A Jacqueline Cantore

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Sampa, 05 de março de 1985.

Marilene,
estou te escrevendo assim de súbito, sem planejar. Me deu vontade. Dia
cinza, cinzésimo, como todos, desde que voltei daí. São duas da tarde, O rádio toca
“eu perguntava do you wanna dance? / eu te abraçava etc.” — tenho a impressão de
que toca SÓ ISSO o dia inteiro. Acabei de fazer uma página inteira para a IstoÉ,
sobre um livro lindo: As laranjas iguais, de Oswaldo França Jr., um mineiro
discretíssimo. Daqui a pouco saio para entregar, passo no correio, e volto para ficar
quietinho & recatado nesta cenografia de O último tango.
Tomei uma atitude e amanhã cedo faço um exame de sangue. De graça.
Você se orgulharia de mim: liguei para o Hospital das Clínicas, para aquele serviçode-
esclarecimento-ao-público. Não me informaram nada de novo, contei minha
história e descolei o hemograma. I still paranóico. Agora, aquele problema das aftas
na boca & língua não melhorou e minha garganta está inchadíssima. O homeopata
trocou o Mercúrio por Borax e nada. Fico assim, tantã-lizado — mas resolvi
encarar na real, cara. Ai que medo. Deixarei testamento autorizando você a cuidar
dos escritos — me ocorre, será que pra deixar testamento é preciso ter
documentos?
Levemente mórbido. Perto disso, qualquer outro problema é ficha.
Andei meio louco, Sergião está em Curitiba. Fiquei só aqui, o que não é nada
easy. Na sexta, Nello fez 40 anos e levou a mim, ao Zé Márcio e [...] para jantarmos
no Rodeio, Comi uma PICANHA assustadora e voltei pra casa: Marilene, estou
aprendendo novas dores urbanas — nada mais triste do que uma secretária
eletrônica às três da manhã de sábado sem NENHUM recado. Me benzi, botei a
guia e rumei para The Açougue. Tu crês que AMANHECI lá? Tomei uns 20 cafés
com Domecq. Pintou um moço louco chamado Paulo Márcio, ator, viginiano
ascendente Leo (hmmmm!), e seduziu horas, até subirmos a Augusta — sábado
oito da manhã, imagina — de porre, parando de bar em bar para one more brahma.
Lá pelas 10 de manhã saiu correndo e entrou num ônibus para o Crusp (qualquer
coisa na Cidade Universitária da USP) e me deixou literalmente na mão. Isso depois
de repetir horas que eu era absolutamente lindo, inteligente, sexy, fascinante,
charmoso, , intrigante, misterioso, atraente, trepidante, esfuziante & etc. Fiquei
mobilizado, Marilene. E s’a’as que isso atualmente é raro na minha libido-teresinha.
O moço bem que valia uma Síndrome de Deficiência Imunológica. Betty faria o
tempo todo, e Reginaldo sem pensar.
Bueno, pensei, me resta um Chá Mu, alguns Marlboros e um papo com o
CVV. Deu-se. Fazia tempo que eu não tinha uma noite a la Os sobreviventes. Mas te
juro que perdi o pique: Marilene já não é mais a mesma, quem diria. Acordei às
quatro da tarde com aquele gosto de tabuleiro de xadrez na boca (o da alma é pior)
e recebi Ana Maria para longas sessões de I-Ching, cores & Tarot. Sinto uma falta
muito grande de Pedrinho. E a vida se perde enquanto o telefone não toca, s’as
como, né?
Enquanto isso, leio uma côsa linda: A insustentável leveza do ser, de Milan
Kundera, um tcheco, que me dá até algumas chaves para — por exemplo — essa
relação com [Pedrinho]: “Mas seria amor? (...) Não seria a reação histérica de um
homem que, compreendendo em seu foro íntimo sua inaptidão para o amor,
começa a representar para si próprio a comédia do amor?” Pois é.
Domingo visitei Ruy Fontana e fomos ver A trilogia da louca, uma peça gay
dirigida por Abujamra e de grande sucesso. Detestável: aquele gay negativo, quem
assiste acha que gay é bicha-louca e pronto, acabou. Pode rir: quem faz a mãe da
bicha é a Nicette Bruno. Anyway, Maria Emilia cortou o cabelo muito punk e Reinaldo me convidou pra escrever com ele umas bobagens para Sonia Braga
produzir, Aninha representar e Lage dirigir.
Ah: U., aquele meu amigo baiano platônico, resolveu-se e vem dia 23. Vai
ficar aqui mais ou menos uma semana. Meeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeedo!
Sergião, em Curitiba, não sabe se filma um documentário sobre a vida da
família Lupião ou o meu Réquiem por um fugitivo. Te espero no final de semana? Me
avisa com tempo para as devidas produções, embora seja muito provável que, desta
vez, eu esteja duro. Íssimo, aliás. Gastei tudo em conhaque. Bem, pelo menos não
foi gim.
Beije Maria Clara por mim — e passe as novas direções a Cristina, que tinha
me pedido. Um abraço em Mário.
Os últimos dias me ensinaram que quem nasceu com quadratura de Vênus
nunca deve pensar em termos de trígono. Mas Deus, lá em cima, está vendo tudo.
O problema é que Ele esqueceu de pôr os óculos.
Kisses and kisses from
Caio F.
Sampa, 26 de março de 1985.
Marileeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeene,
sinto-me à beira de receber uma carta thua, mas não consigo me controlar de
tanta novidade, chê. Então me ponho a escrever, 15 para as quatro de um dia
paranóide (Tancredo está hospitalizado nas Glínigas daqui, dizem que levou um
tiro do segurança, meeeeeedo total — mas isso é pano de fundo social), eu aqui
sozinho, após a saída de Hilda, the slave.
Bueno, vamos lá. S’as que ontem, segunda, esta Marilene aqui QUASE
MORREU QUEIMADA? Estava ela no fogão, mui lépida, assando umas coxas de
franga, quando eis senão que sente um odor estranho vindo das bandas do dito
fogão. Ela estava, mui poeticamente, de costas para o fogão, observando aquela
pêxa grávida no aquário, que não se decide a parir (vão ser arianos, os demônios, eu
esperava pêxes de Pêxes, s’as?). Então me viro (observe a mudança espontânea &
natural da tercêra para a primêra pessoa) e eis que, atrás do fogão, vejo CHAMAS
ENORMES ATÉ QUASE O TETO. Joguei água, aí chamei o Sergião que
telefonava da sala (Sergião disse: “Agora tenho que desligar porque minha casa tá
pegando fogo”, bem natural), e ele começou a me puxar pra fora da cozinha, aos
gritos de “Vai explodir! Vai explodir! Não joga água que é pior!”. Marilene,
ousadíssima, queria avançar entre as chamas para DESLIGAR O FORNO (ela não
tinha grana para comer e sua maior preocupação era que as coxas ficassem
inutilizadas, isto é, carbonizadas). Bueno, corremos para o corredor do prédio.
Duas velhinhas muito velhinhas saíam do elevador. Sergião: “Corram, saiam
depressa que vai explodir tudo!”. Uma das velhinhas começa a desmaiar. Junta
gente na porta do prédio. Seu Antônio, o zelador, vem com um extintor de
incêndio. Gritos, sussurros, gemidos, faniquitos. Fumaça, cheiro de gás, “apaguem
os cigarros!” (Marilene correu para seu quartinho e, num sopro, apagou a vela de
sete dias, juro), & LABAREDAS CADA VEZ MAIS ALTAS. Bom, o extintor
apagou tudo: espuma branca por toda a cozinha e toda a sala. E fim. Marilene foi
espiar se a pêxa tinha abortado: raçuda, ela — continua grávida. Ai, a tremedeira,
Que medo!
Essa foi a aventura mais ardente de Marilene. Depois rezei (a oração de
Santo Antônio), acendi incenso, tomei um banho escaldante de três horas para
soltar o mármore das costas. Ufa! Ia te ligar à noite — mas Sergião estava com
carência afetiva e ficou UMA HORA falando com Jacó, [...] e mais uma com
“minha ex-mulher (!) na CALIFÓRNIA”. Depois, começou o Oscar. E eu relaxei,
supondo ter sobrevivido, Marilene vai à luta: chegou o cheque de direitos autorais
da Nova Frontêra. S’as quanto, guriãããããã? 130 mil. Repito: cento e trinta mir, não
um milhão e trezentos. A todas essas, o renomado escritor com cinco paus no
bolso. Me toquei para a Around hoje de manhã. Marilene, eu estava maravilhoso.
Você calcula quanta eficiência, simpatia & bom-astral. Ridículo, mas consegui
aumento de 400 para 600 mir, com uma condição que EU impus: que me
aumentassem a partir do mês passado, isto é, me dessem JÁ um cheque de 200 mir.
Me deram 100, amanhã dão o resto. Mas saí de lá orgulhoso de minha capacidade
de batalha (que é mínima, você sabe).
Terminei a tradução (aaaaaaaarghhhhhhhhh! No mínimo cinco encarnações
de karma) e liguei pro Luiz Schwarcz. Aí, Marilene, s’as o que ele me propôs
espontaneamente? Me pagarem um salário para eu terminar Dulce Veiga! Tipo
fizeram com Leminski para Agora que são elas. Disse que a gente precisa conversar, e
não é um PUTA salário, mas que patati-patatá, conheço bem, mas vamos lá: estou
feliz e me sentindo assim um Scott Fitzgerald, um Gore Vidal terceiro-mundo.
Topo. Por qualquer 500 mir, topo.
Mais: convivência avec Sergião. DANGER, mas danger-fly, isto é teu
conselho me serviu — dá pra rir muito. Melhor levar para o lado do riso do que
para o stadenervos, certo? Aí vai, aos trancos, mas vai [.. .]. Recito Fernando Pessoa
— “Tudo vale a pena/se a alma não é pequena” — dez vezes ao dia, gasto
toneladas de incenso, sacas de sal grosso. E vamos levando. Se ficar heavy metal
demais, dou o fora.
U.: é uma côsa, Marilene. S’as aquele tipo que não fala, não propõe nada,
nem papo nem côsa alguma. Bonzinho e tal, fica na dele, mas absolutamente
amebiano. Meio moçona. Zé Márcio acha que Betty Faria, ou pelo menos
Reginaldo. Eu achei que não Roberto certamente não faria. Nem Lima. Mas é bem
independente, graças a Deus, e vive na rua fazendo compras, vendo filmes. Me dá
uma exaustã. Mas arruma a cama de manhã e fica até só domingo — estou bem
delicado e tudo. Acho que ele está achando tudo meio demente demais. Com
razão? perguntaram. Ninguém respondeu.
Ontem, para salvar o dia, recebi uma chamada interurbana [de Pedrinho]. Ai,
ai. Ah, Marilene, aí a vida se refaz e s’as como? Pois é, crã e sómmm. Ficou
tantalizado com a minha história do livro do Açougue, terminou de ler e leu de
novo, não acreditando. Disse TEXTUALMENTE: “Tenho medo de, de alguma
forma, matar você como a personagem matou o Dudu”. Eu disse que é isso, gente,
é só a gente tomar cuidado, e tal. Mas me dá tanta energia (“ele me faz tão bem/
ele me faz tão be-e-em/ e eu também quero/ fazer isso com ele/ ele me faz tão bee-
em”). E bom, é bom. Sobre projeto São Tomé — falei que tava-duro-mas-nabatalha-
c’ra, ele se ofereceu para pagar tudo, recusei veementemente, ele insistiu, e
assim durante cerca de 300 (caríssimos) impulsos telefônicos. Mas soube hoje que
tem grana dos Morangos pra mim (Marilene: enfim um escritor que se vira). Então é
capaz q. Dúvida: se ele vem a SP ou se eu vou ao RJ. São Tomé é mais perto de
onde? Pensei em ligar para o Suplemento de Turismo da Folha, não tenho muita
idéia de onde obter essa informaçã. Mas quero esse moço assim mesmo. [...] Reze
por mim, Marilene.
Culturais: sábado à noite, Freud — que é muito bonito, com uma Ariclê
Perez ótima, fazendo a histérica-paralítica. Depois, naturalmente, The Açougue.
Numa mesa, Lygia Fagundes Telles e Tonia Carreiro. Historinha: Júnior Penido
está trabalhando no antiquário do Açougue. Tonia desceu, viu aquele busto de
gesso do James Dean e ficou encantada. Queria saber o nome & endereço do
escultor para mandar fazer um dela, para seu túmulo. Que tal? Ganhei um beijo de
Lygia e meu-bem-meu-bem-que-queixo-que-queixo-me_telefona-me-telefona. Dia
seguinte, Marilene foi ver Patriamada, com Paula Zíper & Renato Modernell [...].
Jacqueline Cantore: é um horror. Oportunistas burro, falso & debilóide. Uma fala:
“Meu Deus, o que fizeram com a gente nesses vinte anos? Eu não suporto mais!
Quero votar para presidente!” — isso dito por Deborah Bloch aos prantos,
fumando nervosamente num quarto de hotel em Brasília. Salva-se: Olivia Byington
cantando o Hino Nacional sem acompanhamento. Depois, La Zíper nos arrastou
para um-bar-novo-da-pesada-nos-Jardins. Chama-se Cingapura. Achei uma espécie
de Madame Satã com faxineira. E sem porcos entre as mesas. No máximo, umas
galinhas. Um chope custa três mil cruzeiros e você pode ver nas mesas Bivar, Tânia
Voledo, Roberto Lage, Aninha Braga, Jacob Levitinas & todas aquelas pessoas que
você vê todos os dias de graça.
Mas é isto. Marilene, te quero bem — Cacaia falou que andavas muito
deprimida. Que é isso? Xô, não, vamos lá, eia, avante, companheira, hei-de-vencer,
Deus-provê e eu-mereço-mais, devem ser NOSSOS lemas na Nova República.
Fique bem, please. Paciência — é preciso ter infinita paciência. Olhar meigo para
tudo & todos. Humildade, decência, recato & pudor. A um passo da santidade.
Pense em tudo que Teresa Fraga Dantas está sofrendo por amor num presídio
infecto. Fique legal, mesmo. Tudo é muito engraçado. E o humour, já dizia
Drummond, assim:
“Perdeste o melhor amigo,
não tens sequer um cão
mas e o humour?”
Agora vou rebuscar um poema de Adélia Prado pra te mandar. Antes: cartão
de Cida, de Frankfurt, sucesso, vão à Itália, Holanda e Munique. Adorando. Frase
final: “Neva e existem figuras pelas ruas que você, Marilene e eu morreríamos de rir
juntos só de ver”. Achas que Moreyra cantará no próximo Oscar?
Oscar, ainda: o Prince é super Ai-ai, Jacira!
CONTRA O MUNDO
“Pulou no rio a menina
cuja mãe não disse: minha filha.
Me consola, moço.
Fala uma frase, feita com o meu nome,
para que ardam os crisântemos
e eu tenha um feliz Natal!
Me ama. Os homens de nucas magras
furam os toucinhos com o dedo,
levantam as mantas de carne
e pedem um quilo de sebo.
Toca minha mão.
Quem fez o amor não vazará meus olhos
porque busco a alegria.
A vida não vale nada,
por isso gastei meus bens,
fiz um grande banquete e este vestido.
Olha-me para que ardam os crisântemos
e morra a puta
que pariu minha tristeza.”
(De O coração disparado: para ler em caso de desânimo.)
Ai, ai.
Então, tá.
[...]
Te quiero mucho. Besitos para Marie-Clairrrrrrrr George (diga a ela que a
minha cozinha também pegou fogo). Cuide-se & be happy. Hot (literalmente)
Kisses from
Caio F.
ou
Marilene, a Incendiária

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