A Gerd Hilger

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São Paulo, 30 de julho de 1993

Querido:
Falta imensa de você. 9h30 da manhã. Sentado em frente a uma bandeja com
bananas, mangas e mamões do 12° segundo andar de apart-hotel na Frei Caneca
(duas quadras da Paulista), o mar sem horizontes dos edifícios sem cor.
Flashes de uma chegada:
1. Sentada à minha frente no avião, na área cadela-smoker, um travesti magro e
louro de pelo menos lm9O, alemã ou suíça. Muito nervosa. Derrubando
bolsas. Jeans e salto alto. Cinto de metal prateado de pelo menos 20cm de
largura.
2. No banco do lado duas brasileiras de enormes jubões negros e crespos
puxam papo com um alemão-lasanha. Tipo “qual teu signo?” Sobre as ilhas
do Cabo Verde às 3h da manhã começam a TREPAR a três!
3. Trocar dinheiro no aeroporto — uma caixa-forte blindada. Guardas
armados. Negrões rondando do lado de fora. Paranóia geral. Saía justa de
couro cru sem fenda em nesga.
4. Compro um jornal. Primeira página: mataram montes de criacinhas na
Candelária, RJ.
5. Ônibus. Marginal do Tietê. 6h30 da manhã. Cinza. Poluição. Água parada
cheia de espuma branca ácida. Favelas. Bananeiras e coqueirais. “Que
horror” — eu penso. E em seguida. “Que lindo”.
6. Ap. de Gil no Centro. Cadelíssimo. Sem água quente nem telefone. Falo.
Fumo feito uma louca e durmo um sono cheio de poços. À noite —
gelada — quero um conhaque. Gil me leva a um bar chamado
“Simplesmente Maria”, embaixo do Minhocão. Um sapatão enche a cara
de uísque ao fundo. Música sertaneja muito alta. Súbito, gritos na caixa. O
sapatão esfrega notas de cem dólares na cara da dona — a tal
(simplesmente) Maria. Que vira fera. Transforma-se em brutalmente Maria
e joga o sapatão aos tapas na calçada.
7. Famílias inteiras dormindo sob os viadutos. Alguns com poltronas,
rádios. “Quero dormir”, gemo. E fico insone dois dias.
*
Depois, claro, teve o lado bonito. Passei no Ritz, Jaciras e Irenes de bigode
como em todos os bares gays do mundo, de Assumpción a Jacarta, passando
por NY. Reencontros. Gritaria. Meu amigo garçon — David — morreu de
AIDS em uma semana.
Encontro M. Nada enfrentativo: doce, meio grisalho. Fatigado. Falo em
você. Ele: “Ah, o loiro...” Eu: “Loiríssimo.” Ele: “Boa gente.” Eu: MAravilhoso.”
Ele: “Hã-hã,”
*
E achei este lugar. 400 dólares por mês, meu bem. “Ainda bem que não ftui
a Lisboa”, penso conferindo os tostões. É bonitinho. Decente. Preciso ter uma
ilusão de segundo mundo — você sabe que, embora Laika, tenho uma alminha
très chic.
(A propósito: no Duty Free de Frankfurt não resisti e comprei um vidro
inteiro de “Minotaure”. Cadela, sim. Mas cheirando a Paloma Picasso).
Mudei ontem. Sentei e telefonei, telefonei, telefonei. Todo mundo se queixa.
Mas há — estranho — alguma dignidade no ar. Tipo: continuamos caindo, mas
caindo em pó. Ligo para um bofe antigo, Fernando. Quer vir imediatamente me
ver. Melhor não, decido. A propos: os morenos de olhos doces, peludéssimos,
abundam pelas esquinas.
Não, je ne regrette rien. Não devia ter ficado em Berlim. Mas tarde, talvez.
Eu sou isto aqui, Gerd. Sei: não é totalmente agradável ser isto. Tem seus
prazeres. Mas não posso/não quero negar. O tempo todo penso “que horror,
que lindo”. E ficarei. Me aguarde.
Mas já aconteceu uma coisa boa. Paula Dip [...] me ofereceu a casa no
Guarujá para escrever. Vou tentar recolher trabalhos aqui e — quem sabe?
Afinal tenho um mês no apart para decidir. Hoje é sexta. Planejei esticar a autocomplacência
até segunda. Aí vou luta.
*
Gerd Hilger dos Santos, você foi tão maravilhoso comigo. Almas gemeas,
você diz. E me ajuda sempre, sem você, pensar: “Como o Gerd reagiria a esta
situação?” sempre dá certo. Não liguei antes de partir, detesto despedidas. E não
havia clima. Agi Strauss, a amiga da Ray-Güde, me alugou um pouco. E Ray
estava meio frenética — os meninos estão com processos em cima. Advogados,
depoimentos. Tudo na véspera dela sair de férias. E Agi e eu atrolhando a casa.
Santa Ray... Cuide bem dela.
Qualquer coisa aqui me comove. A miséria me deixa trêmulo. Ontem,
comendo misto frio com guaraná num boteco, conversei longamente com um
moreno vendedor de facas. Todos os tipos de facas. Não comprei nada. Mas
quando ele se foi, disse: “Obrigado. Valeu, garoto!” Essas coisas me dão vontade
de chorar.
Tá saindo LP de Gil/Caetano juntos. Vou tentar mandar. Fala-se muito
numa canção que diz “O Haiti é aqui
O Haiti não deve ser aqui”
*
Terminando aqui, caio na real. Banco, correio. Vou tentar alugar uma caixapostal.
À noite me convidaram para uma festa de drag-queens (jacííííííras!) num bar
post-tudo. Me dá notícias.
*
Beije Valdir.
Cuide-se bem.
Não seja enfrentativo.
Não maltrate o Frank Heibert.
E principalmente: não me esqueça.

PS — E afinal, apagamos ou não a cafeteira?
Love
it’s
all
we
need
(and we have it!)
PS — Falei por telef6ne com Zulmira Ribeiro Tavares. Um desastre! Você
acredita que ela me acusou de ter sido injusto com Raquel de Queiroz?
Manda MATAR (as duas)!
PS — Obrigado por ser tão generoso. Fica com os amigos (de preferência
peludos e fortinhos)...
Beijo

Caio F.

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