A Jacqueline Cantore

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Vila de Santa Teresa, 2O.O5.83

Pôs tu s’as que acabo de chegar da fêra, guria. Imagina que tem uma bem
aqui atrás, descobri tomando café de manhã cedo: achei vertiginoso (esse adjetivo
precisa ser usado com mais freqüência). Comprei maçãs silvestres, daquelas
amarguinhas e aperreadinhas, um galho de arruda (tô com um atrás da orelha), uma
rosa branca, outra amarela. Tô escrevendo com uns cafés do lado, comprei uma
têrmo (a marca é Aladim, pode?) ontem no armarinho, fiz amizade com a Dona
Morena da cozinha. É uma têrmo de Oxum, amarelésima, acabo de provar, tá
ótima.
Guriããã, não tô muito trilegal, s’as? Nada de grave: aquela gripe que me
bateu forte na ponte-aérea de volta. Na terça à noite ainda tive forças para ir à
Sônia. Conheci lá um casal lindo, M. e A. — ele, executivo, ela, militante do PDT
— ela de Oxóssi, ele de Oxalá, Oxum e Ogum, Leo ascendente Aquário. Na
quarta, me senti supercoitado fiquei de cama quase o dia todo, não podia respirar
direito, entupidíssimo. Claro que puxei meu chicotinho de vison aquele da Fiorucci)
e dê-lhe: oh-o-que-estou-fazendo-da-minha-vida-sozinho-e-abandonado-numhotel-
talvez-com-uma-pneumonia-dupla-como-é-que-vim-parar-aqui-se-morrer-axfixiado-
durante-a-noite-só-vão-descobrir-daqui-a-um-mês-porque-ninguém-vai-se-importar-etc-etc-etc. Lá pelas cinco, peguei a saia larga e o tamancão e desci a
ladeira até o comércio. Comprei um vidro de mel (descobri um naturalll aqui
perto), um xarope de limão bravo, comprei dez mil aspirinas.
Ontem fez uma manhã linda. Apanhei horrores de sol na piscina, o verde da
tez vai esmaecendo. Tenho feito muita ginástica e yoga. Horários rígidos: acordar às
8h, almoçar às 12h, jantar às 19h. Nos intervalos, como uma ou duas maçãs. [A
margem: Parece que a lobotomia não será necessária. Lembras daquele “Lugar de
muito verde” da História de borboletas? Pois é aqui, chê.] Na verdade estou
ótimo. E vou ficar melhor ainda: that’s is my revenge against the world (está
certo?). Bueno, à tarde desci para visitar GM. Que continua a mesma,
naturalmente. Mas saudabilíssima, jovem, morena & dinâmica. O apartamento é
igual ao quarto dela na Mundo Novo, só que maior. Enfim, a velha & boa
(sometimes, you know) GM. Lá pelas tantas Ana C. liga e diz que tá vindo.
Pergunto a GM como está realmente Ana C. Climas, caras. GM diz que vai sair
para pegar o banco aberto e me deixa só esperando Ana C.
Parágrafo novo. Ao fundo, acordes iniciais do Bolero de Ravel. Fumo
horrores. Vejo o sovaco direito do Cristo pela janela. Batidas na porta (não tem
campainha, claro). Débeis, Abro.
Ana C. MAL. Põe mal nisso. Magra, consumida, trêmula, chorosa. Não sei
contar direito. Nunca vi ninguém tão frágil. Com toda minha gripe, eu era um poço
de saúde ao lado dela. Imagina uma alface (ela) ao lado de uma costela gorda (eu). E
lúcida. Parou de ir trabalhar, vai pedir uma licença. [...] O mais estranho: o caso de
amor continua, e ótimo. Ana C. está sofrendo de medo de amor. Não sabe bem.
Medo de amor? Culpa do prazer? Não escreveu mais nada depois do Contagem
regressiva, não consegue dormir, as mãos tremem, são incapazes de datilografar ou segurar uma caneta. Está com Júpiter e Urano em oposição ao
sol/Mercúrio/Vênus radicais, justifica, perguntaram? Deixei-a numa sessão de
bioenergética, ia a um acupuntor hoje. Me convidou para irmos, com a namorada e
maybe GM, para o sítio dela em Petrópolis, hoje à noite ou amanhã. Parece Isabelle
Adjani em Nosferatu, depois que começa a ser sugada. Linda, naturalmente, mas
troppo morbo. Conversando com GM, somos mais por uma terapia bageense, tipo
te fresqueia, prenda, come uma costela gorda, toma uns mates, dança uma chula,
uma tirana do lenço, te joga nua no açude na hora da sesta. Porque tá uma crise
sensível demais, dá pra entender? Recomendei uma brahma na esquina com uma
coxinha e um dreher pra rebater. Something like that.
E subi o morro mal, pesado. Horas para voltar, S’as que é trilonge, né,
guriããã. Aí acalmei. Aqui em cima é um santo retiro. A loucura fica toda lá
embaixo. O tempo mal anda. Fiz amizade com um casal de velhinhos, anteontem
ele fez 73 anos (Tôro), ela comprou um bolo e o três tava quebrado, com o
isqueiro, consertei. Aí cantamos parabéns-e-pique-pique. Comi bolo.
Cumprimentei, cumprimentei, e fui cumprimentado. God. Aí fui ver o pônei. S’as
que só eu vejo, né guriããã.
Tô lendo Balanço final, de Tia Simone. S’as que ela é um freezer, não? Mas é
estranho: quando eu morava naquele hotel da Gal. Vitorino em Porto (as côsas que
já fiz...) lia Simone & Sartre o dia inteiro. Me lembrou demais. E como um karma?
Eu tinha 18 anos, então. Mas o Balanço é pura razão. Te transcrevo este comentário
dela:
“O que me incomoda no Journal de Anais Nin é seu esteticismo,
seu narcisismo, a estreiteza do mundo que ela cria artificialmente,
o uso imoderado que faz dos mitos, sua admiração pela astrologia.
Sua concepção da feminilidade me horroriza.”
Tia Simone é Capricórnio, naturalmente, do dia 9 de janeiro. Pela cara deve
ter pelo menos a Lua em Virgo com ascendente Áries. Uma rocha.
Astrológicas: GM acha que com Júpiter e Urano em XII no mapa do Rio,
não astrologarei muito, principalmente pela quadratura com o Meio-do-Céu e
Aquário na ponta da III. Não entendi o porquê, mas a verdade é que estou sem
material nenhum e sem os diários de junho. Falar nisso, hoje estou no auge da
minha quadratura Sol/Urano, Vênus/Netuno e Mercúrio.
Escrevi ao C. uma carta DEFINITIVA. Hesitei em mandar, Sônia falou que
devia. Pedi a ele uma DEFINIÇÃO. Ou me quer e vem, ou não me quer e não
vem. Mas que me diga logo pra que eu possa desocupar o coração. Avisei que não
dou mais nenhum sinal de vida. E não darei. Não é mais possível. Não vou me
alimentar de ilusões. Prefiro reconhecer com o máximo de tranqüilidade possível
que estou só do que ficar a mercê de visitas adiadas, encontros transferidos. No
plano REAL: que história é essa? No que depende de mim, estou disposto &
aberto. Perguntei a ele como se sentia. Que me dissesse. Que eu tomaria o silêncio
como um não e ficaria também em silêncio. Acho que fiz bem.
Não só em relação a ele, mas a muitas outras coisas, quero que daqui pra
frente a vida seja hoje. A vida não é adiável. Marilene sempre soube disso, foi nisso
que pensou ao deixar o Índio. Anyway, me dói a possibilidade de um não, me dói a
possibilidade de um silêncio, me dói não saber de que forma chegar a ele, sacudi-lo,
dizer me olha, me encara, vamos ou não vamos nessa? Bueno, os dados estão
lançados, e agora só me resta lavar as mãos sujas do sangue das canções.
Acordei com aquela música do Erasmo que a Marina canta na cabeça. Como
não sei a letra, vou inventando assim:
“Sei que você vai me procurar
e que a nossa vida vai mudar sei que você vai sentir que eu
sou tão legal
filosofia, astrologia
já dizia a minha vó
antes mal acompanhado do que só
você precisa de um homem
pra chamar de seu
mesmo que esse homem seja eu.”
Sinto uma falta BRUTAL de som. Quando vieres, vamos acertar o despacho
do som ou do rádio, pelo menos. S’as que falei com Maria Clara por telefone e
(pausa) chegou UMA CARTA DO IGNÁCIO DE LOYOLA DE BERLIM. Adiei
para hoje à noite. Já fiz todas as fantasias tensas, negativas e maravilhosas possíveis.
Se for um não, s’as que não tenho futuro, né, guriããã? Aí minha vida vai ficar
inteiramente-como-direi. Aí o próximo passo eu simplesmente não sei. Mas acho
que não se deve pensar na vida como um jogo de xadrez. Ou sim?
Sobre tua vinda: não posso te hospedar, aqui é hotel; com GM é bom não
ficares (ela tem dificuldades contigo) — mas Jorge, a Maria Clara, te espera numa
nice (s’as que ela te adora, né, M’ri’lene? Ficarei na terça o dia inteiro aqui,
aguardando teu chamado ou tua subida. A Sônia só atende depois das 19h, eu até
poderia ir contigo até lá, depois te deixava na Rodoviária e vinha. Acho que o
melhor seria me ligares da Rodoviária mesmo, assim que chegares, desço, te pego
na C. , vamos à praia e voltamos para cá, algo assim. A não ser que esteja um dia
horroroso, como hoje, veio até um tomado de madrugada. Te parece bién?
Sobre o D.: aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii, que cansaço! Não me
apaixonei por ele, não estou apaixonado nem me apaixonaria never. [...] ODEIO
pessoas que dizem mas-todo-mundo-sempre-se-apaixona-por-mim. Parece a perua
da Jessica Lange seduzindo a pobre Dorothy em Tootsie (essa é a interpretação de
Ana C.), só para depois rejeitar, fazer cara de santa, dizer magina, eeeeeeeeeeu? São
jogos de ego, que eu conscientemente não alimento, me recuso: é uma questão
ideológica. Relações humanas são outro papo. Minha maior insegurança avec That
Little Grace é justamente isso: de estar (eu) alimentando um ego ávido. Acontece
que descobri que sou ótimo, vou ficar melhor ainda e esta é a minha REVENGE,
como já disse.
Tô tão humildezinho — e dizer isso é de uma vaidade... Veja só, aqui estou
sozinho num hotel absurdo, com 34 (quase 35) anos, segurando as minhas pontas
sem incomodar ninguém, sem dever nada a ninguém, sem nada além da minha
cabeça. E tô achando bom, tô repetindo que bom, Deus, que sou capaz de estar
vivo sem vampirizar ninguém, que bom que sou forte, que bom que suporto, que
bom que sou criativo e até me divirto e descubro a gota de mel no meio do fel.
Colei aquele “Eu Amo Você” no espelho. É pra mim mesmo.
Pausa Telefone. Ana C.Maaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaallllllllllllllllllllllll. A voz
um fio. Está a mesma. A bioenergética não adiantou. Se continuo a fim do sítio,
nos encontraríamos às 17h na casa de GM. Continuo (com medo). Vou. Nos
encontramos. Ana C. está excessivamente débil, excessivamente yin,
autocomplacente na própria fragilidade. Continuo a ser pela terapia Fala Grosso
Veado. S’as que descobri que a fraqueza me deixa impaciente, deve ser Marte em 1.
Paro pra olhar a paisagem, as palmeiras. M. me disse que, na natureza, tudo
que tem pontas é de Oxóssi. Descobri que a maioria das pessoas que conheço me
desvitalizam. E eu não vou permitir mais, nunca mais. Você é uma exceção. Maria
Clara, o Jorge, outra. Pedro Paulo, outra. Me diz uma côsa, Vênus conjunção Lua
não bota muita mulher na roda? Tava a fim não.
O céu tá cinza e, ainda assim, vejo o horizonte. Montanhas. O mundo é
maior daqui do que da rua Camiranga. Vou ter que amamentar muito Ana C. Lua e
Vênus em Câncer não dão uma capacidade fantástica de alimentar bebês? E dê-lhe
Malzebier.
[. . .] Quero porque quero um namorado. Lendo William Burroughs no Leia
ontem descobri que, em árabe, não existe a palavra amor. Não existe nenhuma
palavra para explicar um relação entre pessoas que exclua a tesão, a atração física.
Donde lembrei Pérsio23: amor é invenção ocidental. Ana C. cita um livro, O amor e o
ocidente24, sobre isso. O amor puro, ocidental, não dá certo porque não existe.
Amizade, companheirismos sim. Agora, Amor? God. Quero porque quero um
namorado sexuado, não um bandido, um eletricista, uma transinha — um corpo
com um cérebro e emoções. Que trepe e ache ou não coisas de, por exemplo,
Robert Altman. Mas em primeiro lugar: que trepe. Existe?, perguntaram. E tão
simples, responderam. Mas onde está?, insistiram. Não desista, responderam. Então
tá, concordaram.
Beijo pra Cida. Toma um café, que o mundo acabou faz tempo. Love from
Caio F.


* Agora em ritmo tropical!
Axé! Me traz a pasta de astrologia.

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