) que te dão o troco com dezenas de moedinhas inúteis; funcionários dos correios que decidem que a sua carta, depois de horas na fila, tem que ir por Sedex — tudo isso e muito mais, muito mais. É puro Atrolho.
Há um bar na esquina de casa (e bar na esquina de casa da gente é cármico, não há como evitá-lo) que é um verdadeiro Ícone Atrolhante. Estreitíssimo, sempre como rádio aos berros, tem banquinhos colados ao balcão onde só caberiam as pernas de um pigmeu, mais uma espécie de plataforma que obriga a gente a um Patético pulinho para subir e — pior — algo como um estribo de metal para apoiar os pés, perfeito para caneladas dilacerantes. Indescritível, não? Nesse bar, logo ao primeiro cafezinho do dia, Você já pode contar com todos os seus impulsos homicidas plenamente despertos e ávidos de sangue.
E as embalagens? Há uma tampa de água mineral, que outro dia Ignácio de Loyola comentou aqui, capaz de estraçalhar dedos, unhas e cutículas. E as calçadas de São Paulo, também Comentadas pelo mesmo Ignácio, um expert em atrolhos? DesVenturadas peruas de saia justa e salto alto! Mas além dos atrolhos, digamos, espaciais, há também os olfativos e sonoros, tão Odiosos quanto. Eflúvios de cebola frita e gordura amanhecida pelas portas e janelas às nove da manhã; office-boys batucando frenéticos em portas de elevadores, você conhece? Britadeiras, trituradoras de concreto, escapamentos abertos. E gritos, muitos gritos. Para quem tem menos de seis neurônios, como nós paulistanos, pode ser fatal.
Pois o atrolho mata. Aos poucos, de ataque de nervos em ataque de nervos mitigados a golpes de lexotan ou passiflorine para não virar serial-killer (grrrr: as caixas!). Reflita: pelo menos 90% do inferno que São Paulo tornou-se talvez seja causado pela Lei do Atrolho, que aqui impera. Precisamos urgentes campanhas, outdoor, cartilhas de esclarecimento. De graça, por instinto de sobrevivência, sugiro: Companheiro, facilite a vida para o ser ao lado! Não atrolhe sua vida, não atrolhe a vida alheia! Contra aids, camisinha; contra Atrolho, consciência!
Consciência — que mel de palavra! —, consciência urbana. A imensa maioria dos atrolhantes não percebe que está sendo manipulada por essa diabólica instituição. É preciso alertar logo a todos, pois a Lei do Atrolho, mãe do stress, traz à tona os mais baixos instintos do mais politicamente correto cidadão. Submetido a ela, em átimos de segundos qualquer um fica possuído por ferozes ímpetos neonazistas.
Quanto a mim, confesso: sou um fora-da-lei do Atrolho. O problema é que, quanto mais você se desatrolha, mais atrolhante torna-se a Cidade. Confuso e exausto, parto para Paris dia 9 para merecida temporada intensiva de desatrolhação psicológica. Da estrada dou notícias.

O Estado de S. Paulo, 6/3/1994

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