A Luciano Alabarse

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SP 02.08.90

Luciano, querido:
Te escrevo à mão, um pouco deitado. Imagina: escrever, agora, dói não mais
como metáfora, mas fisicamente. Nos últimos seis/ sete meses, escrevendo entre
oito/dez horas por dia, fiquei com um PUTA desvio na coluna. Com o frio
(muito), piora. Tem dias que não existem emoções, nem pensamentos: só dor.
Pontos de fogo nas costas.
Andei muito duro e só agora vou poder procurar um daqueles japas que
dançam a xula em cima de você. Tudo bem, vai passar. Mas isso tem me deixado
assim, pensando: curioso que o ato de criar possa arrebentar o corpo da gente.
Penso em John Fante, cego e com as pernas amputadas por causa da diabetes,
ditando seus últimos livros à mulher. Há algo de muito belo nisso.
Então fica assim: Onde andará Dulce Veiga? foi o livro que mais me doeu. Veja
só: em nenhum momento ele fluiu. Foi escrito gota-a-gota, palavra por palavra.
Será lançado nos primeiros dias de setembro, e eu estou naquela fase em que não
sei mais o que escrevi. De um mês para cá, tentando emergir dele, sinto uma
saudade louca daquele universo, daquelas personagens. E muito triste acabar um
livro — ou não? Mas entendo melhor a Tania Faillace arrastando as 10 mil páginas
do seu Beco da velha. Enfim: devo lançá-lo aí em POA em setembro/outubro. Ando
morto de saudades de tudo. Sábado no Off. Saindo de casa depois de meses,
encontrei Denise del Vecchio — linda como sempre — e falamos muito (e bem) de
você. [...] Na mesma noite — que foi mágica — conheci uma pessoa linda: o Ciro
Pessoa, aquele ex-titã autor da Sonífera ilha. Falamos [...] da meia-noite ao meio-dia.
Naturalmente que ele é heterossexual casado e com três filhas — e portanto
continuo a minha neurose (já não é neurose — 14 anos de análise. Virou, digamos,
peculiaridade) de ficar loucamente atraído por heterossexuais e eles por mim.
Anyway, tudo sob controle. Aprendi a controlar as emoções. Nelson me deixou
como saldo uma espécie de imunidade amorosa.
Enquanto isso, tentando retomar — sem convicção nem charme —
namoros e coisas assim, caí nos braços outro dia de um rapaz totalmente working
class. Chama-se F., veja que bonito, é jogador de futebol, 27 anos, com um corpo
alucinante. Nunca leu Proust, nem ouviu falar, graças a Deus. Me faz pensar demais
no Alec Scudder, do Maurice, e me pergunto se E.M. Forster não teria toda a razão
do mundo quando afirmava que a melhor companhia para um intelectual
depressivo & sofisticado era mesmo um forte e saudável rapaz das classes
trabalhadoras. Talvez haja nisso um elemento de culpa burguesa? Seja como for, o
F. é bárbaro.
Recebi os poemas e uma carta do N. Ah, Luciano, que difícil. Comecei a ler,
mas fui ficando tão agoniado, interrompi. Fico um pouco irritado. E tolo chafurdar
em pântanos de depressão com pouco mais de 20 anos, você não acha? Acho que
ele devia se alistar na Marinha, fazer mineração em Rondônia — qualquer coisa
mais vital. Não sei o que dizer a ele. Não sei o que dizer a ninguém.
Cada vez gosto mais da luz, cada vez acho a alegria, o prazer, mais
importantes. Dulce Veiga é um livro todo construído no sentido do encontro com o
ato de CANTAR. Que se possa cantar, e o universo passa a ter sentido. Tudo na
trilha de descobertas tão simples, tão fundamentalmente leves. Muita coisa envolvida
nisso. Por exemplo: fui ao enterro do Cazuza. Nunca tinha ido a um enterro na
vida. Foi bonito: o povão cantando, ele dormindo. Tenho certeza que em paz —
afinal, ele cantou até mais do que o possível. Respeito cada vez mais quem consegue.
Outra noite sonhei com Vinícius de Moraes. Na verdade, fiz um passeio no astral
com ele: amava tanto a vida.
Mas, enfim, quando eu tiver energia vou escrever ao N. Não consigo ver
solução para ele, entende?
Ligo a TV para ver notícias. Faz muito frio. Depois vou mergulhar em Brida,
o livro novo do Paulo Coelho. Estamos muito amigos. Tenho aprendido coisas
com ele. Nada muito sensacional, coisas simples, pequenas alegrias.
I. deve andar por aí, espero que vocês tenham se encontrado. Sinto saudade
enorme. Em breve, tomaremos um vinho.
Fique feliz.
Muito amor,
Caio F

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