A Jacqueline Cantore

0

Safe Sampa, 24 de fevereiro de 1988.

‘lane (pronuncia-se leine) dear,
não acredite, como eu também não estou acreditando, mas sa’s que me
pintaram uns minutos livres no meio deste fechamento (leia-se fechamento, não
fechação, please). Dei de mão nesse estonteante bloquinho com a intenção explícita
de dedicar os ditos momentos livres for you.
Tás bem? (Vozes ao fundo, em falsete, gritam agudas: desabada! soterrada!
flagelada!) Graças a Deus minha TV continua quebrada, então não vi nada, só pelos
jornais de papel. E fiquei horrorizado. Achas que é o fim? Na crônica de amanhã,
do Estado, publico seu testemho sobre a tragédia.
Pausa para cortar uma legenda.
Eu tô bem. Um tanto exaustish, verdade, e um pouco caidaço também. Mas
bem animadinho, disciplinadinho e tudo. Ontem foi um dia engraçado: fui ao
aeroporto pegar a Cristina Pereira, nossa capa de março, para levi-la ao estúdio do
Duran. No aeroporto: muita gente chegava do Rio, mas ninguém embarcava para lá
(aí). Eis senão então (ão, ão) que desembarca Cristina, junto com-com-com-
QUEM? Ana Carolina. Queria me jogar aos pés dela, repetindo “como-umadeusa-
como-uma-deusa” Ela não deu chance. Apressadíssima, olheiras até o
queixo. Caidaça, porém chique. Aí, o estúdio. Você já foi no estúdio de algum
fotógrafo realmente Poderoso? Inacreditável. Tem milhares de assistentes (muitas
jacirinhas) que arrumam tudo, medem distâncias, focos, ajeitam spots, trocam
filmes e tudo. Aí o fotógrafo (poderosa!) senta numa cadeira, mete o olho no visor
(?) e — momentummmmm! — aperta o botãozinho. E simplesmente tudo que ele
faz. Fiquei , expressionado. Achei tudo a tua cara.
Hoje tem um solzinho aqui, as’s? Depois daquele mar de chuva. Gostoso.
Modesto. Singelo. E tudo. Com o sol, meu karma preferido voltou do Rio ontem.
Me batalhou aqui, em casa. Secretárias, eletrônicas ou não, diziam: ele-não-está. Fiz
uma linha assim busy e só liguei hoje. Sa’s que meu coração dispara e quase não
consigo falar? (Em falsete, e em coro, vozes gritam: pueril! teenager! romântica!)
Segurei a guia de Oxum e continuei a fazer a linha busy, hoje? não dá, muito
trabalho, amanhã? jantar com fulana, quem sabe quinta. Quinta, então, quinta tá
bom? Quinta que não há ser de quinta, hora-yê-yê-ô.
Mas tão, tão modesto. Assim, sa’s, uma PUTA expectativa cercada por todos
os lados de desilusão. Que nem calda de chocolate em bolo. Só a casquinha. Já não
dói muito. Assisto como a um filme onde só por acaso sou personagem. Tenho
lembrado demais deste poema de Adélia Prado:
“quarenta anos não quero a faca nem o queijo
quero a fome.”
Porque é um pouco assim que a gente vai ficando, pura expectativa há anos
(muitos) não satisfeita. De repente, você começa a ponderar se não será assim
mesmo o jeito das coisas, o jeito “certo” delas, por mais que pareça errado.
Melancólico? Não sei bem. Talvez seja o jeito das coisas, só isso. Chega-se no zen?
Ou esse apenas o lado mais artístico de uma solidão quase tão grande quanto a
daquelas velhas tias solteironas, que ao invés de escreverem ficção faziam docinhos,
bordavam toalhinhas? Coisas assim.
Que seja doce — repetem os dragões. Que seja doce, e será.
Estou muito envolvido com Os dragões (o livro). Tirei umas fotos lindas
com o Sidney, vi os contatos hoje. Me sinto mais inclinado — claro — pela mais
dark de todas. Algo assim entre o Jim Jarmusch, o Tom Waits e o Arnaldo
Antunes. (Em falsete, em coro, as vozes: narcisa!) E muderrrno, tem o clima destes
(negros) tempos. Fim de semana pego as provas, reviso e pá e crã: em março nas
boas casas do ramo. Dá dor de barriga só de pensar. Outra auto-exposição pública.
E aí vêm aqueles bonvicinos da vida e tudo — lembra? — falando que você é um
imbecil total e tudo e tudo e nada. Mas, cá com meus botões — ou zíperes, para ser
mais realista —, estou confiante. Hei de vencer.
Pausa para discutir anúncios.
Pausa para tomar café.
Continuo.
Pausa para diagramar uma foto.
Continuo me aprontando para ir ao Rio lá pelo dia 4, 5 de março — ou
então no outro. I need tambores. Falar nisso, liguei pra lá domingo e a Sônia não
conseguia ouvir o que eu dizia por causa do barulho da água caindo. Foi o que ela disse.
Fiquei preocupado, mas depois voltei a ligar e sempre dava ocupado.
Amanhã tenho hora no cartomante — Kutio, poderosa.
Sa’s que, não fosse essa história de love, love, love, eu até diria que estou
vivendo uma excelente fase. Hoje estou passando pelo AUGE da oposição Urano-
Urano. Stadenervos perde. Não durmo há uns cinco dias. Mas estou pegando a
coisa pelo lado profissional, do pique (trabalha-trabalha-nêga), e fazendo o possível,
à noite, para ficar na base dos chás, jogado ouvindo coisas repousantes como
Schuman, Mozart, Nana Caymmi (surpreendentemente relax) ou Nara Leão. Acho
que funciona. Trata-se, principalmente, de aquietar a periquita.
Saudade de você. Mas estas corridas, esta vida...
Pausa para falar com um colaborador.
E com esta mensagem de fé e otimismo e esperança no futuro de nossa
pátria, me despeço com kisses, kisses and more kisses and lots of hot and sweet
kisses,
Caio F.
(I’m the best)

PS 1 — Hoje fui ao cartomante poderoso. Ele garante: Sim. É risonho o meu
futuro.
PS 2- Always AH-UH-AH-UH-AH

Ler mais »

0 comentários: