Jacqueline Cantore

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Sampa, 18 de abril de 1985.

Marilene,
te escrevo na máquina da Em Volta (Galeria), cerca de 13h30m. Tudo meio
vazio, vim entregar minhas matérias, fiquei fazendo a página de culinária (este mês:
peixes), a patroa está em Tóquio (coitada!). Neste momento, o boy acaba de me
entregar um pacote de livros. Global: Oba, veio a Katherine Mansfield!
Ouvi hoje várias vezes: você está com a cara tão boa! S’as que Marilene
desespera, mas não perde o tino, não? Entre duas cachoeiras de lágrimas, sempre
há espaço para um pouquinho de creme Nívea. Achas que a frase anterior poderia
servir para um campanha publicitária Nívea? Ganharíamos literalmente potes de
creme. Você não quer produzir?
Ontem fiquei assistindo Camelot na TV. Marilene, descobri: tudo que preciso
é de um Sir Lancelot na minha vida. Mais ainda se tivesse a cara do Franco Nero
aos 30 anos. Fantasias, como vês, não faltam.
Faço um pouco de hora para assistir Dublê de orpo, de Brian de Palma.
Abobrinha 1 (conte para C.):
S’as qual seria a manchete da Folha de S.Paulo de terça-feira?
Esta: “Risoleta magoada com frieza de Tancredo”.
Abobrinha 2 (somente para iniciados):
Abobrinha 2a. S’as o que o Caio Fernando disse quando viu o Jaburu do
outro lado da calçada?
— Como é que eu estou do outro lado, se estou aqui?
Abobrinha 2b. S’as o que o Jaburu, do outro lado da calçada, fez quando viu
o Caio Fernando Abreu? Gritou: — Jaburú-ú!
Ai, ai.
Tenho uma história medonha pra te contar. Recebo na secretária eletrônica
um recado de Tania von Faillace, que está em SP para o tal congresso de
datilógrafos. Texto: “Estou em SP e quero muito te ver. Estou preocupada com a
tua saúde. Telefone tal, beijos Tania.” Outra, recebo um bilhete de Lya Luft. Texto:
“Me disseram que não andas muito bem de saúde, Fico preocupada, manda
notícias.” Eu, caraminholando, lógico. Ontem telefonema de Zé Márcio. Texto:
Zé — Zé Fissura te ligou do Rio?
Eu — Sim, mas há umas duas semanas.
Zê — Ontem ou hoje não?
Eu — Não. Por quê?
Zé — Bem, é que ele ligou aqui pra casa ontem querendo saber se era
verdade que você está com AIDS. Diz que todo mundo em Porto Alegre só fala
nisso.
E então, Marilene, que achas? Estou me sentindo a própria Rita Lee, careca
por causa das aplicações de cobalto. Haja, não? Fiquei na minha, mas putíssimo.
Você não acha um pouco baixo-astral demais? A peste. Imagina se começassem a
espalhar que pessoas gordas dão câncer. Pois é mais ou menos assim que me sinto.
E o pior, quero dizer, melhor, é que Marilene está absolutamente saudável (supõe,
claro).
Bem, bem.
Hoje me convidaram para outra tournée pelo interior, além de Presidente
Prudente. Podia ser Araçatuba (achas que é de Tôro?), São José dos Campos ou
Ribeirão Preto. Escolhi a última, não sei, mais sensual, terra de Mário Prata, Leilah
Assunção — imaginaste as noites de Ribeirão Preto? E os ribeirões de Ribeirão
Preto?
Medo: Sergião ameaça abrir falência e me comunica que TALVEZ eu (?)
tenha que sustentá-lo durante no mínimo um mês. Botei as mãos nas cadeiras e não
disse nada. Mas pode? Cá entre nós: poooooooooooooooooooooooooooooooode?
As vezes penso em voltar para a Pavuna.
Pausa, pausa. Sumiê, a secretária japa, me conta que anda doente do coração
— tipo a soufle au coeur: ela tem uns 25 anos. Aí entra Natália e me conta que a
semana que vem tem que operar um cisto-no-ovário. Minha guia de Oxum faz uma
falta...
Mas ai, ai. Marilene, venha me visitar. Está tudo tão direitinho naquele puta
apê. Hoje recortei um anúncio de liquidação de camas & colchões. Amanhã fico
rico e vou lá ver.
Hoje quero comprar Um homem só, de Christopher Isherwood — li o Adeus a
Berlim e, paixão! É algo meio Jonh Fante, meio Salinger — não chega aos pés, claro,
é mais seco, mais viril, mas tão bonito. Quando você vier, leva outra mala de livros.
Já leste carta tão besta?
Pois é, vai saindo. Nas minhas obras póstumas, você jura que elimina as mais
imbecis?
A solidão às vezes é tão nítida como uma companhia. Vou me adequando,
vou me amoldando. Nem sempre é horrível. As vezes é até bem mansinha. Mas
sinto tão estranhamente que amor acabou. [.. .] Repito sempre: sossega, sossega —
o amor não é para o teu bico.
Aftas desapareceram. Homeopata tranqüiliza — foram ótimas, cosas que
tinham que sair pra fora. Notei sensível diminuiçã em gânglios (lovely gânglios).
Não consigo mais me sentir com AIDS.
Tás na linha? Alô, alô? Chamei Telesp: trocaram o aparelho. Mas é questã do
Sergiã voltar de Curitiba, ter outra discussã e jogar o aparelho no chã. Como de
hábito.
Marilene, sou tão bonzinho, simpático, talentoso, prestativo, amável,
delicado e carinhoso. Marilene: a que tenta preservar sua auto-estima a qualquer
Custo.
Dulce me invade a cabeça. Anoto, anoto. Ainda não comecei de sola. Mas
vai nascer. Fico todo grávido e imediatamente me vêm caixas de Domecq na
cabeça. O problema mais grave é que Dulce bebia mesmo era gim. Acho que ela se
parecia com Tonia Carrero. E era Leo/Tôro ou Tôro/Leo, com uma Lua em
Pêxes.
Mas é isto. Me vou à luta. Voltei a dormir no chão: coluna tri. S’as o que
Jaburu respondeu para o psicanalista quando este perguntou por que ele tinha ido
lá: — Não parece ÓBVIO? E caiu em prantos. Um dia talvez o Jaburu renda uma
boa historinha para kids. Ainda. Se Dodeacedro na CAL implica em direção de Nara
Keiserman, a resposta definitivamente é NÃO!
Kisses para Maria Clara, Nina, Angela e Betty. Mais para Marilene.
Caio F.
Pausa. Pausa. Pausa.
Noite, 23h25m.
Não tive tempo de colocar no correio. Estou continuando em casa. E tanto
pra dizer. Estou de cabeça feita exatamente no ponto em que gosto: recebi uma
grana, cara (200 paus de uma coluna sobre livros num jornal de... Medicina). Bueno,
aí jantei no Longchamp — o Longchamp me dá um prazer, um gostinho de estar
em Sampa... — comi: uma lasanha (Marilene andava mal alimentadíssima,
pooooooobre) com meia garrafa de vinho tinto, depois cafés e um licor de Strega
(eles têm cálices belíssimos).
Vim descendo a Augusta. Marilene, estou todo INTENSO. Minha epígrafe
agora seria: “Pode deixar que eu seguro”.
Foi me dando uma sensualidade bebendo aquele Strega flambado... Lambi os
beiços, deixei descer devagar pela garganta, depois de molhar toda a boca por
dentro.
Continuo depois o capítulo Strega.
Jacq-ueline [À margem: Descobri: o perigo do teu nome é esse cq que lembra...
Dome-cq!], emergi hoje. Ah, pobre Marilene, a passional... Sofri tanto, fiquei de cama,
sabias? Pois hoje emergi calçando salto 15, ombros muito para trás, porte ereto e
saia justíssima. Nariz arrebitado. Pisando duro. Pensam que vão acabar comigo?
Nunca. Marilene foi às compras — como é uma intelectual, no fundo, comprou
outro Isherwood — essa paixão vai me levar à ruína — e o final daquela Dons
Lessing/Martha Quest. Marilene depois foi ao Arroz de Ouro, comprou potes de
mel, incenso de verbena e um pote enorme de propolina. Saiu correndo para o
cinema, a tempo de ver Dublê de corpo e — ah! — imagine um filme punk-pornô. E
fantastish! Tem uma atriz pornô — Holly, que fez o famoso Holly does Hollywood —
um voyeur claustrófobo e um videoclipe numa buceteria punk que Marcia Fellacio e
The Vagina Dentatas não imaginariam mais, Vá correndo ver. E perversíssimo e
absolutamente do Mal. Qualquer coisa na linha daquele Fome de amor (era isso?) com
Bowie/Deneuve, mas com muito swig.
Voltei & Sergião rides again. Gosto imensamente dele. Confesso:
tenho um fraco por Sergião. NADA deu certo em Curitiba, claro. Ouvi 300 mil
histórias de Como a Humanidade é Calhorda e Está a Fim de Enlouquecê-lo (todo
o PLANETA está envolvido num complô para destruir Sergião), depois fiz a
Pollyana, servi chá com pão integral e mel, acendi um incenso e me postei vendo
Teresa Fonseca em sua nova fase. Ela vai vencer! [...]
Marilene tocou-se então para o Longchamp, já citado.
Novidade: Dulce, na verdade, só bebe Strega. Flambado. E é dada a
premonições, daí minha idéia da Lua em Peixes. Me forjarás esse mapa? Te darei
maiores dados na seqüência, imagino que Dulce teria agora por volta de 50/55
anos. Procurei os maxilares de Dulce toda a tarde na cidade. Mas o problema é: em
que direção Dulce terá se transformado?
Pausa megalômana: Marilene, eu vou escrever um excelente livro. Quero esse
clima de decadência total do filme de Brian de Palma. Quero rasgos de lirismo tão
incoerentes no meio da lama que cheguem a soar absurdos, com momentos de
loucura. Tenho TUDO na cabeça. Tremo de pensar. E fico meio bêbado. E não
meto mãos à obra. As notas se acumulam. Mas vai, vai.
Hoje tomaria um porre de conhaque com você. Um porre lúcido. Fomos
FEITOS para tomar porres de conhaque um com o outro.
No rádio, Gil começa a cantar “amigos presos, amigos sumidos assim, pra
nunca mais”. Sempre me dá vontade de chorar. No Longchamp lembrei do seu
Wico Cardoso (essa é do Passo de Guanxuma). Eu achava ele lindo quando eu era
criança. Era muito pálido, tinha pêlos muito pretos. Casado com Dona Irene
Cardoso, que minha mãe ODIAVA porque um ano ela bateu Nair na lista da 10
mais, e pai de Nádia Cardoso, que também era linda — parecida com ele — mas
tinha pés enormes. Aos 13 anos, devia calçar 40. Bem, lembrei que seu Wico se
matou. Ninguém sabe por quê. Faz anos. Ele teria pouco mais de 40 anos, regulava
com meu pai.
Fiquei pensando nessas coisas e lembrei duns versos de Bob Dylan, que me
vieram em português — não sei em inglês, nem de que canção seriam: “Se eu
quisesse, poderia enlouquecer/sei tantas histórias terríveis”. Algo assim.
Strega me deu saudades de Pedro. Tomávamos litros de Strega. Em
Caxambu, ele procurou desesperadamente uma garrafa de Strega. Diz que quem
toma junto nunca se separa. Estou fazendo um esforço, sim, estou agora fazendo
um esforço. Mas — Marilene babaca — aquele monólogo de Teresa hoje sobre o
amor que sente por Osmar... Eu gostava muito dele, das mãos, dos pés, do hálito
(mau), dos dentes (escuros), de tudo que era lindo e de tudo que era feio nele.
Fantasiei telefonemas. Hesitei entre ir ao Açougue tomar mais um conhaque e vir
para casa. Vim. A secretária no zero. Mas não vou ceder. Foi a ultima paixão.
Paixão é o que dá sentido à vida. E foi a última. Tenho certeza absoluta disso.
Agora me tornarei uma pessoa daquelas que se cuidam para não se envolver. Já
tenho um passado, tenho tanta história. Meu coração está ardido de meias-solas. Sei
um pouco das coisas? Acho que sim. Tive tanta taquicardia hoje. Estou por aí,
agora. Penso nele, sim, penso nele. Mas não vou ceder. Certo, certo: ninguém tem
obrigação de satisfazer ao teu desejo, pela simples razão de que você
supõe que teu desejo seja absoluto. Foda-se seu desejo, ora. Me dói não ter podido
mostrar minha face. Me dói ter passado tanto tempo atento a ele — quando ele
nunca ficou atento a mim. E eu passei tanta coisa dura. Rita Lee canta “são coisas
da vida”. Meu embalinho vai passando, o gosto do Strega persiste na boca. Hoje
senti alguns impulsos tipo tesão, corpo fisico. As vezes é tão estranho ser uma
pessoa. A gente é.
Amanhã chega meu som. Penso com que música inaugurá-lo. E quanto mais
penso, mais chego à conclusão de que nada mais indicado do que Se eu quiser falar
com Deus, com Elis, claro. Tenho tentado aprender a ser humilde. A engolir os nãos
que a vida te enfia goela abaixo. A lamber o chão dos palácios. A me sentir
desprezado-como-um-cão, e tudo bem, acordar, escovar os dentes, tomar café e
continuar. Não há de ser em vão, Jacqueline (Marilene, a veemente), tenho certeza
que não há de ser em vão: só se manter vivo em 1985 já quer dizer alguma coisa,
certo? Sinal que tens tutano, guria. E alguém há de recompensar isso, de alguma
forma ou não, não sei — mesmo que seja tudo aleatório e estejamos aqui jogados
como bactérias no corpo doente do planeta.
Hoje achei tão lindo. Ontem tinha conversado por telefone com Rubinho —
me contou, com dificuldade, da loucura (ganhou alta) e de como foi duro se afastar
e perder a linguagem comum à comunicação entre os ditos normais. Hoje passei
numa livraria e vi o livro dele, exposto, primeiro dia à venda. Me deu um orgulho.
A contracapa é minha. Fui lá ver é aquilo ali. Aí folheei e, inesperadamente, dei de
cara com a biografia dele. Diz assim, no fim “E fã de Marilena Chauí e Caetano
Veloso. Conhece pessoalmente Caio Fernando Abreu e Fauzi Arap.” Me deu um
orgulho, um sim-vale- a-pena-e-vamos-nessa.
Tenho tido — neste meu processo de recuperar a auto-estima — uns surtos
de qualquer coisa como tá-bom-de-alguma-forma-conquistei-algum-espaço-faço-oque-
quero-e-até-digo-coisas. Ontem vieram umas meninas me entrevistar para uma
trolha de faculdade. Umas cinco, extremamentes tímidas e bobonas. Uma delas
tinha uma chama maldita. Foram-se. Meia hora depois, campainha: a maldita.
Voltou “não sei por quê, não consigo ir embora”. Ficou batendo papo. Chama-se
Margareth, é geminiana e pela hora e cara (ruiva) ascendente Leo, 20 anos. Deus, 20
anos. Hoje quando acordei tinha recado dela na secretária: “Liguei só pra dizer que
achei você lindo e que foi importante estar aí.” Bethania começa a cantar Ronda.
Dói. E adoro essa dor de Sampa. Margareth mora com os pais em São Bernardo —
o pai é metalúrgico — e acha que o Pérsio do Pela noite mudou a cabeça dela.
Meeeeeeeeeeeeeeeeeeeedo.
Mas é isso. “Porém, com perfeita paciência/ sigo a te buscar / hei de
encontrar.” Quis morrer de novo, engoli outra rejeição — mas estou vivo e, sinto
muito, vou continuar. Te quero imensamente. Meu coração bate forte.
Caio F

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