A Lucienne Samôr

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POA 27.11.95

Lucienne, querida,
estou te devendo uma — na verdade, muitas — carta. As coisas estão
ficando difíceis do ponto de vista da saúde física (mental, até agora, graças a Deus,
não!), então é penoso fazer qualquer outra coisa que não seja usar a energia,
mínima, que ainda disponho para meus próprios textos. Leia a história a seguir:
Não jogo cartas fora. Remexendo gavetas, pastas, encontrei pelo menos umas
300 de escritores (nos escrevíamos muito nos anos 70, lembra?). Com pena de jogálas
fora, e sem espaço para guarda-las, ofereci-as à Flora Süssekind, da Fundação
Casa de Ruy Barbosa, no Rio, cuja função é justamente organizar arquivos de
escritores. Bem, uns três dias depois liga de O Globo uma repórter chamada Beth
Orsini: queria fazer uma matéria no jornal sobre as cartas. Respondi que
teoricamente já pertenciam à Flora — embora esta ainda não tivesse me
respondido — e que se Flora autorizasse, tudo bem e tal.
Flora autorizou. Passei a reler algumas cartas e a selecionar trechos. Falei à
Orsini que o maior volume, e as mais belas, eram as suas. Ela queria publicar uma
na íntegra. Eu enviei a ela seu endereço para que pedisse autorização a você. Enfim,
a coisa foi rolando. Pedi autorizações a Hilda Hilst, a Lya Luft, a Lygia —
selecionei vários trechos — insisti com Beth que pedisse autorização aos outros
escritores. Enfim, imaginei que ela fizesse isso. Saiu a matéria, que nem vi no dia
— um amigo me enviou do Rio, semanas depois — e me desagradou o tom
vezenquando meio malicioso de certas cartas.
Na sua, por exemplo: eu selecionara um trecho — lindo — em que você fala
que fora ao quintal apanhar lenha, era lua cheia, para fazer um chá ou café e
escrever a Maria Rita Kehl. O bonito era a escritora no interior de Minas, seu chá, sua carta. Orsini cortou tudo isso e reduziu a coisa a uma espécie de insinuação de
relação lésbica entre você e Maria Rita. Nada grave. Mas.., e a ética?
Dias depois me chega uma carta de Sérgio Sant’Anna putíssimo — e com
razão — pelas coisas que a moça diz dele. Insinua desregramentos sexuais, baixarias
assim. Sérgio fala em processo — e tem razão. Acontece que os caras são A
GLOBO, e eu de minha parte acho tudo isso muito, muito desgastante. Tanto que
nem reclamei no jornal nem nada. Não tenho saúde FÍSICA para isso, você sabe.
Então tá esse mar de fofocas armado, e achei que você deve saber disso antes que
chegue a seus ouvidos com mil distorções (naturalmente do Mal, claro).
*
Quanto à sua carta: ótimo. Mas POR FAVOR, VÁ À LUTA! Perdoe o
atrevimento, mas na minha opinião você está perdendo a sua vida há anos em
coisas que não interessam — ou que não avançam, pequenas, inúteis, estéreis —
sem fazer o que realmente interessa. E o que realmente interessa em você é
ESCREVER. Acho lamentável que até hoje você não tenha escrito outro livro (ou
escreveu e não publicou? não achou editor? suas gavetas estão cheias? eu não sei).
Se não, é a primeira coisa que você tem a fazer. Não sei se ele deve ser
“contudente, escandaloso, arrasador, para ficar conhecida mesmo”
Uma idéia: por que você não escreve sobre a sua longa e dolorosíssima
experiência no presídio? O mercado editorial está ávido por essas coisas. MAS
NÃO FACILITE SEU TEXTO, não escreva pensando em vender porque aí não
vai prestar. Com um texto na mão, você pode começar a batalha — editoras não
faltarão — e se eu estiver vivo — quem sabe? — ajudarei no que puder.
*
Outra coisa. Nós nos escrevemos dezenas de cartas. Não sei se você guardou as
minhas como guardei as suas. Se você guardou, uma idéia — após a minha morte,
claro — é você publicá-las. Vamos que eu me torne um mito literário
(melancolicamente póstumo...). De qualquer forma, se você as tem, são suas. E a
minha herança para você.
Quanto à matéria de O Globo, levaram a única cópia que eu tinha — no
momento tá dificil de fazer essas coisas, mesmo quando devolverem. Estou com
artrite no joelho esquerdo e, há quase um mês, praticamente imobilizado. Sou
muito só para fazer minhas coisas, e raramente aparece alguém para ajudar.
OK?
Que você esteja feliz, disposta a tocar essa luta. Segue uma nova edição do
meu primeiro filho. E o carinho de muitos anos do seu
Caio F.

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