A Jacqueline Cantore

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Gay Port, 9 de março de 1995

Querida Jacqueline,
sa’s, guriããã, nesta minha nova profissão de jardineiro tenho aprendido
muitas côsas novas. Minha vida não sei, mas meu jardim certamente daria um
romance, inaugurando quem sabe a linha lítero-vegetal? O perigo seria os críticosnajas
me chamarem de escritor-vegetativo, lógico. Mas perigos sempre há, desde
que se saiu do útero, e até antes, durante imagino que muito mais.
Mas como ia te dizendo, uma das coisas que aprendi é que amor só não basta
para as plantinhas brotarem, crescerem e ficarem ótimas. Claro que ajuda —
suponho — botar Mozart ou mantras tibetanos com a sacada de alamandas
amarelas escancarada enquanto jardineio, e dizer I love you, Ich lieb dich, Je t’aime
ou Ik laska (esta em tcheco) ou como será em sânscrito? Bueno, hay que trabalhar
duro também. Todo dia regar, podar, controlar, lutar contra formigas, caramujos do
mal, plantas outras que atrolham umas. Semana do minguante, por exemplo, tive
que transplantar as cravinas, que estavam estrangulando as petúnias. Coitadinhas,
fragilíssimas, estão bombardeadas até hoje, principalmente a minha preferida —
uma rajada de roxo e branco, naturalmente a mais fresca. E os girassóis, então, nem
te conto. Os caules são fragilíssimos, meio ocos. Quando brota o botão, o caule
começa a desabar, é preciso providenciar estacas e amarrar com cordão bem leve,
para não quebrarem. Senão, quando abre o girassol (eles se preparam mais que as
rosas para nascer), o caule simplesmente tomba por terra — como se não
suportasse o peso da própria beleza que engendrou. E as angélicas, adoradas por
100 entre 100 formigas? Das três daqui até agora só consegui que uma florisse, e
floriu tão enfrentativa, apesar das folhas esfarrapadinhas das porradas da vida, que
às seis da manhã e seis da tarde seu perfume enchia o jardim inteiro. Todo dia
arranco ervas daninhas — estou em guerra com as marias-sem-vergonha,
cadelíssimas, e cinamornos das sementes do cinamomão em frente. Minha coluna
reclama — posso escrever meia hora, outra tenho que deitar no chão. Quando
tenho grana, chamo massagista, bem madame.
Amor não resiste a tudo, não. Amor é jardim, Amor enche de erva daninha.
Amizade também, todas as formas de amor. Hay que trabalhar y trabalhar, sabes?
Pois acho que nossa relação de uns anos para cá encheu de tanta erva
daninha que, quanto a mim, pelo menos, já não dou conta desse matagal.
[...]
Também, em quem está com Aids o que mais me dói é a morte antecipada
que os outros nos conferem. Às vezes os que mais amamos, ou os que mais dizem
nos amar. Sei disso porque assim me comportei, por exemplo, com o Wilson
Barros, de quem fugi como o diabo da cruz. Com o Paulo Yutaka, sem ir vê-lo no
hospital. Não respondi as cartas do Wagner e só telefonei um dia depois que ele
tinha morrido, por saudade intuitiva. E tardia.
Não acuso, então, por me achar incorruptível & soberano. Também fiz das
minhas. Podia ter sido mais amoroso com meus amigos que se foram, e agora é
tarde. Na seca de amor que sinto agora, nesta Porto Alegre que é como uma
enorme platéia à espera do Desfecho Trágico da Desvairada Vida de Caio F. para
imediatamente providenciar algum nome de biblioteca num centro cultural de
subúrbio, nesta Porto Alegre onde ninguém exceto Luciano Alabarse e Lya Luft me
procuram sinceros e leais, sozinho com a velhice de meus pais, minhas plantas me
consolam. Aprendo com elas o que não sei se terei tempo de aplicar, e todo dia,
acordando no máximo às seis da manhã, sou um tigre sentado em lótus na frente
do Buda que herdei de Vicente Pereira (a saudade mais dolorida), sou um tigre
ferido defendendo a patadas furiosas o que me resta de vida. Porque de alguma
forma, real ou metafórica, não importa, estou ganhando este jogo de dez a zero,
Jacqueline. Dá um trabalho do cão ser herói todo dia.
Eu me respeito como nunca, sa’s?
Uma historinha: entrava eu todo de branco na Igreja do Divino Espírito
Santo, na frente da Redenção, quando esbarro em R.A., todo de preto e em
frangalhos, com um outro punk. Ficou lívido quando me viu. O outro disse,
referindo-se a mim, “olha o morto que veio nos abençoar”. Beijei a testa dele e
disse “eu te abençôo”. Fui rezar, tenho mais o que fazer.
Para sua informação: Gilberto e eu voltamos de Fortaleza num vôo
massacrante de 12 horas pela Transbrasil num sábado. Ele partia na segunda. Na
segunda de manhã, perdeu o apartamento. A proprietária queria mil reais de
aluguel. Hélio deu jeito em tudo e com Déa ajudando, conseguimos jogá-lo no
avião.
[...]
Com pessoas, essa forma de criação mais imperfeita que Deus colocou sobre
a Terra, tenho deixado pra lá. Minha energia é para o texto, as plantas, os
passarinhos que alimento com sementes de girassol. A minha autocura no braço, na
raça, na solidão que ninguém compreende, e por isso mesmo não dói. Me dóem as
feridas físicas, as queimaduras de nitrogênio líquido pelo corpo. Tenho visto anjos,
sa’s?
E as fadas também existem, baby.
Te mando este texto de minha lavra para Tia Flora, que se foi, e agora baixa
mesmo nas faxinas que tenho feito para expulsar os seculares eguns que o pai e a
mãe juntaram pelos quartos. Não precisa ler, afinal você também não leu Dulce
Veiga, não?
E agora que o dólar foi pras picas, você vai investir em yens ou em marcos?
Prefiro os marcos antonios aos alemães ou suíços, sa’s?
E como diria Hilda Hilst, love apesar, a pesar e há pesar. Mas je t’embrasse e
te abençôo também. Parece que pré-mortos são bons nisso, dizem.
Caio F.
(still alive)

PS — Minha loucura-mór no momento: tento juntar grana para um cruzeiro pelas
ilhas gregas talvez em maio. Deus dará. Termino livro novo, chama-se Ovelhas
negras. E assim digamos um pré-póstumo...

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