A Jacqueline Cantore

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Sampa, 24 de junho de 1981.

Viva São João, viva Xangô, viva a refazenda, viva qualquer coisa!
Jacqueline,
Finalmente ontem consegui enviar (para o endereço de Yedda) uma carta
que era também para você, uma carta fria e meio boba, além de atrasada no mínimo
uma semana. Houve um acúmulo de produções, não há correio por perto e, enfim,
os dias foram se passando. Hoje é um dia bonito. Ontem também foi. Acordei
cedo, dei uma volta lenta pela Lorena, Consolação, Oscar Freire. Comprei duas
coisas que tinha vontade de ter, fazia tempo: uma garrafa térmica (tomo muito café,
e já estava cansado daquele negócio de subir/descer escada toda hora) e uma
sandália chinesa, daquelas cheias de bolinhas de plástico que massageiam os pés (e
os órgãos internos) enquanto você caminha. Procurei inutilmente uma vela branca
de sete dias pra acender pra São João, não encontrei, comprei azul, ele deve gostar
também. Trouxe um pacotinho de incenso, outro de gin-seng. De uma papelaria
(uma das minhas fantasias é ser, um dia, dono de uma papelaria que se chamaria
“Virginia Woolf”, onde seriam vendidos principalmente aqueles pesos de papel de
cristal — naturalmente que iria à falência em menos de um mês), trouxe dois
bloquinhos para recados telefônicos, já tinha dois, nem há tantos recados assim,
mas são tão bonitos.
A foto de Lidinha com as crianças vai para a porta-galeria, onde estão as
caras de alguns amigos, de alguns tempos, de velhos e novos carnavais. Fica logo na
entrada: você entra e, de cara, já sente aquele astral de amizade bonita. A propósito:
você manda uma fotografia sua e pede pra Yedda mandar uma também, para a
mesma porta?
Mandamos pintar a frente da casa.3 Enquanto escrevo aqui, num canto de
meu quarto, atrás dos vidros da janela o pintor raspa raspa raspa as paredes.
Acordei hoje cedo com uma coisa lixando a minha cabeça. Fiquei uns cinco
minutos sem entender: eram os pintores. Em geral coloco o rádio para despertar às
8h45m, para assistir ao Bolinha na TV-Mulher, mas ontem fui estendendo e
estendendo e estendendo a noite, acabei dormindo quase ás quatro, depois de
assistir na TV My fair lady, na verdade só pra ver Audrey Hepburn (azul, azul, era
uma mulher inteiramente azul, azul clarinho, quase transparente, azul de água clara
com pedrinhas no fundo) e ler quase inteiro o jornal de classificados que tem aqui
chamado Primeira Mão.
Foi um dia tão bonito ontem, já disse isso, mas repito: foi um dia tão bonito
ontem. Precisei ir na Abril, à tarde, entregar umas matérias, e de repente chegando
lá me deu uma CERTEZA muito forte de que tinha sido ótimo pedir demissão,
que eu realmente não suportava mais os carpetes verdes, os tetos pretos, as caras
— principalmente as caras, ai as caras cinzas. Revi pessoas que eu gosto, nem são
muitas, na verdade só Maria Adelaide Amaral (pequenina, feiticeira) e Juan, meu
amigo uruguaio. Depois fui visitar Zé Márcio Penido, imobilizado durante 10 dias,
com um negócio chamado “lombalgia aguda”, segundo o médico por falta de
movimentos, de exercícios. Zé passa a vida sentado, fumando muitos hollywoods e
bebendo vodka com coca-cola. Falei pra ele que o bode de corpo era um toque,
você precisa cuidar bem do seu barco, senão como vai navegar por aí? Saí para a
aula de dança quase de tardezinha, ô Jacqueline, como São Paulo pode ser bonito às
vezes, com uns crepúsculos cor de pêssego querendo amadurecer, demoradíssimos,
tão lentos quanto um acorde de Erik Satie. Dancei, dancei: eu estava tão claro que
algumas pessoas que nunca tinham falado comigo vieram conversar. Eu estava
entendendo tanto todas as coisas, e tudo principalmente que é de dentro das pessoas — assim como uma piedade amorosa, uma piedade cúmplice e também
parceira de pequenas dores (ou grandes talvez), procuras, tentativas, quedas,
quebras.
Raramente saio à noite, praticamente nunca vou a lançamentos literários: —
tenho medo e desgosto do astral competitivo, fofoqueiro. Mas tinha ontem duas
pessoas que gosto muito: Márcia Denser, lançando O animal dos motéis (você ficou
assustada com o título? a Márcia é assim, meio atrevida, mas no fundo uma
Luluzinha querendo fingir de Messalina — como me dirijo mais à Luluzinha e
ignoro as messalinices dela, costumo dizer que temos um relacionamento muito
especial). Aí conheci sabe quem? Cassan-dra-Ri-os4. Fiquei paralisado. Afinal, é um
mito. Nada de casacos de couro, pulseiras grossas ou correntes: traços muito
bonitos, um nariz fino, uma testa ampla, uma voz baixa, mansa. Não consegui dizer
nada além de um besta “muito prazer”. Aí fiquei olhando as figuras: Marcos Rey,
parecendo uma daquelas figuras fellinianas do Satyricon, Raduan Nassar, um
iraquiano traficando petróleo (ou urânio?), Olga Savary com seus longos vestidos
indianos, Massao Ohno, o editor chinês com jeito de traficante de ópio.5 Tudo,
todos, estranhamente obsoletos. Carlos Emílio Correia Lima, irônico e agressivo
desde que escrevi uma resenha criticando um romance dele chamado A cachoeira das
eras. Perguntou “como vai o conde? , respondi “agora ganhei um titulo de
marquês” e fiquei exausto de ter que segurar esse tipo de astral. Foi então que
apareceu uma cara muito limpa e disse “vi sua fotografia na fazenda de Hilda
Hilst”. Ficamos sorrindo um pro outro no meio daquela bobagem. Aí ele disse que
era poeta e me deu o livro dele, chama-se Quem se debate é afogado. Escreveu assim:
“para o Caio, por esse brinco de calypso no convés da sua caravela/ saludos del
Mar/ R./ hora de tudo”. Abri o livro à toa, e encontrei um poema assim:
“eu sou a pedra vermelha na víscera do caranguejo procurando a maré alta do dia
no dente do chocolate o espelho denso girando em seu quarto de sol
o beijo escorrendo na boca do mar
miles davis ecoando no ventre da caverna”
Foi então que comecei a me apaixonar violenta, profunda e imediatamente.
Eu não podia suportara ninguém em volta suportaria. Comecei a não saber onde
colocar nem os olhos, nem as mãos, nem os pés, falei “desculpa, tenho que ir, não
me sinto bem nesses lugares”. E quando vi já estava na rua fria, caminhando sobre
um viaduto enorme, onde não passavam táxis. Eu tinha deixado a moto
em casa (está até com os faróis queimados) e já tinha sido assaltado, há um ano,
num lugar muito próximo dali. Uma paranóia leve pairou, mas segurei a guia de
Ogum (era terça-feira) e fui em frente. Um táxi, outra livraria, o lançamento de
Horácio, quentão e pipoca. Ignácio de Loyola, um beijo carinhoso. Juan, meu
amigo uruguaio escondido atrás de Gê, [...] que se eriça toda quando alguém se
aproxima dele. De repente encontrei Kátia Adamo, magra, alta, triste, escorpião de
ascendente escorpião, mas surpreendentemente doce, e uma amiga dela apaixonada
por Audrey Hepburn, ficamos horas falando, sustentei que Audrey era belga, ela
que Audrey era holandesa, depois chegaram Tania e Paulo Afonso, com quem
morei na Europa, o tempo foi andando e uma porção de lembranças antigas foi
tomando corpo ali no meio da rua Pinheiros. Véspera de São João, e a minha
cabeça deu uma volta até as fogueiras que nós fazíamos em Santiago do Boqueirão,
eu, Nairzinha, minha irmã de criação, Beco, meu primo, o negrinho Jorge, afilhado
de minha mãe, meu irmão Gringo, os vizinhos Iso e Marilusa, que eram
desbocados e me contaram tudo sobre como os bebês nasciam, minha mãe só
permitia que a gente andasse com eles em ocasiões especiais como essa, e Altamir,
da casa branca em frente, e Jacira e Celanira, as gêmeas da esquina em frente, e
Rubens, filho de dona Tuta. Nairzinha todo ano dizia que tinha uma sorte forte que
era olhar no poço meia-noite com uma vela na mão. Se você visse na água lá
embaixo um vestido de noiva, era casamento; um caixão de defunto, morte, e assim
por diante. Ninguém tinha coragem de fazer essa sorte. Mas a gente pingava vinte e
um pingos de vela numa bacia para formar a inicial do nome da pessoa com quem
você ia casar, e colava papeizinhos nas bordas da bacia com nomes das namoradas
e soltava um barquinho pra ver onde ele ia aportar, e pingava tinta em papeizinhos
dobrados, deixava no sereno pra abrir na manhã seguinte, e pulava a fogueira três
vezes, fazendo três pedidos, eu sempre pedia pra morar na Suécia um dia, todo
mundo achava um absurdo, mas acabei morando. A perda foi ficando tão pesada,
Jacqueline, que fui comer um sanduíche no Posto 6 e vim embora. Antes de
dormir, anotei no diário, em letras bem grandes, SAUDADES DE AUDREY
HEPBURN6.
Pausa. Orlando ligou, não vem almoçar, que eu escolha a cor da casa: um
amarelo bem fraquinho, quase branco. Se tenho convite para festa dos sete anos da
Status, hoje à noite. Não tenho. CBS ligando do Rio: Deus, o release do Thadeu
Matias, tinha esquecido. Fica pronto amanhã? Fica, esta é uma tarefa para o Super-
Caio. Thadeu fala um pouco: se vou ao Rio assisti-lo cantar no MPB da Globo dia
10 de julho. Vou. Assista aí: a música tem um refrão assim:
“Ai essa geração
não pode viver não sem amor
sem saber de coração”
Tenho amigos tão bonitos. Ninguém suspeita, mas sou uma pessoa muito
rica.
O release me espera. Queria escrever mais, mas já exagerei. Vou ver se
consigo colocar no correio amanhã. Hoje de manhã chegou uma carta da Yedda.
Ela também fala no amigo de vocês que careteou. Deixa ele: às vezes o que parece
um descaminho na verdade é um caminho inaparente que conduz a outro caminho
melhor. As vezes não. O que a gente pode fazer é dar crédito ou não à pessoa.
Freqüentemente não vale a pena. Freqüentemente, vale.
Leio no jornal que Deu pra ti anos-70 estréia hoje à noite aqui. Quero muito
ver.
Um beijo para Yedda. Outro pra você. Por favor, me mande da próxima vez
uma folha de plátano bem amarelada, da Redenção. Aqui não tem plátano.

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