A Thereza Falcão

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SP 12.11.89

Thereza, querida,
foi uma alegria receber a sua adaptação de As frangas. Fiquei comovido e
encantado com a maneira como você sentiu, amou e respeitou as galináceas. Teu
diálogo é excelente, engraçadíssimo e rápido como o daquelas comédias
hollywoodianas dos anos 30/40. Rápida no gatilho. De-lí-ci-a.
Acho que, assim como está, está ótimo. Tem humor para todas as idades.
Queria que ficasse bem claro que apóio totalmente teu trabalho, e você tem
liberdade absoluta para trabalhar mais esse texto do jeito que você quiser, certo?
Mas minha cabeça disparou, também. Então estou enviando essa listinha de
sugestões, que você pode aproveitar ou não. São coisas que me ocorreram sem a
menor preocupação “séria”. Pura diversão & loucura. Lá vai:
1. Figurinos. Acho que a condição de franga pode ser caracterizada apenas
por detalhes de penas. Um broche, um turbante (no caso de Otília) com
arranjo de penas. Um rabo, um daqueles colares de índio (na Juçara), um
cocar.
2. A Otília está bárbara, ameaça roubar a cena. A Otília na verdade é uma
perua (talvez até um travesti). Acho que ela fala como a Tonia Carrero,
com muito meu-amorrrr no fim de cada frase, gírias de perua e muita, muita
afetação. Otília vota no Collor!
3. A Ulla está muito bem caracterizada. Ela é mesmo meio tia. Acho que ela
podia usar um avental, ou talvez uma daquelas roupas típicas de
camponesa sueca. Em sueco, pronuncia-se “U-lá”.4. A Juçara está um tanto reduzida demais ao naturalismo. Estou tomando
notas para As frangas — Parte II: a missão, em que a Juçara, muito amiga de
Lucélia Santos, partiu para a Amazônia, muito envolvida com o
assassinato de Chico Mendes, a preservação da mata e o Santo Daime.
Então acho que lá pelas tantas ela podia entrar com um discurso
ecológico um pouquinho mais conseqüente. Mais adiante, tenho uma
sugestão sobre isso.
5. Gabi, perfeita. Detalhe: eu detesto Elba Ramalho. Talvez fosse possível
mexer no texto naquele diálogo em que a Juçara diz que também gosta da
Elba. Nada! A Juçara gosta — adora — é daquele primeiro disco da Tetê
Espíndola. E tem a paixão pelo Sting, claro. E pela Marlui Miranda.
6. Os galos são criação sua, não palpito. Mas acho simpático, só que, como
as galinhas-fêmeas são maravilhosas, eles inevitavelmente saem perdendo
em brilho. Mas gosto muito da briga.
7. Acho que podia haver nais intervenções do rádio, que é um bom recurso.
Por exemplo: notícias sobre frangas. Vamos supor que vocês consigam
um merchandising da Knorr. No rádio: “Alô, alô, repórter Knorr (ou
Sadia), alô. Em Melbourne, Austrália, um sensacional cruzamento foi
feito entre um pato e uma galinha, resultando numa gapata. Ou entre um
galo e uma perna, resultando numa garua”. Comentários das frangas.
Juçara acha uma violação ecológica, uma monstruosidade. Otília acha máravilhoso
(ela acha tudo má-ravilhoso), etc.
8. Uma notícia do rádio (ai, lá vem a Lourdes de novo!) pode ser sobre a
contaminação do milho. Já pensou a saia-justa? Isso daria margem a um
discursinho ecológico de Juçara.
9. Os grãos de milho, arroz, grão-de-bico podiam ser enormes, tipo
almofadas, proporcionais ao tamanho das frangas.
10. Pensei também numa chuva de penas — homenagem a Bia Lessa
— caindo do teto e fazendo jus à expressão “vai voar pena”, no
momento da briga dos galos. Com ventilador, elas voam pra todo lado.
11. Adoro a cena da receita de galinha pelo rádio. TEM QUE
PERMANECER. Está no livro, e isso deveria ser citado, que a maioria
das pessoas só pensa numa franga como uma coisa que a gente pode
comer.
12. Ah: o livrinho todo não existiria se não fosse Clarice Lispector. De cabo
a rabo, é uma homenagem a ela. Penso se, em algum momento, talvez a
Ulla poderia ler A vida íntima de Laura. Laura é um verdadeiro mito para
elas, uma espécie de Marilyn Monroe das frangas. Afinal, foi a primeira
vez que foi dito em público que as galinhas também têm uma vida íntima.
13. A propósito de Clarice: os contos dela Uma galinha — que é cruel e
lindíssimo, está creio que em Laços de família — e O ovo e a galinha quem
sabe podiam ser citados. Pela Juçara, que é meio intelectual, ou pela Ulla.
Trechinhos curtos. Quem sabe a Ulla, que é uma tia, faz pequenas sessões
de leitura pros outros ouvirem?
14. Tô esquecendo da Blondie, gente. É que acho que ela está bem
caracterizada. É uma teen-ager radical, imagino que de meias soquetes,
talvez minissaia de jeans ou jeans mesmo. Talvez ela pudesse usar uma
camiseta com a cara de Laura. Assim como uma adolescente usaria um
James Dean ou uma Madonna?
15. O que acho de mais grave — e nem tão grave assim — é a falta de
conflito dramático. Tenho um certo medo que tudo fique muito na pura
galinhagem, entende? Aqueles espetáculos que, ao fim de um mês, viram
só cacos. Mas aí precisaria uma reestruturação total, e não me ocorre
nada. Um conflitinho qualquer. Suponhamos:
16. Corre o boato que o dono do galinheiro (Caio?) vai comprar um pingüim
de geladeira. Serão expulsas? Corre o boato também que vai comprar um
freezer. Serão expulsas? Solução final: o pingüim e o freezer são mesmo
comprados, e o pingüim vai pra cima é do freezer. “Muito coerente”,
comenta Ulla, afinal, “todo aquele frrriagem...” “Ai, ele deve ser um gato,
quero dizer, uma gracinha” — comenta Otília. — “E eu sempre tive tanta
vontade de conhecer a Africa! Ele deve ter fazendas maravilhosas lá”.
17. Lembrei de um comentário da Otília sobre as pirâmides do México.
Acontece que o México realmente tem pirâmides, as ruínas astecas. Basta
trocar México por Tanzânia ou Uganda ou Hungria. A Otília também
podia fazer uma referência à queda do muro de Paris.
18. Voltando ao conflito dramático. Uma coisa que sempre funciona é a
entrada lenta das personagens. Assim, por exemplo, a chegada de Gabi
agita um pouco. Talvez um dos galos estivesse sendo esperado desde o
início. Ou a Blondie estava nos Estados Unidos, qualquer coisa assim que
segure a atenção.
19. Outra bobagem: às vezes alguém abre a porta da geladeira. Então sai
uma nuvem de gelo seco do congelador. Isso é prenúncio de um pequeno
terremoto — lógico, quando alguém fecha a porta da geladeira o
galinheiro treme. Ulla pergunta-se preocupadíssima: haverá uma falha
geológica embaixo do galinheiro?
20. Ah: pé de galinha morta é uma coisa horrenda. Naquela cena da receita,
além da cabeça, podiam ser colocados no palco (talvez possam cair do
céu) dois imensos pés de galinha.
21. Imagino sempre coisas caindo do teto — ou sendo jogadas do lado do
palco. A mão de Lourdes, claro. Lourdes é meio uma inimiga invisível.
Essas coisas podem ser confundidas com meteoritos.
22. Quem sabe, para conflito drantático, algo misterioso caído dos céus?
23. E ovos? Galinhas e ovos são inseparáveis. No meu novo galinheiro,
tenho um ovo de madeira colocado entre as frangas. Parece o monolito
negro do 2001. O ovo é a forma mais perfeita da natureza, imagine só as
reflexões filosóficas de uma galinha contemplando um ovo. A Clarice de
O ovo e a galinha, que ela mesma considerava seu texto mais esotérico, tem
textos lindíssirnos e superinquietantes sobre isso.
24. Em havendo um ovo, que tal rituais mágicos em tomo dele? Ou um ovo
que no final rompe a casca e deixa sair de dentro de si o Pedro, o Abreu,
a Gabi, qualquer coisa assim.
25. E discussões — tudo com o gancho do rádio — sobre o preço dos
ovos? O ovo, como diz Clarice, é o grande enigma da galinha. E também
seu grande trunfo, sua irrefutável prova de superioridade. De
generosidade, também. A galinha oferta o ovo à humanidade como Jesus
Cristo ofertou seu corpo na cruz. Mas isso já são loucuras minhas.
+++++++++++
Enfim, Thereza, são só sugestões. Sem a menor pretensão ou intenção
de interferir no seu trabalho. Faça como achar melhor, e o que fizer além do que já
fez tenho certeza que será tão bom quanto já é. Nossa, que frase.
Também não se preocupe em usar ou não as minhas sugestões.
Algumas delas serão/estão sendo incorporadas ao meu As frangas — Parte II. Mas,
como falei a você, meu único receio mais sério é que tudo fique apenas na base do
bobajol. E acho que Frangas têm, também, seu lado mais sério. Que não é
necessariamente chato ou pedante. Umas mensagenzinhas ecológicas, ideológicas,
para fazer a cabeça das crianças — por que não? Desde que sem didatismo idiota,
claro.
Mas é que o trabalho pode ficar tão bonito e tão mais profundo. A gente
subestima muito criança.
Fico a seu dispor para qualquer coisa que você queira conversar sobre. Meu
tempo anda aflitivamente escasso. Mas devo ir ao Rio no dia 8 de dezembro, para
tomar mais um Daime Daime83, e talvez no final do ano, para réveillon, aquelas coisas.
Antes, durante ou depois disso, no que eu puder ajudá-la, estou pronto. Mas que
isso não soe ameaçador, combinado? O texto é seu, e não quero confundir nem
atrapalhar. Só ajudar.
Acho que é isso.
Outra vez, muito obrigado pelo carinho.
E um beijo grande do
Caio F.

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