A Gerd Hilger

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SP 22.09.93

Gerd querido,
ainda não perdi a esperança de receber notícias suas. Sou tão inseguro, meu
bem, não faça assim comigo não, como dizia Carmen Miranda. Tenho pensado
(paranóica!) se os dias que passei aí não foram um suplício para você. As vezes
acontece de só quando um hóspede vai embora a gente se dá conta do quanto
estava de saco cheio. Enquanto durar seu germânico silêncio, é isso que vou pensar.
Não estou bem (e não me pergunte o que é “bem”, meu bem). Ontem Breda
veio do Rio e perguntou então, já aterrisou no Brasil? Resposta — e o que é mais
grave, a sensação: não só aterrisei como afundei até os joelhos. Talvez afunde mais?
Até a cintura? Até o pescoço? Adianta gritar help? Me olho no espelho (só de
relance, não devo me deter demais, é perigoso) e digo quieta, sua bicha, vai fazendo
tuas costurínhas aí e pára de bancar a Cinderela. Fui exemplar nos primeiros
tempos. Uma santa, uma mártir. Dormia cedo, acordava cedíssimo, lavava roupa,
cozinhava, não bebia, não trepava. Fui desabando. O de fora não corresponde,
compreende? São Paulo está terrivelmente Dallas, trambiques, puxações de tapete
— tudo gira em torno de poder e/ou dinheiro. Tirei esta semana para dormir
demais. A primavera chegou com chuvas amazônicas, e uma gripe tem sido o
pretexto para ficar parado na janela perguntando meu deus (com minúscula), meu
deus, o que é que estou fazendo aqui. Sem interrogação também.
Pouco a pouco vou ficando duro, trocando minguadérrimos marcos &
dólares por cruzeiros que se desvanecem em segundos. Faço trabalhos inacreditáveis,
tipo revisar traduções mal-feitísimas por catedráticos da USP. Cadelamente,
conserto erros alheios e não levo crédito nenhum. E ganho menos que 1/3 do que
o tradutor ganha. Laika é laika, sempre será.
Recebi um fax de Frank Heibert. Segundo ele, sem detalhes, a Kiepenheuer
não publicará mais Dulce Veiga — e portanto ele estaria negociando a sua tradução
com Mme. Ray-Güde Schygulla, quero ,dizer Hannah Martin, para sair pela Zebra.
Fico à espera de notícias from Ray. Heibert diz que aquela squatter-house-dos-gaysmilitantes-
em-Kreuzberg continua à minha disposição. Volto, Gerd Alberto? Ou
você prefere Gerd Ricardo? Ou Gerd Antônio? Tenho me sentido terrivelmente só
& sem rumo (e velha e acabada e desamada, mas isso é o de menos), então penso
se não será melhor continuar só & sem rumo em Berlim do que aqui. A sensação
aqui é de estagnação.
Há coisas talvez boas no ar. Minha mãe colocou à venda um apartamento
que tinha em Tramandaí, uma praia gaúcha meio do mal — e quer comprar um
sítio em Florianópolis onde, se eu quiser, posso morar. À beira-mar. Ou fazer um
trancetê between Florianópolis-São Paulo. Estou à espera, vendo no que dá.
Tenho saído com Lygia Fagundes (ótima, [...] sometimes alucinadamente
sábia). Há dois dias, fomos parar numa recepção dada ao novo ministro da Cultura,
um cearense chamado Jerônimo Moscardo. Ele se parece com o nome, preciso dizer
mais? Foi patético: no coração de Dallas. Exus às pencas por todos os lados,
incluindo Raul Cortez, Ruth Escobar, dúzias de xoteles e candidatos a qualquer
coisa nas próximas eleições. Mais os bobos-da-corte, três ou quatro escritores. Tive
uma alegria: encontrei Edla, la van Steen avec Sábato Magaldi. Falamos muito em
você, Sábato querendo saber da tese-sobre-Jorge-Andrade. Menti que você trabalha
loucamente. Conversei muito com Edla, eu tinha resistência. Pois gostei, é simples,
direta, franca. É bom gostar das pessoas.
Em compensação, outra noite, num lançamento de Hilda Hilst, deparei-me
com João Santinha Trevisan. Atirei-me nos braços dele, com muita saudade. Foi
gélido. Fiquei magoado, pensando em ligar no dia seguinte, escuta aqui, João, você
tá com algum bode comigo? Remexi a memória, eternamente paranóide, será que
fiz alguma najice com a bicha e não me lembro? Bom, não lembro. Você sabe que
sempre tento ser boa como a Alice do Woody Allen.
Você me ocorre a todo minuto. Encontrei também Naum — muito sereno,
diz que jamais sai de casa — que também pediu notícias suas. E, uma tarde na
Paulista, cruzei Maurício — que recuperou aquele corpinho, não está mais baleia.
E vai sendo assim. Tenho lido Amós Oz, um escritor jewish. Hoje comprei
um caderno novo para um diário, o outro terminou, vício de solteirona. Vicente
Pereira, o meu melhor amigo, morreu finalmente semana passada, de Sida, em
Brasília. Não consegui chorar. Tinha falado com ele por telefone, logo que cheguei.
Senti alívio, depois rezei muito, e fiquei lembrando de tantos, tantos.
Mas vamos mudar de assunto. Responda com sinceridade: você acha que
Michael Jackson come criancinhas? E Liz Taylor não foi ótima, dando uma força
pra nega? Quem está no Rio é LaToya, biscatíssima, foi vaiada depois de fazer um
show com play-back. [...] O Ritz foi assaltado num fim de noite, três mascarados
levaram a féria da noite e apavoraram meia dúzia de bichas ébrias que ainda
tentavam caçar alguém. Eu não estava entre elas. A propósito, lembrei de uma coisa
que o Vicente gostava de dizer. “Sempre que houver mais de duas pessoas reunidas
e falar-se no nome de Deus, eu estarei entre elas. Mas sempre com um decote bem
profundo”. Vicente também dizia, citando acho que Marlene Dietrich: “Segura o
turbante, meu bem. E sente o ritmo”.
Estou assim, o turbante dá a impressão de pesar uma tonelada. Mas quando
penso em me jogar pela janela, coloco duas gotas de Paloma Picasso. Santo
remédio. Falando sério, sua naja, morro de saudade. Manda pelo menos um
cartãozinho!
Dá um beijo em Valdir.
Cuide-se. Não me abandone nestes pântanos tropicais, senão só me restará
procurar consolo com Mia Couto, lá em Maputo...
Beijo
Caio F.

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