A Luiz Fernando Emediato

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Porto 1. 7. 77

Emediato, irmão:
estava com uma carta pronta pra te mandar quando veio o Rafael Baião me
dizer que ia a Minas hoje — daí resolvi mandar isso por ele. Rafael é um cara muito
bom — irmão daquele Guerra Baião de quem a Inéditos publicou alguns poemas.
Nego, foi muito bom receber a tua carta. MUITO BOM MESMO. Eu
andava cheio de suspeitas, pintaram muitas estórias paranóicas na minha cabeça —
com base no real, infelizmente (se fosse demência pura seria mais fácil). As
estorinhas around as Histórias de um novo tempo foram tantas & tantas & tantas, e tão
exaustivas, e tão idiotas que — enfim, deixa pra lá. Bastidores literários:
aaaarrrrrrrgh! Mon coeur vomite.
Tô escrevendo na redação — quase 10 da manhã. Não dormi direito de
noite (insônias) e vou hoje à tarde pra Caxias do Sul, lançamento do Ovo (tão
antigo) & papos (que cansaço) com estudantes. Eu todo doído. Minha vida tá toda
errada. Bodes em vários níveis, às vezes me sinto bombardeado de — sei lá o quê:
em casa, no trabalho, afetivamente, financeiramente. Poucas vezes a barra esteve
tão pesada. No país, é isso que você vê. Cada vez pior. Ai, Emediato, pra onde a
gente tá indo? Prenderam gente, a paranóia tá à solta por aqui. Y otras — muchas —
cositas más. Em compensação, tenho trabalho — escrito — muito. Talvez por fuga?
Não sei, acho que não — porque a realidade dos meus textos é tão ou mais (?)
terrível do que o real dia-a-dia.
Sobre você vir em julho: MARAVILHOSO. Dificilmente poderei ir a
Buenos Aires — só tenho direito a férias em setembro. Mas mesmo que você fique
cinco minutos aqui, seria ótimo. Se você quiser, pode ficar lá em casa (mudei
praquela casinha, anote lá: Rua Chile, 661 — mas me avise com tempo ou ligue pra
cá: 24- 45- 55, redação da Folha da Manhã, sempre entre 13h e 17h, que é minha
hora certa de estar aqui) — com ou sem Sylvia. Eu espero que o relacionamento de
vocês se resolva da maneira que te doer menos. Não quero me atrever a dizer
coisas sobre — mas, olha, evite arrastar um relacionamento moribundo. Sempre é
melhor reagir, partir pra outra do que arrastar, arrastar.
Mangarielo teve aqui — também gosto muito dele, descontado um certo
speed (típico de SP). Lá (e aqui de novo) ele já tinha feito altos elogios a você: sobre
a sua elegância, a sua finura, a sua correção — mais ou menos o que disse a você de
mim. O que me faz supor — quem sabe? — que essas sejam características do
signo de Virgem... Meu livro — Pedras de Calcutá— deve sair em outubro, e ele me
deu o Assim escrevem os gaúchos (inéditos) para reorganizar, em questão de um mês.
Cê não imagina o que tem pintado de gente chata, contistas & contistas. Tô com o
quarto atulhado de contos. Ufa! Mas acho que vai dar pra fazer um bom trabalho.
O negócio do Cançado me emputeceu. Mais um. O, nêgo, cuide de você,
não se exponha demais, a gente é muito frágil e eles são muito fortes.
Li a crítica do Pólvora sobre o Jordão. Fiquei contente, como divulgação é
ótimo (como crítica, bem...). O prêmio da Status eu já sabia, pelo Julio —
PARABÉNS. Tudo isso é muito bom, além de você merecer, é um puta impulso
pra te lançar.
Nêgo, eu não tô nada bem. Queria te escrever com mais carinho, com mais
entusiasmo, com mais vida. Mas olha, não tá saindo.
Queria muito que a gente se visse em julho.
Ah: se você quiser mandar um conto pro Caderno de Sábado, eu trabalho uma
boa ilustração e publico — a gente tá invadindo aquilo lá.
Acordei com uma frase do Poema sujo me massacrando a cabeça:
como uma coisa suja (uma culpa)
dentro de uma pessoa” — mas não consigo relacioná-la com nada objetivo.
Talvez seja uma coisa que eu deva evitar: culpas, culpas,
culpas, culpas.
Emediato, gosto muito de você. Um abraço do seu irmão
Caio.

PS — Tô mandando esses livros procê distribuir por aí.


Porto Molhado, 22 de agosto-mês-do-desgosto, 1977.

Emediato, amigo:
estou um tanto perturbado — recém-cheguei do cinema, fui ver O inquilino,
do Polanski. Acho que poucas vezes, ou nunca, vi nada tão patológico: é assustador,
sobretudo porque convincente — um processo de enlouquecimento visto de
dentro, num crescendo que chega até o gran-guignol do final — brrrrr! Já estou
elaborando em cima da minha perturbação e tentando entender — saí do cinema
absolutamente tonto, trêmulo, me enfiei no boteco da frente e tomei um balde de
café. Agora passou um pouco. É que o filme, do meu enfoque, é justamente sobre
a paranóia no relacionamento entre as pessoas (no caso específico do filme,
agravada por uma série de outros fatores — a solidão e o homossexualismo
contido da personagem). E essa paranóia, essa desconfiança, esse medo do outro
tem sido meu leitmotif nos últimos tempos. Vem de fora pra dentro — porque a
cidade grande, o trabalho no jornal, o ninho de cobras da, aarrgh!, vida-literária só
fazem aumentar isso; mas vem também — e isso é que me assusta — de dentro pra
fora, de núcleos doentes, escuros e tristes existentes dentro de mim, e já vividos
numa dimensão de terror semelhante à do Inquilino principalmente sob efeito de
ácido. E (até quando?) sob vigilância constante, sob controle, em tratamento
(eficaz?).
Mas tudo isso é pra prefaciar uma atitude que tomei na semana passada, e
que me sinto — ia escrever obrigado ou no dever, mas não é nada disso: bem, quero te
contar. Um amigo meu, gaúcho residente na Bahia, Rogério Monteiro, mandou-me
o recorte de uma carta dele enviada e publicada em O Pasquim da semana passada,
em que ele criticava a entrevista conosco. A resposta era duma grossura incrível,
inclusive ofendendo a nós todos, na base do “pode ser que a pau eles aprendam a
não ler só revistinhas ou livrinhos estrangeiros” — algo assim.
Você sabe como eu sou calmo. Mas acontece que tenho um escorpião
latejando sob a tranqüilidade. O sangue me ferveu: fiquei PUTO. Somei isso a um
telefonema ambíguo (?) do Jeferson recebido um dia antes, pedindo a tal Cessão de
Direitos Autorais referentes ao pagamento dos quatro mil. Bom, nessa “Cessão”
eles se arvoram ao direito de reproduzir como e onde quiserem o teu texto,
inclusive modificando ou cortando. Fiquei mais puto. E resolvi agir, por minha
conta, sem consultar absolutamente ninguém — cedendo ao impulso e à intuição.
Escrevi duas cartas: uma à seção de cartas daquele jornaleco careta e
reacionário, de três páginas, muito agressiva, dizendo absolutamente tudo que
penso sobre eles e sobre os cortes feitos na entrevista (estranho que praticamente
não cortaram nada das palavras de vocês, só das minhas). Outra ao Jeferson,
dizendo que absolutamente não permito que a Codecri ou seja quem for se dê tais
direitos sobre um texto meu. Que não assino nem devolvo aquele papel (eu sou tão
desligado que ainda não tinha lido). E também: quero saber da possibilidade de
retirar meus contos de uma possível terceira edição.
Não sei que providências eles tomarão, talvez eu tenha comprado uma briga
muito feia e precise até de advogado. Não importa. Assumo plenamente o que fiz.
Estou de saco absolutamente cheio da Codecri, do Pasquim, das intrigas do Jeferson
e das atitudes doentias do nosso amigo Julio Cesar. Eu tenho uma psicologia muito
frágil — simplesmente não quero me envolver em estorinhas sujas como essa.
Prefiro cair fora. E doloroso ver o carreirismo, a falta de escrúpulos e o maucaratismo
de gente que eu, ingenuamente, supunha “amigos”.
Estou ferido e cansado. Mas não ao ponto de parar de lutar pelo que, penso,
seja a maneira mais correta ou mais digna de agir em relação a tudo isso. Ou seja:
exatamente esta — escrever a eles e escrever a você explicando diretamente o que
se passa, para que não venha um desses jefersons ou julios da vida armarem tramas
escuras entre a gente. Eu te quero bem e gostaria de preservar o relacionamento da
gente — que me parece sadio. E é só nisso que estou interessado: um pouco de
saúde, um pouco de honestidade, um pouco de decência.
Acho que esta carta está ficando pomposa & discursiva. Sorry. Mas é isso aí.
No mais, arrasto minha solidão por dentro do cinza deste agosto
interminável em direção não sei bem a quê. Setembro, quem sabe? Ou outubro, ou
novembro. Ou um Godot qualquer que não vem nunca. Sei lá.
Estou enviando os recortes das entrevistas. Mais esta conta para a Inéditos. É
uma barra, mas é o que sou. Ou pelo menos um dos meus lados. Talvez o mais
limpo. Do meu ponto de vista. Na verdade não é um conto, são anotações —
como diz o título. Se puder ser aproveitado, ótimo. Se não, tudo bem. Volta para a
gaveta.
Dê notícias, quando puder. Um abraço para Sylvia. Outro procê.
Caio

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1 comentários:

  1. Anónimo says:

    oi gos tei de um texto seu!!!!!!!!

    muito bom